Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0552184
Nº Convencional: JTRP00038090
Relator: PINTO FERREIRA
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES MÓVEIS
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP200505230552184
Data do Acordão: 05/23/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - A eficácia da prescrição presuntiva queda-se pela liberação do devedor do ónus de prova do cumprimento, destinando-se o prazo prescricional fixado na lei a determinar o momento a partir do qual passa a recair sobre o credor o ónus de prova em contrário da presunção do cumprimento.
II - No caso de dívidas relativas à prestação de serviço de telemóvel a questão da prescrição coloca-se em dois tempos distintos e separados: seis meses para o envio e apresentação da factura pelo prestador do serviço, após a sua prestação, ficando devidamente exercido seu direito de credor; cinco anos, para o exercício do direito, não havendo pagamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

B.........., S.A, intentou a presente acção declarativa de condenação contra C.........., Lda, pedindo a condenação desta no pagamento de 6.007,99 €, resultante de quantias devidas e não pagas a titulo de prestações de serviços telefónicos.
Citada a ré, contesta dizendo que nos termos do art. 10° da Lei n.° 23/96, de 26 de Junho, já decorreu o prazo de prescrição aí previsto.
Responde o autor afirmando que esse prazo assume a natureza de uma prescrição presuntiva e não extintiva, donde não verificável tal prescrição, pelo que pede a improcedência dessa excepção.
O tribunal conhece de mérito da causa no saneador-sentença e julga procedente a invocada excepção, considerando que se está perante uma prescrição extintiva.
Inconformada recorre a autora.
Recebido o recurso, apenas a autora apresenta alegações. Sustenta-se o despacho agravado.
Recolhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do recurso.
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II – Fundamentos do recurso

Fixam o âmbito dos respectivos recursos as conclusões apresentadas aquando das alegações – artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC –
Justifica-se, assim, a respectiva transcrição que, no caso, foram:

1. A prescrição prevista na Lei n.º 23/96 de 26 de Julho e no DL n° 381-A/97, de 30.12 é, pela natureza específica das dívidas aí em causa, uma prescrição presuntiva;
2. Seis meses é um prazo muito breve e penalizar, por suposto desinteresse, uma pessoa por não efectivar um direito num prazo tão curto, não é credível.
3. Com esse prazo de seis meses o legislador pretende que o prestador não demore infinitamente o envio das facturas.
4. Enviada a factura no prazo de seis meses, o direito de exigir o pagamento foi tempestivamente exercido.
5. Não estamos, pois, perante uma prescrição extintiva;
6. Não obstante o prazo de seis meses existe para exigir o pagamento pelo envio das facturas, não se podendo confundir com exigência de pagamento judicial.
7. Para tal, o prazo é o disposto no artigo 310º alínea g) do Código Civil.
8. Veja-se a nova Lei 5/2004 de 10.02, já em vigor.
9. O prazo de prescrição (extintivo) para exigir o pagamento das facturas em dívida é quinquenal.
10. Pelo que não se encontrava prescrito o crédito da A.
11. Logo deve ser revogada a decisão "a quo" no sentido exposto, prosseguindo os autos seus termos para julgamento e condenação do R. ao pagamento da quantia peticionada.
12. Foram violados os artigos 10º da Lei 23/96 de 26/7, 9º e 16º do DL 381-A/97, de 30/12, entretanto revogados pela Lei 5/2004 de 10.02,
13. Foi violado o artigo 310º. al. g) do Código Civil,
14. Foi violada a Lei 5/2004 de 10.02.
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III – Factos Provados

Com interesse para esta questão e por acordo das partes, considerou o tribunal encontrarem-se assentes os seguintes factos:

1. A autora é uma sociedade anónima que tem por objecto a prestação de serviços de telecomunicações.
2. A Ré encomendou à autora a prestação de serviços telefónicos móveis terrestres em 1.11.98.
3. Na sequência desse acordo a autora forneceu à ré os serviços constantes das facturas de fls. 6 a 20, cujo restante teor se dá por reproduzido no valor global de 4.116, 21 €.
4. Esses serviços foram prestados e deveriam ter sido liquidados até 15.6.2000, conforme data de pagamento da última dessas facturas.
5. A presente acção foi intentada em 30.6.03.
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IV – O Direito

O tribunal a quo decidiu em saneador/sentença que a invocada excepção de prescrição do direito da autora invocada pela ré, se encontrava verificada, por entender estar-se perante uma prescrição extintiva, e daí absolver a ré do pedido contra si formulado.
Fundamentou-se, essencialmente, ao considerar que se encontrava esgotado o prazo para formular o pedido de pagamento da factura junta aos autos, por ocorrer passados mais de seis meses, pois se estava perante um prazo de prescrição extintivo.
De forma contrária, ou seja, que se está perante uma prescrição presuntiva, pensa a autora/apelante.
Estamos perante duas opiniões diferentes, com interpretações diferentes sobre um mesmo prazo e com naturais consequência jurídicas e práticas divergentes, resultando, em suma, que a questão essencial aqui em discussão cinge-se à querela já largamente discutida na jurisprudência e doutrina sobre se, face ao fixado no n.º 4 do art. 9º do DL n.º 381-A/97 de 30/12, que preceitua que “o direito a exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”, se está ou não esgotado, constituindo o centro da polémica a averiguação se estamos, no caso em apreço, perante uma prescrição extintiva ou presuntiva.
Acontece que, concretamente sobre este assunto, o ora relator subscreveu, então como adjunto, o Ac. desta Relação de 28-6-99, relatado pelo Ex.mo Desembargador Dr. Fonseca Ramos, acórdão este que foi objecto de apreciação e análise de Prof. Calvão da Silva, na RLJ n.º 132, manifestando, no entanto, opinião contrária e que tem servido, por isso mesmo, de suporte e apoio a inúmeras decisões, tanto dos Tribunais de 1ª instância como das Relações, dando origem a decisões bem diversas sobre a problemática.
No entanto e apesar das críticas aí produzidas contra tal acórdão, sempre salutares, aliás, continuamos a manter a posição que aí foi assumida, contrária à posição do tribunal a quo, por considerar que corresponde à melhor interpretação das normas em vigor, mais ainda quando, em seu reforço e apoio declarado, considerando mesmo que aquele contém excelentes reflexões, se manifesta, com opinião sempre autorizada, António Menezes Cordeiro, Da Prescrição do Pagamento dos Denominados Serviços Públicos Essenciais – Estudo de Direito -, por sinal junta aos autos.
Tudo, porém, sem esquecer a inúmera jurisprudência desta Relação que segue esta mesma orientação, designadamente, Ac. de 4-4-2005, relatado por Des. Orlando Nascimento, de 28-06-004, de Des. Sousa Lameira, este citando e enumerando decisões num e noutro sentido, ambos em www.dgsi.pt, bem como o Ac. do Processo n.º 3220/04, de Martins Lopes, mas como subscritor o ora relator e Ac. R. Porto, Proc. 1555/2002, Des. Caimoto Jácome e Ac. R. Porto proferidos nos Processos n.º 2534/04 e 3260/04 de Des. Macedo Domingues, inéditos.
Ora, hoje já ninguém duvida que a Lei n.º 23/96 de 26/6 e DL n.º 381/97 de 30/12, continham disposições que abrangiam e se aplicavam ao serviço de rede de telefone, tanto fixo como móvel.
Mas ainda permanecem dúvidas sobre o problema de se saber se o prazo prescricional previsto pelos artigos n.º 10º n.º 1 da Lei 23/96 de 26-6 e n.º 4 do artigo 9º do DL n.º 381-A/97 de 30-12, tem natureza presuntiva ou extintiva.
De facto, estes normativos afirmam que o direito de exigir o pagamento do preço dos serviços prestados prescrevem no prazo de seis meses após a sua prestação.
E completa o n.º 5 deste artigo 9º que, para efeitos do número anterior, logo 4º, tem-se exigido o pagamento com a apresentação de cada factura.
Para se ter uma visão completa, haverá que ter em conta o artigo 310º al. g) do CC que determina que prescrevem no prazo de 5 anos “quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”.
Decorre da decisão apelada que, para o tribunal recorrido, trata-se aqui de uma prescrição extintiva e como a última das facturas enviadas ocorreu em 15-6-2000 e a acção foi proposta em 2003, estava prescrito o direito do autor.
Outro entendimento manifesta o recorrente/autor, com o qual concordamos, o qual entende que se está perante uma prescrição presuntiva e, como tal, ainda em tempo de pedir o seu pagamento.
A prescrição extintiva tem, como traço fundamental e distintivo, a consequência de, quando invocada e procedente, faz extinguir o direito do seu exercício, fazendo desaparecer os meios de tutela disponíveis e será presuntiva quando se baseia numa presunção de pagamento, protegendo o devedor que não possua o respectivo documento de quitação.
Ora, a prescrição que mais de coaduna, tanto pelo espírito como pela letra da lei, em conjugação com os normativos aqui aplicáveis, como ainda combinadas com as restantes disposições legais, encontra-se dentro daquelas que a lei designa de prescrições presuntivas e que têm como traço fundamental e caracterizador, na presunção do seu cumprimento - art. 312º do C. Civil -.
Ou seja, nas prescrições presuntivas o simples decurso do prazo não confere ao devedor a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de oposição por qualquer modo ao exercício do direito prescrito, apenas fazendo presumir o cumprimento pelo decurso do tempo.
As presunções são ficções ou ilações criadas pela lei ou julgador em que tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - art. 349º do C. Civil - e teve em vista, neste caso, a protecção do devedor contra o risco de ser obrigado a pagar duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibos ou guardá-los - A. Varela, RLJ, Ano 103, 254 -.
Daí que se considere, por isso, que esta presunção é apenas liberatória da prova de cumprimento e não executiva de direitos - RLJ, Ano 107, 191, Ano 109, 248 e Ano 113, 185 -
Considera, a este respeito, também Pessoa Jorge, Direito e Estudos Sociais, Ano II, 205 -:
“A prescrição a curto prazo é uma modalidade autónoma e sui generis de fenómeno prescricional, nitidamente diferenciado pelo seu fundamento e efeitos da prescrição extintiva em sentido próprio”,
E de igual forma - Sousa Ribeiro, Direito e Economia, Ano V, n.º 2, 394 -:
“Este tipo de prescrição actua através de um mecanismo de ordem essencialmente processual.
A sua repercussão no direito substantivo, traduzida na extinção do vinculo obrigacional, processa-se por via indirecta, resultando da presunção de cumprimento. Menos do que directamente extintiva a sua eficácia é, pois, liberatória do ónus de prova de cumprimento, limitando-se o prazo prescricional a balizar o termo a partir do qual o réu fica dispensado desse encargo”.
Isto é, a eficácia da prescrição presuntiva queda-se pela liberação do devedor do ónus de prova do cumprimento, destinando-se o prazo prescricional fixado na lei a determinar o momento a partir do qual passa a recair sobre o credor o ónus de prova em contrário da presunção do cumprimento.
Por isso é que, no acórdão já referido de 28-6-99, relatado por Des. Fonseca Ramos e tratado na RLJ n.º 132, pág. 137, e que novamente se recorre, se refere, de forma totalmente adequada e propositada, que a prescrição presuntiva está ligada a propósitos de defesa do devedor, presumindo o legislador que a dívida está paga, invertendo o ónus de prova para o credor, demonstrando que assim não aconteceu e, por outro lado, a entender-se que seria extintiva, então, traduzir-se-ia num acentuado desfavor para os fornecedores e injustificada protecção ao consumidor.
E mais adiante, conclui que “A lei n.º 23/96, encurtando o prazo e prescrição que era de 5 anos, nos termos da al. g) do art. 310º do CC, para 6 meses, implementou um quadro legal mais favorável ao devedor, que assim não fica na contingência de um prazo presuntivo tão longo, com a inerente incerteza e instabilidade ........................................................., mas não se quis levar tal protecção ao ponto de excluir esse prazo do âmbito das prescrições presuntivas ou de curto prazo ............................... e, a entender-se que a prescrição seria extintiva, tal abriria a porta a comportamentos abusivos, estabelecendo uma acentuada e desequilibrada protecção a favor de consumidores relapsos”
E sobre esta problemática, o Ac. STJ de 25-6-2002, AD, 494, 343, refere “que a razão de ser de um prazo curto de prescrição das prestações periodicamente renováveis é evitar que o credor as deixe acumular tornando excessivamente onerosa a prestação a cargo do devedor”.
De tudo resulta que não se pode ter uma visão redutora de uma norma jurídica e haverá, na sua interpretação e aplicação, de conjugar os interesses em jogo – justiça e ciência -, por forma a que um benefício e protecção de uns não se tornem em prejuízo e desfavor de outros.
E da ponderação destes interesses e dos seus reflexos naturais nas normas elaboradas para tais efeitos e, assim, aqui aplicáveis – artigo 10º n.º 1 da Lei n.º 23/96 de 26/7, art. 9º n.º 4 e 5 do DL n.º 381-A/97 de 30-12 e artigos 306º n.º 1 e 310º al. g) do CC -, comungamos da opinião manifestada pelo Prof. Menezes Cordeiro quando afirma que se trata aqui do direito de exigir o pagamento, equivalente ao direito de enviar a factura e, daí que, se enviada esta no prazo de seis meses, o direito de exigir o pagamento foi tempestivamente exercido, caindo, a partir daí, na prescrição extintiva.
Ou seja, podemos mesmo concluir que haverá que cindir e repartir, no caso dos autos, a questão da prescrição em dois tempos distintos e separados: 6 meses para o envio e apresentação da factura, após a sua prestação, ficando devidamente exercido o direito do credor; 5 anos, para o exercício do direito, não havendo pagamento.
E aponta este Ilustre Professor, correctamente, que considerar nestes casos que se estava perante uma prescrição extintiva seria contribuir para um ambiente de laxismo e desatenção dos devedores, conducentes a uma aumento da litigiosidade, com os credores a desencadearem, na mínima demora, os procedimentos judiciais.
Aliás, na nova Lei das Comunicações – Lei n.º 5/2004 de 10-02 -, no seu artigo 127º n.º 1 al. d), surge derrogado o DL n.º 381-A/97, significando naturalmente com isso e na falta de disposição expressa, que será aplicável agora, como lei geral, a lei civil.
Deste modo, reavaliando os factos apurados e os ensinamentos citados, podemos concluir que, enviada que foi a factura em tempo devido – serviços prestados até ao dia 26-05-00 e enviadas em 15-6-00 -, não ocorreu a prescrição presuntiva, tida aqui como aplicável.
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V – Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em se julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão proferida e em que se julgou procedente a excepção peremptória da prescrição, prosseguindo os autos.
Custas pela parte vencida a final.
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Porto 23 de Maio de 2005
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome