Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0712016
Nº Convencional: JTRP00041216
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
MOBILIDADE
Nº do Documento: RP200804070712016
Data do Acordão: 04/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 100 - FLS 137.
Área Temática: .
Sumário: É nula a cláusula contratual segundo a qual o 2º outorgante (trabalhador) “aceita que possa ser deslocado, dentro do território do Continente, para qualquer dos estabelecimentos que pertençam ao 1º outorgante”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Registo n.º 417
Proc. n.º 2016/2007 -1 S
TT de origem: n.º ./2006 Matosinhos ..º J

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I – B………. intentou acção comum, emergente de contrato individual de trabalho, no TT de Matosinhos, contra
C………., SA, alegando, em síntese, que resolveu o contrato de trabalho que a ligava à ré, invocando como justa causa a transferência do seu estabelecimento comercial, sito no D………., para o estabelecimento sito na Covilhã, com prejuízo sério, a nível pessoal e familiar, já que a autora é casada, mãe de dois filhos menores e reside em ………., Matosinhos.
Concluiu, pedindo o reconhecimento judicial da legitimidade da rescisão do contrato operada em 23.11.2005 e a condenação da ré a pagar-lhe a importância de € 16.367,74, a título de indemnização por antiguidade e proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal, referentes ao ano da cessação do contrato, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data da cessação do contrato até efectivo e integral pagamento.
Frustrada a conciliação na audiência de partes, a ré contestou, negando a existência dos fundamentos invocados pela autora para resolver o contrato de trabalho, uma vez que a transferência de local de trabalho foi prevista contratualmente, sendo certo que não lhe acarreta qualquer prejuízo profissional.
Concluiu pela improcedência da acção e absolvição do pedido.
Aberta a audiência de julgamento, as partes prescindiram do depoimento das suas testemunhas e acordaram quanto à matéria de facto descrita no § II. O Mmo Juiz proferiu sentença e, julgando a acção improcedente, absolveu a ré do pedido.
A autora, inconformada, apelou, concluindo, em síntese, que a transferência de local de trabalho, operada pela ré, constitui justa causa de resolução do contrato de trabalho e que o Tribunal da 1.ª instância, ao decidir pela improcedência da acção, violou o disposto nos artigo 122.º, n.º 1, alínea f), n.º 1; 315.º, n.º 1, e 96.º do Código do Trabalho; os artigos 15.º e 22.º, n.º 1, do DL n.º 446/85, de 25.10, e o artigo 53.º da Constituição da República Portuguesa.
A ré respondeu pela manutenção da sentença recorrida.
O M. Público emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

II - Os Factos
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
a) A Ré dedica-se à comercialização de electrodomésticos.
b) Em 01/03/1989, a A. foi admitida ao serviço da Ré, mediante a celebração de um contrato de trabalho a termo.
c) Após o período inicial a termo, em 1 de Julho de 1991, A. e Ré celebraram o contrato de trabalho junto a fls. 44 e 45.
d) Na cláusula sexta do referido contrato ficou estipulado o seguinte: “Tendo em conta o âmbito do território de actuação definida nas cláusulas 1ª e 2ª do presente contrato, o 2º Outorgante aceita que possa ser deslocado, dentro do território do Continente, para qualquer dos estabelecimentos que pertençam ao 1º Outorgante".
e) Por sua vez, na cláusula 7ª do mesmo contrato estipulou-se que, para efeitos da referida mudança de local de trabalho, a C………., SA deveria notificar o trabalhador “... por carta registada, com 30 dias de antecedência, do novo local para onde aquele deverá ir exercer as suas funções, e da respectiva data de início”.
f) Por fim, na cláusula 8ª do dito contrato, a C………., SA obriga-se, em caso de mudança de local de trabalho, a “... custear as despesas resultantes do transporte da família e mobiliário do 2º Outorgante”.
g) A 13 de Outubro de 2005, a R. comunicou à A. que a partir de 17 de Novembro de 2005, o seu local de trabalho passaria a ser na loja da Covilhã.
h) Em 19 de Outubro de 2005, a A. informou a R. dos gravíssimos prejuízos, a nível pessoal e familiar que essa transferência lhe acarretaria.
i) Por carta de 21 de Outubro de 2005, a R. reafirmou a ordem de transferência do local de trabalho da A., invocando para o efeito a “lógica de gestão empresarial da C………., SA”.
j) Em 15 de Novembro de 2005, a A. enviou nova carta à R., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, reafirmando as estremas dificuldades que resultariam da sua transferência para a Covilhã.
k) Não obstante, em 16 de Novembro de 2005 a Ré reafirmou a ordem de transferência.
l) Por esse motivo, por carta de 23 de Novembro de 2005, a A. resolveu o contrato de trabalho que havia celebrado com a R., invocando, para o efeito, o prejuízo sério, a nível pessoal e familiar, que decorreria com a transferência do local de trabalho, fundando-se no disposto no artigo 315º, nº 4 do Código do Trabalho.
m) Em 29/12/2005, a Ré tomou de arrendamento o imóvel identificado na cláusula 1ª do contrato junto a fls. 46 a 48, destinado a habitação de funcionários seus, pelo prazo de seis meses, sucessivamente renovável por iguais períodos, com início em 01/12/2005.
n) À data da cessação do contrato, a A. estava classificada profissionalmente pela R. como “1ª caixeira” e auferia a remuneração mensal de 620,79 €.
o) A A. reside em ………., Matosinhos, onde tem o seu agregado familiar e centrada a sua vida sócio-familiar.
p) A Ré dispunha na altura e ainda hoje dispõe, de mais de 100 lojas abertas ao público, um pouco por todo o país, além de abrir novas lojas e fechar outras com frequência, no âmbito da sua actividade.
q) A loja onde a A. prestava funções à data da cessação do contrato, encontra-se encerrada.
r) A Ré tem outras lojas na área Metropolitana do Porto.
s) Aquando da cessação do contrato de trabalho, em 16 de Dezembro de 2005, a Ré pagou à A. a quantia ilíquida de 1.658,46 €, como acerto final das suas contas laborais, conforme recibo de fls. 59.
Atentas as certidões de fls. 224, 225 e 226 dos autos, está ainda provado que:
t) A autora é casada e mãe de dois filhos menores de idade.

III – O Direito
Atento o disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, aplicáveis por força do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) e artigo 87.º do CPT, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da recorrente.
E as questões suscitadas no recurso reportam-se à legalidade da ordem de transferência da autora para outro local de trabalho (de Matosinhos para a Covilhã) e ao prejuízo sério, fundamento da resolução do contrato com justa causa.

Do local de trabalho
Na sentença recorrida, o Mmo Juiz, aludindo à cláusula 6.ª do contrato de trabalho celebrado pelas partes (cfr. alínea d) da matéria de facto), a qual remete para as cláusulas 1.ª (a empresa “comercializa, no território do Continente Português e Ilhas Adjacentes, máquinas de costura, ...”) e 2.ª (“no exercício dessa actividade, a empresa está estabelecida, no referido território, através de vários estabelecimentos comerciais”), e à cláusula 3.ª (“a autora, tendo em conta o disposto nas cláusulas 1.ª e 2.ª, aceita desempenhar as funções de Caixeira de 3.ª - categoria inicial”), concluiu que “a ordem dada pela entidade empregadora para a autora passar a trabalhar na sua loja situada na Covilhã, resulta numa alteração das instalações em que aquela prestava a sua actividade, mas compreendida no local de trabalho contratualmente previsto.
[...].
Assim, ao decidir colocar a autora na loja da Covilhã, a Ré não procedeu a uma transferência da autora do seu local de trabalho, actuando antes dentro dos limites da estipulação contratual e no uso dos seus poderes de gestão e de direcção.
Por isso, no caso, não tem aplicação o disposto no artigo 315º do Código do Trabalho, pois que não houve transferência da trabalhadora, que se manteve no seu local de trabalho, com a amplitude que lhe é dada pelas cláusulas 1ª e 4ª do contrato. Aliás, nunca a Autora poderia resolver o contrato com base no nº 4 do artigo 315º, porque nem sequer acorreu uma mudança total ou parcial do estabelecimento. E, como se infere desse mesmo preceito, essa causa objectiva de resolução do contrato apenas é concedida ao trabalhador quando abrangido por uma transferência colectiva.
Não se tratando, in casu, de uma ordem de transferência, também não impendia sobre a Ré o dever de cumprir todos os procedimentos previstos no artigo 317º do Código do Trabalho”.
A autora discorda de tal conclusão, apoiando-se no acórdão desta Relação, datado de 04.12.2006, proferido no processo n.º 4790/2006, 1.ª secção, que apreciou situação idêntica à dos autos, e invocando o prejuízo sério que tal transferência lhe acarretaria, dado que tem a sua vida pessoal e familiar centrada na zona de Ermesinde/Porto.
Analisemos.
É sabido que um dos elementos do contrato de trabalho, de maior relevância para o trabalhador e para o empregador, é o local de trabalho, isto é, o local onde o trabalhador deve prestar a sua actividade laboral.
É relevante para o empregador porque, em geral, a prestação do trabalhador só servirá o seu legítimo interesse se o for no local onde dela precisa.
Para o trabalhador, na medida em que implica com a organização da sua vida aos mais diversos níveis, quer pessoal, familiar, habitacional e social.
E daí a relevância em ficar acordado no respectivo contrato, expressa ou tacitamente, qual o local de trabalho, precisamente dada a importância que isso passa a assumir para a vida do trabalhador e da sua família e, quiçá, para o desenvolvimento da actividade do empregador.
Como refere Bernardo Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, Verbo, 1992, pág. 347, “… fixado no contrato o lugar da prestação, o trabalhador vai dispor nesses termos a sua maneira de viver. De acordo com o local em que trabalha vai organizar o seu plano de vida, pois é tendo em vista o sítio onde desempenha a sua actividade que o trabalhador fixa a sua residência, resolve o problema dos seus transportes, cuida da educação dos filhos e programa até o gozo dos seus ócios. Com efeito, trabalhar num determinado lugar significa o mesmo que ir viver para esse lugar e aqui se compreende uma série de valores em que entram elementos económicos e materiais de vulto, como o custo de vida e a fadiga e demora dos transportes e outros interesses talvez de maior importância: saúde, bem-estar, educação e a simples alegria de viver…”.
Em função deste especial relevo, o nosso sistema jurídico garantiu ao trabalhador a sua inamovibilidade [cfr. artigo 21.º, n.º 1, al. e), da LCT – à data dos factos que se discutem, mais precisamente, da celebração do contrato, ainda não tinha entrado em vigor o CT, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27/8, no qual a matéria consta dos artigos 154.º e 315.º a 317.º].
No caso concreto, se é verdade que se trata de uma empresa de comercialização de electrodomésticos, estabelecida no território do Continente Português e Ilhas Adjacentes, através de dezenas de estabelecimentos comerciais, não menos certo é que à autora cabia apenas exercer as funções de Caixeira.
Na cláusula 4.ª do contrato celebrado com a ré, ficou estipulado que a autora aceitava exercer, no território do Continente Português e Ilhas Adjacentes, as actividades necessárias ao desempenho dos objectivos comerciais da empresa.
Na cláusula 6.ª do mesmo contrato, ficou consignado que atento o âmbito territorial da actividade da ré, a autora “… aceita que possa ser deslocado, dentro do território do Continente, para qualquer dos estabelecimentos que pertençam à Ré”.
Numa leitura apressada de tais cláusulas, poderia pensar-se que as partes mais não fizeram do que convencionar que a entidade empregadora ficava livre na fixação do local de trabalho, sendo-lhe legítimo, a todo o tempo, transferir a trabalhadora, uma vez que tal estipulação era permitida, segundo uma parte da doutrina (por exemplo, Bernardo Lobo Xavier, “O Lugar da prestação do trabalho”, Estudos Sociais e Cooperativos, ano IX, n.º 33, Março de 1970, pág. 16; Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11.ª ed., 2003, pág. 414; Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2002, pág. 479-480) no artigo 24.º, n.º 1, da LCT.
(O actual artigo 315.º, n.º 3, do C. do Trabalho não permite margem para dúvidas quanto ao sentido da estipulação “salvo estipulação em contrário”).
Tal leitura, no entanto, logo levanta uma séria objecção, em função da actividade laboral da autora, de mera Caixeira.
Na verdade, as cláusulas em questão eram compatíveis com actividades laborais eventualmente existentes na ré, como motorista de veículos pesados de mercadorias ou trabalhadores comissionistas, por não serem fixas por natureza, já que eram desenvolvidas em diversos estabelecimentos da empresa.
O mesmo não sucede no caso em apreço.
A actividade de Caixeira, mesmo etimologicamente, (Dicionário Enciclopédico da Língua Portuguesa) é definida como “o empregado que serve os fregueses ao balcão”, o que pressupõe um estabelecimento fixo ou concreto.
Ora, a autora foi contratada, exactamente, para exercer as funções de Caixeira e, atentos os elementos constantes dos autos, exerceu-as, desde o início do contrato, sempre no mesmo estabelecimento, sito na Senhora da Hora, em Matosinhos.
Como bem diz José Andrade Mesquita, Direito do Trabalho, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2003, pág. 403, “…o princípio da segurança no emprego, consagrado no art. 53º da Constituição (…), embora ligado à cessação do contrato, abrange outros aspectos relacionados com a estabilidade do vínculo laboral, como a exacta delimitação do local de trabalho.
Facilmente se intui que sem estabilidade espacial não há segurança no emprego. De nada adiantava proibir os despedimentos sem justa causa se, em simultâneo, se permitisse a definição do local de trabalho de forma tão lata que o trabalhador fosse colocado, a todo o momento, em qualquer lado.
Do princípio da segurança no emprego decorre que o local de trabalho tem de estar determinado ou ser determinável, correspondendo, em qualquer caso, à efectiva execução contratual e não a hipotéticas necessidades empresariais futuras.
Estas podem dar lugar a posteriores alterações do local de trabalho segundo regras que equilibrem os interesses de ambas as partes”.
Assim, podemos concluir que, no contrato de trabalho sub judice, contrariamente ao referido na sentença recorrida, não ficou determinado o local de trabalho da autora, atentas as funções que a esta foram incumbidas pela ré, só compatíveis com um estabelecimento concreto da empresa, e não com um conceito indeterminado, como “todas as lojas da Ré situadas no Continente, ilha da Madeira e Arquipélago dos Açores, em funcionamento, ou que, entretanto viessem a abrir”, como foi escrito pelo Mmo Juiz da 1.ª instância.
E inexistindo uma determinação expressa do local de trabalho, este deve retirar-se, como defende a doutrina, (cfr., entre outros, Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II, pág. 409), tendo em conta a execução da prestação laboral.
Ora, a ré, ao admitir a autora, por contrato por tempo indeterminado, sabendo que esta era residente em Ermesinde (cfr. Contrato de Trabalho, fls. 44-45) e ia desempenhar as funções de Caixeira, tinha obrigação de informar a autora sobre o estabelecimento/área geográfica concreta em que poderia vir a ser exigida a sua prestação.
E não o tendo feito, tem de sujeitar-se a ver interpretado o contrato, no que concerne à questão do local de trabalho, em conformidade com a respectiva execução.
E, deste modo, consideramos tacitamente limitado o local de trabalho da autora à área ………./Matosinhos, onde se inseria o estabelecimento e onde a autora, durante cerca de 16 anos, prestou serviço para a ré.

Da transferência do local de trabalho
Uma vez definido o local de trabalho da autora, importa agora analisar a legalidade da ordem de transferência, de Matosinhos para a Covilhã, ao abrigo da cláusula 6.ª do contrato de trabalho, com a seguinte redacção:
“Tendo em conta o âmbito do território de actuação definida nas cláusulas 1ª e 2ª do presente contrato, o 2º Outorgante aceita que possa ser deslocado, dentro do território do Continente, para qualquer dos estabelecimentos que pertençam ao 1º Outorgante”.
Conforme dispõe o artigo 315.º, do CT, sob a epígrafe “Mobilidade geográfica”, “O empregador pode, quando o interesse da empresa o exija, transferir o trabalhador para outro local de trabalho se essa transferência não implicar prejuízo sério para o trabalhador” – n.º 1.
E o n.º 3 prevê: “Por estipulação contratual as partes podem alargar ou restringir a faculdade conferida nos números anteriores”.
Ora, é este normativo que enquadra, actualmente, as cláusulas de mobilidade geográfica, que, no caso dos autos, é a citada cláusula 6.ª do contrato de trabalho subscrito pelas partes. E, dado o seu teor, seríamos levados a concluir pela validade da mesma e, consequentemente, pela legalidade da ordem de transferência.
Mas cremos que não, atentos os fundamentos que expomos.
Dúvidas não há de que o actual regime jurídico laboral permite que a mobilidade geográfica possa ser assegurada através de um âmbito geográfico mais amplo no contexto das cláusulas do contrato de trabalho (cfr. artigo 154.º do CT).
Acontece, porém, que atentas as regras gerais do direito civil, a liberdade das partes está sujeita a restrições no que concerne à conformação do conteúdo dos contratos, atento o disposto no artigo 280.º, n.º 1, do C. Civil – “É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável” (sublinhado nosso) – e nos artigos 398.º a 401.º que versam sobre os requisitos de uma qualquer prestação debitória.
Deste modo, seja em que circunstância for, “o parâmetro geográfico da prestação de trabalho não pode ficar indeterminado, designadamente através da concessão ao empregador do poder de colocar o trabalhador em qualquer local indicado por aquele. Estas cláusulas são nulas por indeterminação”. (cfr. artigo de Joana Nunes Vicente, sobre Cláusulas de mobilidade geográfica: vias de controlo possíveis, na Revista Questões Laborais, n.º 27, ano 2006, pág. 74).
Ora, é precisamente o que sucede com a cláusula 6.ª do contrato dos autos, que, sendo de conteúdo indeterminado, é nula, nos termos dos artigos 280.º, n.º 1, e 400.º, do C. Civil.
Cremos que à mesma conclusão de nulidade da cláusula 6.ª se pode chegar por via do artigo 96.º do CT, que admite a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais sem prévia negociação individual, aos aspectos essenciais do contrato de trabalho, previsto no DL n.º 446/85, de 15.10, cuja última alteração foi introduzida pelo DL n.º 249/99, de 7.06.
A legislação sobre as cláusulas contratuais gerais aplica-se a todos os contratos de trabalho de adesão, isto é, quer aos contratos de adesão que apresentam as características da pré-disposição, da unilateralidade e da rigidez, quer aos contratos de trabalho de adesão aos quais acresçam as notas de generalidade e de indeterminação. (cfr. António Pinto Monteiro, Contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais: problemas e soluções, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2001, pág. 1106-1107).
Ora, a cláusula 6.ª do contrato dos autos, cláusula de mobilidade geográfica, constitui um elemento essencial do contrato de trabalho celebrado pelas partes.
E como resulta da mera análise do contrato junto a fls. 44-45 dos autos, este apresenta-se como um contrato tipo, no qual apenas foram introduzidas as alterações necessárias em função da identificação, da categoria profissional e retribuição da trabalhadora em causa. E tanto assim é que o género utilizado na sua redacção é o masculino genérico, destinado a designar todos os representantes da mesma espécie, abrangendo ambos os sexos: “..., o 2º Outorgante aceita que possa ser deslocado, ...”.
Tal cláusula reveste, assim, as características de pré-formulação e indeterminação, isto é, foi previamente redigida para um número indeterminado de pessoas.
Do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais relevam, para o caso sub judice, o artigo 15.º – “são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé” – e o artigo 22.º, n.º 1, alínea n) – são proibidas as cláusulas contratuais gerais que “fixem locais (…) de cumprimento despropositados ou inconvenientes”.
Assim, a cláusula 6.ª (e o mesmo se pode dizer da cláusula 4.ª), porque preenche aqueles requisitos, isto é, porque não respeita o critério da razoabilidade e o princípio geral da proporcionalidade e adequação, também é nula por aplicação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.
Acontece que a sua nulidade não afecta todo o contrato, atento o disposto no artigo 292.º do C. Civil.
Do que fica dito, podemos afirmar que a ordem de transferência da ré corresponde à transferência jurídica de local de trabalho prevista no artigo 21.º, n.º 1, alínea e), da LCT e, actualmente, prevista nos artigos 122.º, n.º 1, alínea f), e 315.º, n.º 1, do CT.
E concluir que a autora foi transferida do local de trabalho, e não do lugar de trabalho, como, tacitamente, o entendeu a 1.ª instância, de forma incorrecta, afirmação que fazemos com respeito e por dever de ofício.

Mas se se entender que a cláusula é válida, importa averiguar se a invocação do direito que dela resulta, representa um exercício legítimo ou ilegítimo desse direito.
Tal cláusula consta do contrato de trabalho subscrito pelas partes, em 1 de Julho de 1991 e apenas foi accionada em Outubro de 2005, devolvidos mais de 16 anos de estabilidade profissional da autora.
E sobre o exercício ilegítimo do direito que resulta da cláusula 6.º, no acórdão da Relação do Porto, datado de 10.03.2008, proferido no processo n.º 6265/2007, 1.ª secção, que apreciou um caso semelhante ao dos autos e o qual, o ora relator, subscreveu como 2.º adjunto, foi dito:
“(...), recorrendo às regras da experiência e do senso comum, que não obstante a existência da referida cláusula, no espírito da Autora, e no de qualquer pessoa colocada no seu lugar, se formou a convicção de que o seu local de trabalho se manteria inalterável, quanto mais não fosse, e na pior das hipóteses, circunscrito à região do Porto (à data da cessação do contrato de trabalho da Autora a Ré detinha na zona metropolitana do Porto 15 estabelecimentos).
E tal convicção ainda é mais forte no caso em análise, atendendo às funções que a Autora sempre exerceu – as de caixeira encarregada -, as quais, como sabemos, não têm natureza “ambulatória”. Neste sentido é a posição de Bernardo Lobo Xavier (obra citada, p. 302), que aqui se deixa expressa por se acolher inteiramente: “Admitimos que as disposições contratuais que sejam demasiado latas – p. ex., consentindo que o empregador transfira o trabalhador para qualquer um dos seus estabelecimentos no país ou na EU – sejam interpretadas restritivamente, em termos de proteger situações que se consolidem para o trabalhador, pelo facto de durante muitos anos o empregador não se prevalecer das cláusulas contratuais que facilitam a transferência, protegendo-se assim uma justa expectativa de estabilidade”.
E tal fundada e justa expectativa por parte da Autora – de que afinal o seu local de trabalho estava confinado à região do Porto -, merece acolhimento e protecção jurídica, devendo a cla. 6.ª do referido contrato ser interpretada e ter o alcance acabado de referir em homenagem ao princípio da boa fé estabelecido nos arts. 762 º n º 2 do C. Civil e 119 º do C. do Trabalho.
A assim não se entender, então a cla. 6.ª – com o alcance defendido pela Ré: faculdade de deslocar o trabalhador sem qualquer limite ou de forma ilimitada -, ofende claramente o direito do trabalhador à conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar consagrado no art. 59.º n.º 1 al. b) da C.R. Portuguesa, e põe igualmente em causa o direito à segurança no emprego consagrado no art. 53.º da C.R. Portuguesa (neste sentido José Andrade Mesquita em Direito do Trabalho, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2003, p. 403)”.
E no que respeita ao controlo do exercício do direito plasmado nas cláusulas de mobilidade geográfica, concordamos que “O primeiro parâmetro de avaliação se reconduz ao princípio da boa fé, cláusula geral comportamental que, tendo em conta uma relação especial entre duas esferas jurídicas, é susceptível de gerar legítimas expectativas de conduta, exigências de lealdade, razoabilidade e correcção que constituem um pressuposto básico da cooperação interpessoal”.
E os deveres de conduta impostos pelo princípio da boa fé, assumem maior relevo numa “relação duradoura, sobretudo que postule laços de confiança e colaboração entre as partes, como é o caso do contrato de trabalho. (...). Como regra de conduta para o exercício de direitos, a boa fé surge então como factor de racionalização do exercício dos poderes empresariais, como um limite implícito que condiciona o exercício regular dos direitos e poderes da entidade empregadora”. (cfr. Joana Nunes Vicente, obra citada, págs.85-86).
E porque a relação laboral dos autos se enquadra “nas relações de poder”, são-lhe de aplicabilidade imediata os direitos fundamentais consagrados na Constituição Portuguesa, como sejam o direito à segurança no emprego e o direito da autora à conciliação da vida profissional com a vida familiar.
Em conclusão: as cláusulas de mobilidade geográfica, previstas no artigo 315.º, n.º 3, do CT, devem ser “cláusulas do razoável”, de proporcionalidade e de adequação, que funcionem como “limite normativo de função negativa”, no sentido de que a deslocalização de um trabalhador não possa constituir um despedimento encapotado.
No caso dos autos, quer se defenda a nulidade da cláusula 6.ª aposta no contrato de trabalho, quer se defenda a sua validade, com a interpretação restritiva a que se chegou, temos necessariamente de concluir que a ordem dada pela ré à autora, no sentido de a mesma passar a trabalhar na cidade da Covilhã, deve ser analisada à luz do disposto no artigo 315.º, n.º 1, do CT, isto é, se da mudança resultaria, ou não, prejuízo sério para a autora.

Do prejuízo sério
A lei não precisa o conceito de prejuízo sério, no entanto, parece certo, que não deve tratar-se de um qualquer prejuízo, mas de um dano relevante, que determine uma alteração substancial do plano de vida do trabalhador.
O prejuízo sério deve ser apreciado segundo as circunstâncias concretas de cada caso e dependerá, nomeadamente, de uma deslocação diária muito mais morosa e onerosa ou duma acrescida dificuldade diária de transporte ou da impossibilidade de uma deslocação diária, atenta a distância a percorrer, ficando o trabalhador limitado, por exemplo, apenas a uma deslocação semanal ou quinzenal, com eventuais reflexos na sua vida pessoal e/ou familiar.
Sobre tal questão está provado, por acordo das partes, que “A A. reside em ………., Matosinhos, onde tem o seu agregado familiar e centrada a sua vida sócio-familiar” - alínea o) da matéria de facto.
Além disso, é facto notório que entre Matosinhos (residência da autora) e a Covilhã (novo local de trabalho) distam cerca de 200 Km, o que impossibilitaria deslocações diárias da autora, ainda que em viatura própria, não só pelo tempo necessário a percorrer tal distância e pelo desgaste físico e psíquico inerente, mas, sobretudo, pelos elevados custos que tais deslocações diárias comportariam.
Mas ainda mais relevante do que o elevado custo com as deslocações, mesmo que semanais, entre Matosinhos e a Covilhã, e vice-versa, seria a desorganização familiar que tal transferência acarretaria, pois, tendo o casal dois filhos menores, a deslocação da mãe teria consequências mais gravosas, pois, quer se queira, quer não, a mãe ainda é, sobretudo nas camadas menos instruídas da população, o elemento do casal que tradicionalmente trata dos filhos e da lida da casa, antes e depois da jornada de trabalho na empresa.
E a ausência diária da autora do seio familiar, não só seria um elemento potenciador de ansiedade e de stresse laboral (doença do trabalho em desenvolvimento acelerado na sociedade contemporânea, como é sabido), como de stresse familiar, com consequências negativas na estabilidade do casal, dos filhos e da própria família.
Deste modo, consideramos que, no caso concreto dos autos, a distância a percorrer e a alteração substancial do plano de vida e familiar da autora, que ocorreria com a sua transferência para a Covilhã, constituem prejuízo sério para efeitos do disposto no artigo 315.º, n.º 1, assistindo à autora, o direito à indemnização prevista no artigo 443.º, n.º 1, ambos do C. do Trabalho.
E porque dos autos não resultam elementos que permitam minorar ou majorar o número médio de 30 dias de retribuição base por cada ano completo de antiguidade e fracção (n.º 2), fixamos a indemnização no montante de € 11.846,74 (€ 620,79 x 19 anos + 1 mês).

IV – A Decisão
Atento o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, a qual é substituída pelo presente acórdão que declara lícita a resolução do contrato de trabalho dos autos e condena a ré:
- A pagar à autora a indemnização por antiguidade no montante de € 11.846,74 (onze mil oitocentos e quarenta e seis euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão até integral pagamento.
Custas, nas duas instâncias, a cargo da autora e da ré, na proporção do decaimento.

Porto, 2008-04-07
Domingos José de Morais
António José Fernandes Isidoro
Albertina das Dores Nunes Aveiro Pereira