Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0656587
Nº Convencional: JTRP00040004
Relator: MARIA DO ROSÁRIO BARBOSA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO ESPECIAL DE INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSIQUICA
VARAS CIVEIS
JUIZOS CIVEIS
TRIBUNAL COLECTIVO
Nº do Documento: RP200701310656587
Data do Acordão: 01/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 288 - FLS 123.
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo a acção especial de interdição por anomalia psíquica uma acção cível de valor superior à alçada do tribunal da Relação, não se exige a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente a mera previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir.
II - A competência material para apreciação e julgamento de tal acção compete às Varas Cíveis e não aos Juízos Cíveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O Ministério Publico intentou nas Varas Cíveis do Porto, acção com processo especial para interdição de anomalia psíquica.
Foi proferido despacho julgando incompetente para a referida acção as varas cíveis.
Deste despacho interpôs o Ministério público o presente recurso de Agravo.

São as seguintes as conclusões de recurso apresentadas:
1. Do teor do disposto nos artigos 17º da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) e 62º, n.º 2 do Código de Processo Civil, resulta que, no âmbito da actual lei orgânica dos tribunais judiciais a competência em função da forma do processo não é um critério determinativo da competência jurisdicional, já que o art.º 17º da LOFTJ não lhe faz qualquer referência.

2. Posto isto, cumpre averiguar se o processo especial de interdição por anomalia psíquica é da competência das varas cíveis, pois se o não for então é da competência dos juízos cíveis, atento o disposto no art.º 99º da LOFTJ.

3. Às varas cíveis compete, no que agora nos interessa, a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo - cfr. art.º 97º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro.

4. Não se exige, pois, a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente a mera previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir.

5. Também, não se exige que as acções sejam declarativas comuns, logo as acções declarativas cíveis especiais (nelas se incluindo as acções de interdição) que tenham valor superior à alçada da relação e em que a lei preveja a mera possibilidade de intervenção do tribunal colectivo são da competência originária das varas cíveis.

6. A presente acção, apesar de seguir a forma de processo especial e se regular pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns, e no que nestas não estiver prevenido, pelas disposições do processo ordinário, é uma acção declarativa cível de valor superior à alçada da relação - cfr. artigos 138º a 151º do Código Civil e 312º do Código de Processo Civil, já que é uma acção sobre o estado das pessoas e, por isso, excede o valor da alçada da relação -, e em que a lei prevê a possibilidade de intervenção do tribunal colectivo - cfr. artigos 952º, n.º 2 e 646º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.

7. Portanto, ab initio, a competência para preparar e julgar as acções especiais de interdição é das varas e não dos juízos cíveis.

8. Por isso, não há aqui lugar à aplicação do n.º 4 do artigo 97º da LOFTJ, ao contrário do defendido pela Mmª. Juíza, o qual se aplica àqueles processos em que originariamente não eram da competência das varas, nomeadamente, porque o seu regime jurídico processual é muito específico, como acontece, por exemplo, com o processo de expropriação, que tem uma fase administrativa (até ser interposto recurso de arbitragem) e uma fase judicial, nesta se prevendo a intervenção do tribunal colectivo (cfr. art.ºs 58º e 60º do CE, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18/9), independentemente do valor, a requerimento dos expropriados ou do expropriante.

9. Assim, ao julgar-se incompetente, o douto despacho em recurso violou as normas contidas nos art.ºs 97º, n.º1, al. a) e 99º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, 138º a 151º do Código Civil, 312º, 952º, n.º 2 e 646º, n.º 1, estes do Código de Processo Civil.

10. Deve, pois, ser revogado e substituído por outro que considere competentes as varas cíveis para conhecer da presente acção especial de interdição, no caso, a .ª vara cível do Porto, .º secção à qual foi distribuída.

Foi proferido despacho mantendo a decisão recorrida.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

A única questão que se coloca consiste em saber se para a preparação e julgamento de uma acção especial de interdição por anomalia psíquica são competentes (na comarca do Porto) os juízos cíveis ou as varas cíveis.

Nos termos do artigo 17º da LOFTJ (da qual serão todos os que forem citados sem indicação doutra origem), na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território. “A lei de processo determina o tribunal em que a acção deve ser instaurada em face do valor da causa” (artº 20º).
No entanto, estabelece o nº 1 do artigo 62º do CPC que a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização e pelas disposições deste código.
Remete-se, assim, para as leis da organização judiciária como fonte reguladora da competência dos tribunais judiciais, a par do CPC.
Todavia, o seu nº 2 determina que na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, a forma de processo aplicável e o território.
Assim, há que concluir que, no âmbito da actual lei orgânica, a competência em função da forma de processo não é um critério determinativo da competência jurisdicional. Por outro lado, estabelece o artigo 68º do CPC que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo valor ou pela forma de processo aplicável, se inserem na competência dos tribunais singulares e dos tribunais colectivos, estabelecendo este código os casos em que às partes é lícito prescindir da intervenção do colectivo.
Dado que, nos termos do artigo 68º do CPC, a lei processual não define, em função do valor da causa, qualquer tribunal onde ela deva ser instaurada, há que concluir que a remissão realizada pelo artigo 20º da LOFTJ para aquela lei não tem sentido. Há que efectuar, por isso, uma interpretação ab-rogatória do artigo 20º da LOFTJ e concluir que o critério do valor da causa não se destina a aferir a competência jurisdicional.
Ora, como determina o nº 1 artigo 64º, pode haver tribunais de 1ª instância de competência especializada e de competência específica.
“Os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas em função da forma de processo aplicável...” (64º, nº 2).
Os tribunais de 1ª instância funcionam, consoante os casos, para julgamento da matéria de facto, como tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal de júri.
Aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais. E como determina o artigo 99º compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não seja de competência das varas e dos juízos de pequena instância cível.
Trata-se, portanto, de competência específica residual.
Daí que seja necessário averiguar se a competência em causa cabe às varas. Se assim não for, a competência será dos juízos. Dispõe o artigo 97º da LOTJ que compete às Varas Cíveis:
a) a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo;
b) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2 ...
3. São remetidos às varas cíveis os processos pendentes nos juízos cíveis em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência.4. São ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.
5....
c)
Compete, pois, às varas cíveis, nomeadamente, a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo. É, pois, necessária a verificação cumulativa destes dois requisitos: a acção declarativa ter valor superior à alçada da relação e a lei prever a possibilidade de intervenção do tribunal colectivo.
E são remetidos às varas cíveis os processos pendentes nos juízos cíveis em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência. Portanto, se num processo da competência dos juízos em razão do valor este for alterado para a competência das varas, para aí será remetido o processo.
E são ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo. Como é sabido, o julgamento das acções em processo ordinário com a intervenção do colectivo tem sofrido várias alterações (artº 646º do CPC): desde uma fase em que a regra era a intervenção do colectivo ate ao sistema actual em que este apenas intervém quando for requerido pelas partes (DL nº 182/00, de 10.08). Estabelece agora o nº 1 do artigo 646º que a discussão e julgamento da causa são feitos com intervenção do tribunal colectivo, se ambas as partes assim o tiverem requerido. Trata-se de uma acção que segue a forma de processo especial (artigos 944 a 958º do CPC). Nos termos do artigo 463º do CPC “o processo sumário e os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerias e comuns; em tudo quanto não estiver prevenido numas e noutras, observar-se-á o que se acha estabelecido para o processo ordinário”. Em relação ao processo ordinário verificam-se algumas alterações significativas nas acções de interdição. Todavia, na parte que agora interessa, estabelece o artigo 952º:
1. Se o interrogatório e o exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção não tiver sido contestada, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou inabilitação.
2. Nos restantes casos, seguir-se-ão os termos do processo ordinário, posteriores aos articulados.
Portanto, findos os articulados e o exame, se a acção tiver sido contestada, ou o processo não oferecer elementos suficientes, a acção prosseguirá segundo as regras do processo ordinário.
Como é óbvio, até esta fase não intervém o tribunal colectivo. Mas o mesmo sucede nas acções ordinárias até à fase de julgamento. E nestas poderá nem haver intervenção do colectivo. Só haverá se ambas as partes o requererem. E há mesmo casos em que não é admissível a intervenção do colectivo (artº 646º, nº 2). E nem por isso se põe em causa a competência das varas para a sua preparação e julgamento.
E tendo em consideração que se trata de uma acção declarativa cível de valor superior à alçada do tribunal da Relação e em que se prevê a intervenção do colectivo, os tribunais competentes para a preparação e julgamento são as varas cíveis, ainda que, por virtude de o réu não oferecer a sua defesa, não haja efectivamente lugar à intervenção daquele tribunal.
É que não nos parece estarmos perante um caso em que seja aplicável o nº 4 do artigo 97º, ou seja: são remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência.
A competência originárias é das varas e não dos juízos. Com efeito tratando-se, como se trata, de uma acção cível de valor superior à alçada do tribunal da relação não se exige a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente a mera previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir. E não nos parece que se justifique que a acção seja proposta nos juízos cíveis, sendo depois remetida para as varas nos casos em que houver lugar a julgamento, quando é certo que, em teoria, este sempre poderá ter lugar. Para tanto basta que a acção seja contestada ou o interrogatório e o exame não forneçam os elementos necessários para que a interdição ou a inabilitação sejam desde logo decretadas.
Concluímos, assim, no sentido de que os tribunais competentes para conhecer dos processos especiais de interdição são, no Porto, são as varas cíveis.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro, que considere competentes as Varas Cíveis para conhecer da presente acção especial de interdição no caso a .ª a Vara Cível à qual foi distribuída.
Sem custas.

Porto, 31 de Janeiro de 2007
Maria do Rosário Marinho Ferreira Barbosa
Abílio Sá Gonçalves Costa
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho