Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0714648
Nº Convencional: JTRP00041371
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: VIOLAÇÃO DE NORMAS ORÇAMENTAIS
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RP200805210714648
Data do Acordão: 05/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 530 - FLS 144.
Área Temática: .
Sumário: I - Os Tribunais Criminais são competentes para o julgamento do crime de “violação de normas de execução orçamental” previsto e punido pelo art. 14º da Lei 34/87, de 16/7.
II - O referido preceito incriminador não foi revogado pelo art. 65.º, n.º 1, al. b) da Lei 98/97, de 26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO (Tribunal da Relação)
Recurso n.º 4648/07
Processo n.º …../02.6TAVNF
Em audiência na 1.ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO

1- No ..º juízo criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, no processo acima referido, foi julgado B………., em processo comum com tribunal singular, e a final foi proferida a seguinte decisão:
-condenado como autor material de um crime de violação de normas de execução orçamental, p. e p. pelo art.14º, al.a) da L.nº.34/87, de 16-7, na pena de 5 meses de prisão, substituídos por igual tempo de multa, ou seja, 150 dias de multa, à taxa diária de 15 euros.

2- Inconformado, interpôs recurso o dito arguido, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
- É da competência própria do Tribunal de Contas a verificação da violação de normas de execução orçamental e a aplicação da pena de multa, como resulta do disposto na alínea b) do n° 1 do artigo 65° da Lei n° 98/97, de 26 de Agosto.
- A coincidência textual entre o disposto no artigo 14° da Lei n° 34/87, de 16 de Julho, e o disposto no artigo 65° da Lei n° 98/97, de 26 de Agosto, é, só por si, suficiente para levar o intérprete à conclusão de que o primeiro preceito se encontra tacitamente revogado pelo segundo.
- A admitir-se que continua em vigor o artigo 14° da Lei n° 34/87, tal equivaleria a admitir-se que o agente pode ser punido duas vezes pelo mesmo facto, com base em duas leis de carácter penal, o que foi determinantemente excluído pelo legislador constitucional, pelo n° 5 do artigo 29° da CRP.
- Embora o princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido tenha em vista uma sucessão de leis no tempo, é de considerar que, por elementares razões de justiça, que a aplicação do mesmo princípio deve ser convocada no caso de subsistirem duas normas de carácter penal, a de 87 e a de 97, à data dos factos puníveis, sendo sempre aplicável ao arguido o regime globalmente mais favorável, que é o que consta da Lei n° 98/97.
- Apesar de não ter revogado expressamente o artigo 14° da Lei n° 34/87, o artigo 115.° da Lei n° 98/97 utilizou uma técnica legislativa suficientemente clara e objectiva para que o intérprete possa, sem dificuldades de maior, perceber o seu conteúdo, sendo que o legislador, ao lançar mão do advérbio "designadamente", pretendeu significar, salvo melhor opinião, que a lista das revogações expressas não é exaustiva, nem sequer preclusiva.
- Como é de aplicar aos factos sub judice o disposto na Lei n° 98/97, é forçoso concluir pela incompetência material dos Tribunais criminais para a apreciação do caso concreto, o que acarreta a nulidade de todo o processado, nos termos da alínea e) do artigo 119° do CPP;
- A sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, uma vez que existem, verdadeiramente, cinco contratos de aquisição de serviços, como, aliás, o considerou o Acórdão do STJ, de 29 de Março de 2007, proferido sobre este mesmo caso.
- A sentença recorrida deixou de tomar posição sobre uma questão relevante: saber se os escritos são, ou não, contratos, e nada refere quanto à data do pretenso único negócio jurídico.
- Do texto de cada um dos cinco contratos juntos aos presentes autos, consta expressamente que a C………. representa e trabalha com um grupo de escultores dos mais qualificados e representativos da arte contemporânea".
- Foram, pois, celebrados cinco contratos, titulando cinco negócios jurídicos diferentes, cada um com as suas partes contratantes, cada um com o seu objecto, cada um com o seu preço, cada um com o seu próprio contrato e cada um gerando obrigações próprias e diferentes para cada um dos cinco artistas plásticos, não se tratando de adquirir obras de arte já concebidas e executadas, mas sim de contratar serviços de idealização e concepção de projectos escultóricos ainda a elaborar.
- Há erro notório na apreciação da prova, quando a sentença recorrida considera como não provados os factos que constam do n° 2, 3, 4 e 5 do respectivo elenco.
- A verificação da existência de dotação orçamental tem que ser feita, e só pode ser feita, em cada uma das datas constantes dos contratos e analisando as dotações existentes a partir do orçamento inicial e das alterações e revisões orçamentais, e como estas últimas não constam dos autos, o Tribunal não pôde verificar a existência ou inexistência de dotações orçamentais nas datas em que os escritos foram outorgados, ao contrário do que a sentença diz ter sido verificado.
- A única coisa que o Tribunal podia verificar, e devia ter verificado, a partir da versão inicial do orçamento para o ano de 2001 era exactamente o contrário do que diz ter observado: a existência de dotação orçamental.
- O único documento que se refere a uma "falta de cativação, cabimentação el ou dotação orçamental" é a informação prestada no dia 15 de Abril de 2002, pela então Directora do Departamento Administrativo e Financeiro, mas essa referência reporta-se ao "Plano e Orçamento/ 2002", período este - 2002 - em que o arguido já não exercia as funções de Presidente da D………. .
- Na questão da cabimentação da despesa assumida pelo arguido, na celebração dos cinco contratos, se tal cabimentação fosse devida, há um manifesto erro na apreciação da prova, e o depoimento das testemunhas E………., F………., G.………., H………., I………. e J………., para além das declarações do legal representante do assistente, impunham decisão diversa da recorrida, pois que nenhuma, rigorosamente nenhuma testemunha referiu que não havia cabimentação orçamental para a despesa assumida pelo arguido com a celebração dos cinco contratos, e, por outro lado, a falta de cabimentação só pode ser provada por documento escrito (precisamente o documento provindo da divisão financeira que recusa a cativação).
- A cabimentação só tem que ser efectivada no ano em que vai ocorrer o pagamento da despesa, não no ano da celebração dos contratos, e os pagamentos relativos à aquisição dos projectos escultóricos e dos correspondentes direitos de autor só teriam que ser realizados em 2002, porque foi isto mesmo que foi acordado entre o representante da C………. e o Director do Departamento de Educação e Cultura, e, aliás e por isso mesmo, todas as facturas foram emitidas no ano de 2002. Portanto, no ano da celebração dos contratos, em 2001, não havia lugar ao pagamento de qualquer despesa.
- Embora a referência ao n° 1 do artigo 26° do Decreto-Lei n° 341/83, de 21 de Julho, então vigente, seja correcta, a interpretação que dele se faz na sentença recorrida é absolutamente errónea, na medida em que a exigência de dotação e cabimentação reporta-se à verificação cumulativa e no mesmo ano de três requisitos da despesa: assunção, autorização e pagamento.
- Dispõe o n° 2 do artigo 18° da Resolução n° 7 de 98, do Tribunal de Contas, que "a informação de cabimento, a prestar nos termos do artigo 9°, respeita ao montante da despesa a pagar no ano da celebração do contrato", isto é, a cabimentação só deve ser realizada no ano em que for devido o respectivo pagamento.
- De acordo com o disposto no artigo 27° do Regulamento da Organização dos Serviços da D………., publicado no Apêndice n° 68/97, de 4 de Agosto, pelo Aviso n° 1559/97 (2a Série), é aos directores de departamento ………. que compete "promover o controlo da execução do plano de actividades e orçamento no âmbito do departamento (ponto 1.3).
- Dispõe o n° 2 do artigo 10° do Código Penal que "a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado". O arguido não violou qualquer dever jurídico, não só porque a cabimentação só tem de ser realizada no ano económico do pagamento da despesa, como também porque ao arguido não lhe competia, em concreto, proceder à referida operação, porque a lei reserva tal competência aos directores de departamento ………. .
- O disposto no n° 1 do artigo 26° do Decreto-Lei n° 341/83, de 21 de Julho, tem que ser interpretado de modo conjugado com a resolução do Tribunal de Contas, pela qual a cabimentação só tem que ser operada no ano do pagamento da despesa.
- A alegada falta de autorização do órgão D………. nunca constituiria matéria de violação de norma de execução orçamental, porque as normas de execução orçamental são as mesmas, quer se trate de despesa autorizada ou aprovada por este órgão, quer se trate de despesa assumida apenas pelo respectivo presidente.
- De acordo com o disposto na alínea a) do n° 1 do artigo 18° do Decreto-Lei n° 197/99, de 8 de Junho, é da competência própria do Presidente da D………. a realização de despesas até 30.000 contos cada uma.
- Foi a incapacidade da sentença recorrida de perceber a existência de cinco contratos que viciou todo o raciocínio, e que gerou, na mesma sentença, a alegada obrigação do arguido de obter autorização do órgão que representava, a D………., em função do valor global dos cinco contratos (50.000 contos), mas ainda que fosse necessária a aprovação do órgão D………. para a realização dos contratos, o vício que se gerava nos contratos era o da sua anulabilidade, que fica sanado se não for judicialmente suscitado no prazo de impugnação (3 meses)
- Sendo legais aqueles contratos, não podem constituir elemento objectivo do crime
- A alegada divisão politica que justificaria a não submissão dos contratos a reunião ………., não passa de suposições e a sentença recorrida não logrou demonstrar a existência de nexo de imputação dos factos ao arguido, e nenhuma testemunha afirmou que tal divisão política justificou a existêcia dos 5 contratos escritos
- Todas as testemunhas excluíram, aliás expressamente, não só o dolo, em qualquer das suas modalidades, mas também qualquer outro tipo de culpa menos censurável, como a negligência.
- A matéria de facto que consta dos pontos 7, 11, 12 e 14 do elenco dos factos provados foi julgada de forma incorrecta, e a prova produzida em audiência de julgamento é suficiente para uma decisão diversa da recorrida, no que diz respeito também ao elemento subjectivo de ilícito.
- Deve dar-se como provado que havia cinco personalidades diferentes a contratar, de forma activa, ainda que através de representante comum, isto é, cinco artistas plásticos, a vender cada um os seus direitos de autor e assumir cada as demais obrigações; que se tenha tratado de cinco negócios jurídicos diferentes, cada um com as suas partes contratantes, cada um com o seu preço, cada um com o seu objecto e com um gerando as suas próprias obrigações; que a C………. sempre actuou, nos cinco contratos que outorgou com o D………., como representante dos cinco artistas plásticos; que havia dotação orçamental para a realização das despesas previstas nos cinco contratos; que a efectivação da cabimentação só deve ser realizada no ano do pagamento das despesas, isto é, em 2002; que não era necessária qualquer autorização do orgão D………. para que o arguido pudesse realizar os 5 contratos.
- Deve dar-se como não provado que não havia dotação orçamental em 2001 e que era necessário o cabimento nesse ano; que o arguida tinha consciência que a despesa não tinha cabimento; que sabia que era obrigatória a prévia autorização; que tenha dispersado a formalização em 5 contratos a fim de evitar aquela autorização ………., que tenha agido com dolo ou culpa.
- Deve a sentença ser revogada e absolvido o arguido

3- Nesta Relação, o Exmo PGA, acompanhando o recurso do MP na 1.ª instância, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso, dizendo ainda que o recorrente se pretende substituir ao julgador na formação da convicção, o que não pode ser.

4- De igual modo a assistente “D……….” se pronuncia pela sem razão do recurso (cfr resposta de fls 697 ss)

5- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a audiência
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FUNDAMENTAÇÃO
Os factos
Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos:
1- O arguido, exercendo as funções de Presidente da D………., nessa qualidade e no âmbito da iniciativa denominada “K……….”, outorgou cinco escritos denominados “Contrato entre a a) D………. e b) C………., do …….”;
2- Nesses escritos, aquela “C……….”, representada por L………., comprometeu-se a fazer entrega àquela D………. dos projectos de esculturas dos autores M………., N………., O………., P………. e Q………., bem como a vender-lhe os correspondentes direitos de autor, e aquele ………., representado pelo arguido, comprometia-se a celebrar com aquela “C……….” os contratos de aquisição dos direitos de autor daqueles artistas;
3- O custo de cada projecto era de esc.10.000.000$00, e o D………., representado pelo arguido, obrigava-se, com a entrega de cada projecto, ao pagamento, à C………., de 10% do custo e o remanescente em três prestações trimestrais, a contar da data da assinatura do respectivo escrito;
4- Com data de 8 de Agosto de 2001 foram outorgados dois dos referidos escritos, relativos aos artistas M………. e N………., que entregaram os seus respectivos projectos de escultura;
5- E, com data de 29 de Novembro de 2001 foram outorgados três dos referidos escritos, relativos aos artistas P………., O………. e Q………., que entregaram os seus respectivos projectos de escultura;
6- Tais escritos foram outorgados sem que previamente tal despesa estivesse cabimentada em dotação orçamental e sem que tivesse existido qualquer autorização por parte da D………., sendo que os compromissos com a aquisição dos projectos escultóricos e dos direitos de autor em causa perante a “C……….”, totalizavam o valor de esc.50.000.000$00 (249.398,95 euros), acrescidos de IVA à taxa de 17º, num total de 58.500.000$00 (291,796,77 euros);
7- O arguido actuou com perfeita consciência e de forma deliberada, bem sabendo que a despesa não tinha cabimento e de que atento o seu valor global era obrigatória a prévia autorização da D……….;
8- Sabia também o arguido que tal conduta era proibida por lei;
9- Exceptuando a alusão à entrega individual do projecto por cada um dos cinco artistas, todos os escritos referidos em 4. e 5. reproduzem textualmente e pelas mesmas palavras as cláusulas acima referidas;
10- Todos os escritos tiveram por base a mesma negociação, sempre com os mesmos contraentes e com o mesmo objecto, a aquisição de projectos escultóricos de artistas já previamente definidos;
11- O arguido sabia que não tinha existido autorização da D………. para a celebração do referido acordo ou para a outorga daqueles escritos, nem para a realização da despesa deles decorrente;
12- Actuou dispersando a formalização do negócio em cinco escritos com o objectivo de subtrair a respectiva despesa à necessária aprovação da D……….;
13- O arguido sabia ainda que nenhuma despesa das ………. pode ser assumida, autorizada e paga sem que esteja inscrita em orçamento a dotação adequada e nela tenha cabimento;
14- Sabia também que a despesa emergente dos escritos, global ou individualmente, não estava cabimentada, nem sequer tinha dotação no orçamento da D……….;
15- Enquanto o arguido esteve na respectiva presidência, até Janeiro de 2002, a D………. nada pagou à “C……….” por conta do aludido acordo, apesar de os artistas já terem entregue os respectivos trabalhos, como referido em 4. e 5.;
16- Cada uma das obras artísticas em causa seria realizada e apresentada com materiais diferentes;
17- Todos os artistas plásticos referidos em 2. eram representados pela mesma entidade, a “C……….”;
18- O arguido não tem antecedentes criminais;
19- É casado e está aposentado;
20- Exerceu durante cerca de 18 anos, e até Janeiro de 2002, as funções de Presidente da D……….;
21- As pessoas com quem o arguido mantém relações consideram-no uma pessoa cordial, amistosa e experiente.

E foi dado como não provado que:
1. O arguido tenha outorgado apenas um escrito e apenas no dia 29 de Novembro de 2001;
2. Houvesse cinco personalidades diferentes a contratar, de forma activa, ainda que através de representante comum, sendo cinco artistas plásticos a vender os seus direitos de autor, cada um vendendo os seus direitos;
3. Se tenha tratado de cinco negócios jurídicos diferentes, cada um com as suas partes contratantes, cada um com o seu preço e cada um com o seu objecto;
4. Tenha sido a existência de um único representante para os negócios jurídicos celebrados com os diversos artistas plásticos que tenha provocado, erradamente, a soma artificial dos montantes inscritos em cada um dos referidos contratos;
5. A “C……….” sempre tenha actuado como representante, nos negócios que celebrou com o D……….;
-
O direito
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, extraídas das motivações apresentadas, cabe agora conhecer das questões ali suscitadas.
Começa o recorrente por dizer que o tribunal criminal (tribunal recorrido) era incompetente para julgar o caso, porquanto é da competência própria do Tribunal de Contas a verificação da violação de normas de execução orçamental e a aplicação da pena de multa, como resulta do disposto na alínea b) do n° 1 do artigo 65° da Lei n° 98/97, de 26 de Agosto, lei esta que terá revogado tácitamente o artigo 14° da Lei n° 34/87, de 16 de Julho (crime pelo qual foi condenado); a admitir-se que continua em vigor o artigo 14° da Lei n° 34/87, tal equivaleria a admitir-se que o agente pode ser punido duas vezes pelo mesmo facto, com base em duas leis de carácter penal
O art 14.º da Lei 34/87, de 16-7, pelo qual o arguido foi condenado, dispondo como título “Violação de normas de execução orçamental”, diz: «O titular de cargo político a quem, por dever do seu cargo, incumba dar cumprimento a normas de execução orçamental e conscientemente as viole:
a) Contraindo encargos não permitidos por lei;
b) Autorizando pagamentos sem o visto do Tribunal de Contas legalmente exigido;
c) Autorizando ou promovendo operações de tesouraria ou alterações orçamentais proibidas por lei;
d) Utilizando dotações ou fundos secretos, com violação das regras da universalidade e especificação legalmente previstas;
será punido com prisão até um ano ».
O segundo diploma referenciado pelo recorrente é a lei que tem a designação expressa de “Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas”, e que prescreve no seu art. 65.º, sob a epigrafe “Responsabilidades financeiras sancionatórias” «1 - O Tribunal de Contas pode aplicar multas nos casos seguintes:
a) Pela não liquidação, cobrança ou entrega nos cofres do Estado das receitas devidas;
b) Pela violação das normas sobre a elaboração e execução dos orçamentos, bem como da assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas ou compromissos» (...);
Desta alegada coincidência verbal dos dois dispositivos e na sua sucessão o recorrente retira a conclusão de que o primeiro preceito se encontra tacitamente revogado pelo segundo, para daí extrair depois a conclusão de que agora só lhe poderia ser assacada a responsabilidade financeira pela violação das normas de execução orçamental, responsabilidade esta da competência exclusiva do Tribunal de Contas, assim tendo havido descriminalização daquela conduta.
Em primeiro lugar, não vemos na redacção das duas normas em causa uma tão grande similitude que consinta a conclusão de que o legislador terá querido afastar o carácter criminal da conduta, ou que o intérprete assim o faça (dizemos o intérprete porque, em bom rigor, o recorrente nunca alude à intenção do legislador; mas não podemos reportar-nos a uma suposta revogação ou descriminalização se não pudermos falar da intenção do legislador). Nem existe aquela semelhança de redacção, nem os enunciados são sobreponíveis: a primeira é uma norma que cria um tipo legal de crime, a segunda norma afirma (reafirma, como veremos) uma responsabilidade meramente financeira do executor do orçamento que viole uma norma de procedimento ou de disciplina na execução do mesmo orçamento. E que fosse coincidente a redacção, nem isso teria nada de estranho, visto que têm parcialmente por objecto uma mesma matéria, a relativa à execução orçamental. Vêr na semelhança na redacção de normas contidas em dois diplomas tão diferentes (um relativo à responsabilidade criminal, o outro atinente à organização e funcionamento do Tribunal de Contas) uma intenção de descriminalização de uma conduta é um passo demasiado ousado e que as regras da interpretação não consentem.
Na verdade, e desde logo, não é possível detectar no segundo diploma qualquer referência ao primeiro diploma ou à relevância criminal da conduta. Ora, a letra ou texto da norma é, naturalmente, o ponto de partida de toda a interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar tudo quanto não tenha apoio ou correspondência no texto da norma.
Mas mais relevantemente, é que seria bem estranho, e até perturbador do ponto de vista do funcionamento da democracia e da segurança jurídica, que uma norma definidora da responsabilidade criminal fosse revogada ou afastada por uma norma inserida num diploma relativo à organização e processo de uma entidade do Estado que não tem competências na esfera criminal. E num tempo em que já se falava tanto do combate à corrupção, no desregulamento financeiro das autarquias e do Estado em geral, na necessidade de responsabilizar criminalmente os responsáveis políticos de modo a reprimir e prevenir práticas de indisciplina financeira, seria bem estranho que uma norma penal fosse pura e simplesmente varrida do mundo pela publicação de um diploma que contém uma norma de leitura simples e evidente: quando houver violação das normas sobre a elaboração e execução dos orçamentos, bem como da assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas ou compromissos, o Tribunal de Contas pode aplicar uma multa ao responsável político. De resto, já a anterior lei que regulava o funcionamento do Tribunal de Contas (Lei n.º 86/89, de 8-9), entretanto revogada pelo art. 115.º da actual lei do Tribunal de Contas (a citada Lei n.º 98/97, de 26-8), dispunha no seu art. 48.º que «1 - O Tribunal de Contas pode aplicar multas nos casos seguintes: a) Pela não liquidação, cobrança ou entrega nos cofres do Estado das receitas devidas; b) Pela violação das normas sobre a elaboração e execução dos orçamentos, bem como da assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas (...)». E que saibamos, nunca ali se viu a intenção de apagar do mundo do crime uma conduta que havia sido criminalizada dois anos antes
O Tribunal de Contas é o orgão que «fiscaliza a legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas, aprecia a boa gestão financeira e efectiva responsabilidades por infracções financeiras» (art. 1.º da citada Lei 98/97), em suma, o orgão máximo de controle da legalidade financeira do Estado (este entendido no seu sentido amplo). É por isso natural que as suas competências se limitem ao âmbito especifico da sua actuação, verificando ele, no domínio sancionatório, os pressupostos relativos às infracções às normas disciplinadoras da actividade financeira-contabilistica dos orgãos e agentes do Estado, a fim de assegurar uma boa e correcta gestão dos dinheiros públicos e de prevenir práticas desviantes. Mas o juízo de censura que é pressuposto no quadro de sanções da competência do Tribunal de Contas não consome ou exclui o âmbito dos juízos de censura que são postuladas por outras ordens de valores, designadamente penais e disciplinares (cfr. Sousa Franco, Finanças Publicas e Direito Financeiro, vol. I, 4.ª ed., 1995, p. 481).
Da autonomia entre responsabilidades de diferente natureza deriva que a imposição a uma mesma pessoa, como consequência de um mesmo facto, de duas sanções diferentes, uma de natureza penal, a outra de natureza disciplinar, financeira, etc, não está a por em causa o principio "ne bis in idem". È aliás o que é frequente no domínio da responsabilidade disciplinar dos funcionários ou agentes do Estado, que se cumula com a responsabilidade criminal, ou no campo dos chamados crimes de bolsa, previstos no Código de Valores Mobiliários (abuso de informação, manipulação do mercado, etc), que convivem com sanções acessórias impostas administrativamente. Ou seja, em resumo, tal princípio não tem aplicação quando se impõe a distinção entre sanções de natureza diferente, com decisores diversos e procedimentos distintos.
De resto, a responsabilidade penal só pode ser averiguada e declarada pelos tribunais judiciais (art 209.º- 4), não por uma qualquer instituição administrativa ou politico-administrativa (Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição Anotada, 3.ª ed., p. 819), o que é, enfim, uma expressão do chamado princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal ou princípio da mediação judicial: as sanções de direito penal e a responsabilidade criminal de uma pessoa só podem ser decididas pelos tribunais, que são órgãos de soberania, independentes, órgãos que julgam com imparcialidade.
A idéia básica do “non bis idem” é que ninguém pode ser condenado duas ou mais vezes por um mesmo facto. Já foi definida essa norma como “princípio geral de direito”, que, com base nos princípios da proporcionalidade e coisa julgada, proíbe a aplicação de dois ou mais procedimentos, seja em uma ou mais ordens sancionadoras, nos quais se dê uma identidade de sujeitos, factos e fundamentos
A este respeito dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição Anotada, 3.ª ed. 1993, p. 194): «O n° 5 do art. 29.º da Constituição dá dignidade constitucional ao clássico princípio ne bis in idem. Também ele comporta duas dimensões: (1) como direito subjectivo fundamental garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo meu facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (2) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. Para a tarefa de «densificação semântica» do princípio, é particularmente importante a clarificação do sentido da expressão «prática do mesmo crime», que tem de obter-se recorrendo aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais. O problema pode não ser fácil casos de comparticipação, de concurso de crimes e de crime continuado (...). A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime».
Portanto, no caso em apreço, a responsabilidade financeira é cumulável com outras responsabilidades, vg civil, disciplinar, criminal. São diferentes os interesses e os valores tutelados por aquela norma de responsabilidade financeira dos valores tutelados pelo “tatbstand” penal: na primeira, uma boa e correcta gestão dos dinheiros públicos, com uma marcada função preventiva e reintegratória, isto é, de recuperação patrimonal e financeira por parte do responsável pela infracção; no segundo caso, valores essenciais à sociedade, mesmo relativos à moralidade e correcção da gestão pública.

A segunda linha de argumentação do recorrente passa pela afirmação de que no caso em análise existiram verdadeiramente cinco contratos de aquisição de serviços, não apenas um, e por isso, sendo contratos autónomos, não foram infringidas as limitações legais relativas aos montantes da despesa. Portanto, dar como provado que se tratou apenas de um contrato configura uma situação de erro notório na apreciação da prova.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova (n.º 2-c do art. 410.º do CodProcPenal), tem ele de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (vg. declarações em inquérito ou instrução) --- sem embargo do recurso às regras da experiência e a elementos de prova vinculada existentes no processo, como perícias e documentos autênticos, que também eles podem contraditar o juízo a que o tribunal chegou.
Consistindo e traduzindo-se num erro patente, no sentido de poder ser detectado por um homem médio --- aqui recorrendo-se á doutrinal noção de observador médio, do bom pai de família, atento e sensato ---, consubstanciando-se numa incorrecção evidente de constatação. Análise, apreciação e/ou valoração dos dados objectivos recolhidos da prova produzida, incorrecção essa que se pode evidenciar quer por uma constatação viciada pelo ponto de vista ou de focagem intelectual da questão, quer por uma análise sincrónica ou diacrónica dos factos, quer por uma apreciação concatenada com dados de uma experiência pessoal que não comum ou por uma valoração não admitida pelas vivências da generalidade das pessoas com a mesma formação humana e intelectual. O erro notório será sempre para a generalidade das pessoas óbvio, limitando a formação da convicção, como se normatiza no art. 127.º do CódProcPenal. O erro será relevante quando o dado objectivo recolhido da produção de prova permite uma conclusão filosófica e metodologicamente ilógica, denunciadora de subjectividade arbitrária notoriamente chocante para a experiência comum --- Maria João Antunes. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 4Q, I. 118 e ss e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 84/07/13. CJ/STJ. 111. 187, entre muitos).
Este vício ocorre nas seguintes situações: (1) retira-se de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou arbitrária, ou que não é defensável segundo as regras da experiência comum; (2) dá-se como provado algo que não podia ter acontecido; (3) determinado facto provado é incompatível ou contraditório com outro facto dado como provado ou não provado contido no texto da decisão recorrida; (4) há violação das regras sobre o valor da prova vinculada, das regras da experiência ou quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
No caso em apreço, o tribunal deu como não provado que no caso houvesse cinco personalidades diferentes a contratar (os artistas cujas obras foram encomendadas), de forma activa, ainda que através de representante comum, sendo cinco artistas plásticos a vender os seus direitos de autor, cada um vendendo os seus direitos e que assim se tenha tratado de cinco negócios jurídicos diferentes, cada um com as suas partes contratantes, cada um com o seu preço e cada um com o seu objecto. Em contrapartida, deu-se como provado que os dois escritos de Agosto de 2001 (relativo a dois artistas) e de 29 de Novembro de 2001 (relativo a três artistas) integram a contratação de um único negócio, cuja realização de despesa (pagamento dos preços das obras) não tinha cabimento orçamental. Depois, ainda no factos provados, o tribunal deu como assente, em sintese, que «9- exceptuando a alusão à entrega individual do projecto por cada um dos cinco artistas, todos os escritos referidos em 4. e 5. reproduzem textualmente e pelas mesmas palavras as cláusulas acima referidas ; 10- Todos os escritos tiveram por base a mesma negociação, sempre com os mesmos contraentes e com o mesmo objecto, a aquisição de projectos escultóricos de artistas já previamente definidos; 11- O arguido sabia que não tinha existido autorização da D………. para a celebração do referido acordo ou para a outorga daqueles escritos, nem para a realização da despesa deles decorrente; 12- Actuou dispersando a formalização do negócio em cinco escritos com o objectivo de subtrair a respectiva despesa à necessária aprovação da D……….»
Para sermos exactos, é verdade que o tribunal põe nos factos provados conclusões que devia, na indicação da formação da convicção (motivação dos factos provados) ter fundamentado, sendo que da mesma motivação apenas consta uma referência genérica aos factos assentes, que, depois de referir os depoimentos prestados, diz: «Tais declarações e depoimentos, conjugados entre si e com o teor dos documentos juntos aos autos e supra referidos, analisados criticamente e segundo as regras de experiência, levaram o tribunal a convencer-se quanto aos factos que apurou (sendo que uns resultam até apenas da própria análise dos documentos juntos, como sejam os próprios escritos de fls.8 a 17 e o que deles expressamente consta; o teor do relatório de actividades e conta de gerência de 2001 e as grandes opções do plano e orçamento de 2002, onde nenhuma alusão se faz à existência de tais compromissos assumidos ou à sua previsão para pagamento; e até o relatório de auditoria feita ao D………., referente aos exercícios de 2000 e 2001, efectuado pela firma “S……….”, onde, a única referência que se encontra sobre esta matéria, consta a fls.135). Relativamente ao conhecimento e consciência do arguido e sendo certo que o mesmo usou do seu direito ao silêncio, o tribunal baseou-se exactamente e como supra já se referiu, na análise conjugada de toda a prova produzida, sendo certo que, tendo o arguido já quase duas décadas de presidência ………. e, dada a sua experiência e toda a envolvência de que se revestiu o processo, relatado por quem nele teve também intervenção directa, dúvidas não subsistem no tribunal de que o arguido estava consciente da forma como procedeu e sabia como devia proceder em situações como a ora em causa».
Não se tratando propriamente de uma forma muito adequada e coerente de justificar a convicção relativa à existência de um único contrato e à inferência de conclusões de facto, entende-se no entanto que o tribunal entendeu tirar tal conclusão dadas as seguintes circunstâncias: «todos os escritos reproduzirem textualmente e pelas mesmas palavras as cláusulas acima referidas», «todos os escritos tiveram por base a mesma negociação, sempre com os mesmos contraentes e com o mesmo objecto, a aquisição de projectos escultóricos de artistas já previamente definidos»; e daí a conclusão final: «o arguido/recorrente actuou dispersando a formalização do negócio em cinco escritos com o objectivo de subtrair a respectiva despesa à necessária aprovação da D……….». Em suma, percebe-se que, dadas aquelas circunstâncias de facto (que, como veremos, são inquestionáveis, pois resultam dos documentos juntos aos autos) o tribunal recorrido tenha convocado depois as regras da experiência para concluir como concluiu: a existência de um único contrato, disperso por vários escritos
No entendimento do recorrente, foram celebrados cinco contratos, titulando cinco negócios jurídicos diferentes, cada um com as suas partes contratantes, cada um com o seu objecto, cada um com o seu preço, cada um com o seu próprio contrato e cada um gerando obrigações próprias e diferentes para cada um dos cinco artistas plásticos, não se tratando de adquirir obras de arte já concebidas e executadas, mas sim de contratar serviços de idealização e concepção de projectos escultóricos ainda a elaborar.
O que os documentos juntos aos autos nos dizem, e em parte tal encontra-se confirmado pelas declarações de algumas testemunhas (como melhor veremos), é bem diferente.
Dos documentos de fls 7 a 34 destes autos o que resulta é que foram realmente elaborados cinco escritos, em que são outorgantes a D………., representada pelo arguido-recorrente e a “C……….”, em que em cada um dos escritos esta se compromete a convidar e a entregar à 1.ª contratante um projecto de escultura de um determinado artista, comprometendo-se a vender os direitos de autor desses projectos (cláusulas 1-a) e 1-b) de cada um desses escritos) O custo de cada um dos projectos era igual, devendo pela entrega de cada projecto a D………. entregar à C………. 10% e o remanescente em 3 prestações trimestrais. (cláusula 1 e parte final de cada escrito)
Desde logo, a concretização formal dos escritos apresenta manifestas deficiências e contradições, que no entanto podem ser compreendidas (no sentido de que o caso tem um sentido que é inteligível e as coisas podem ser explicadas). A alínea c) da cláusula 1 (e única) diz que «os contratos serão celebrados em função e `a medida em que os respectivos projectos forem apresentados `a D……….». O que manifestamente seria, em princípio, do domínio da pura retórica, pois que logo no final do escrito se diz que o projecto já foi entregue e feita a entrega de 10% referente ao dito projecto. Mas o essencial está algures.
As cláusulas dos referidos escritos são rigorosamente as mesmas, isto é, iguais, excepção feita à identificação do artista. E significativamente, 2 dos escritos têm a data de 8-8-2001, referentes a 2 artistas, e três outros escritos têm a data de 29-11-2001, referentes a 3 artistas. Ou, de outro modo: temos 5 escritos, celebrados em duas datas, com os mesmos contratantes (a D………. e a C……….), com o mesmo conteúdo, com a entrega das obras nessas duas datas, com o pagamento à C………. de parte do preço nessas datas. E os artistas, isto é, que intervenção tiveram eles no acordo com a D……….?. Nada. Foi a C………. que os representou, que recebeu (ou ia receber, mesmo que em 2002, como referiu uma testemunha) o dinheiro relativo a cada projecto, foi ela que cedeu à D………. os direitos de autor relativos a cada uma das obras. Nada, pois, ao contrário do que diz o recorrente e à primeira vista parece inferir-se dos escritos, da existência de 5 contratos promessa, com 5 artistas. Na verdade, as obras eram referentes a um mesmo projecto de embelezamento de espaços públicos da D………., foi a C………. a contratar e a fazer a entrega dos projectos, a receber os pagamentos devidos (cfr os recibos d fls 18 e sgs; ou a acreditar em alguma prova produzida, que iria receber em 2002).
Unidade de contraentes, de objecto, de conteúdo. Como então dizer, senão por invocação de uma ficção, que se tratava de 5 contratos, cada um com diferentes contraentes e conteúdos?
As testemunhas que se referiram a estes factos confirmam a conclusão do tribunal. Assim, a testemunha T………. (fls 808 e 809 das transcrições) --- Director do Departamento da Cultura e que fez parte da comissão formada em Março de 99, que foi uma das pessoas que tratou do processo que deu origem aos escritos assinados (e que elaborou, pelo menos, a sua minuta inicial - cfr. fls.567 e s. e fls.8) --- afirmou, em substância, que se tratava de um projecto único para trazer as esculturas; L………., director da C………., que confirmou tratar-se de um projecto global com os 5 artistas (fls 850 das transcrições), que eram diferentes as datas dos contratos apenas porque eram diferentes os tempos em que os artistas deviam mandar os projectos (fls 851 das transcrições)
Destes depoimentos e da análise dos contratos não se pode deixar de inferir que os diversos escritos diziam respeito a um mesmo projecto, todos eles contendo cláusulas iguais, derivaram de uma única negociação com o dono da C………., que foi ele que contactou os artistas e em nome deles outorgou os escritos. Ou, por outras palavras, das declarações atrás referidas e dos documentos nos pontos atrás referidos, é legítimo, é imperioso concluir que estamos perante um único contrato, e não perante 5 contratos autónomos. Antes, e mais rigorosamente, apenas um contrato.
Ou que se trate de cinco contratos titulados pelos cinco documentos, o que é incontestável pelo que atrás se referiu (unidade de contratantes, de objecto e de conteúdo contratual) é que a pluralidade de títulos obedeceu a um propósito de dispersar uma despesa unitária para fugir ao cumprimento das regras relativas à previsão e autorização de despesas, o que fere os negócios de nulidade, nos termos dos arts 280.º-1 e 294.º do CódCivil.

Segundo a argumentação do recorrente, há também erro notório na apreciação da prova quando o tribunal recorrido não dá como provado que a despesa relativa ao citado contrato tinha previsão ou cabimentação orçamental, designadamente no Orçamento de 2001. Mais concretamente refere, em resumo: o único documento que se refere a uma "falta de cativação, cabimentação el ou dotação orçamental" é a informação prestada no dia 15-4-2002 (fls 7 dos autos) mas essa referência reporta-se ao "Plano e Orçamento/ 2002", período este - 2002 - em que o arguido já não exercia as funções de Presidente da D……….; nenhuma testemunha referiu que não havia cabimentação orçamental para a despesa assumida pelo arguido com a celebração dos cinco contratos, e, por outro lado, a falta de cabimentação só pode ser provada por documento escrito (precisamente o documento provindo da divisão financeira que recusa a cativação).
O documento de fls 7 consubstancia uma informação do departamento administrativo e financeiro da D………., na qual se diz, “inter alia”, que «No serviço de contabilidade não existiu, por “Conta da Gerência de 2001” qualquer registo de compromisso financeiro assumido pela “Comissão” nomeada a propósito (...)» --- refere-se ao projecto em causa nos autos; «Não existe qualquer cativação, cabimentação e/ou até dotação orçamental por conta do “Plano e Orçamento/2002»
A exactidão de tal informação foi confirmada pelas declarações em audiência da directora do citado departamento (cfr a fls 787 ss da transcrição).
E a sentença recorrida faz concretamente referência, na fundamentação de facto, aos documentos «juntos nos apensos (incluindo o relatório de actividades e conta de gerência de 2001, as grandes opções do plano e orçamento de 2002, o relatório de auditoria feita ao município, referente aos exercícios de 2000 e 2001, efectuado pela firma “S……….”)».
Ora, estes elementos de prova (designadamente os documentos atrás referidos) abalam a construção do recorrente, e nenhuma outra testemunha pôde afirmar a cabimentação-previsão-orçamentação daquela verba destinada ao dito projecto. Se é exacto que, como refere o recorrente, que «nenhuma testemunha referiu que não havia cabimentação orçamental para a despesa» --- com ressalva do que atrás se disse em relação ao depoimento da directora do departamento financeiro ---, o que era interessante, e importava para o caso, é que alguma testemunha tivesse referido que havia cabimentação orçamental.

No seu recurso alega o recorrente que a cabimentação daquela despesa só tinha que ser efectivada no ano de 2002, ano em que ia ocorrer o pagamento da mesma, não no ano da celebração dos contratos; os pagamentos relativos à aquisição dos projectos escultóricos e dos correspondentes direitos de autor só teriam que ser realizados em 2002, porque foi isto mesmo que foi acordado entre o representante da C………. e o Director do Departamento de Educação e Cultura, e, aliás e por isso mesmo, todas as facturas foram emitidas no ano de 2002.
Em primeiro lugar, se é exacto que as facturas juntas aos autos se reportam ao ano de 2002, também é certo que os designados “recibos provisórios” de fls 19, 22, 26, 28 e 30 foram emitidos em 2001, o que revela bem a intenção dos contraentes de fazerem o reporte do contrato ao ano de 2001.
Depois, dispõe o art. 26º, nº.1 do D.L. n.º 341/83, de 21-7, então vigente, que «Nenhuma despesa poderá ser assumida, autorizada e paga sem que, para além de legal, esteja inscrita em orçamento a dotação adequada e nela tenha cabimento», (redacção esta também constante do Decreto Regulamentar.nº.92-C/84, de 28-12, e do “POCAL”, aprovado pelo D.L.nº.54-A/99, de 22-2 e alterado pelos DLei. 215/99, de 14-9 e 315/00, de 2-12).
No caso presente, a assunção da responsabilidade pelo ………. emerge com a celebração dos escritos que, recorde-se, autorizam o pagamento imediato de parte do preço correspondente á execução das obras, e que, uma vez mais se diz, foram emitidos recibos provisórios relativos ao ano de 2001.
Aqui é oportuno convocar a judiciosa observação que a recorrida deixa na sua resposta ao recurso, quando diz que se vingasse a tese do recorrente «um qualquer Presidente da D………. em fim de mandato poderia sempre cometer os maiores desvarios financeiros, até em favorecimento de uma eventual recandidatura a esse cargo, pois, se as despesas que então contraísse sem previsão e sem cabimento orçamental só tivessem que ser pagas pelo próximo executivo camarário (que até poderia não ser por ele presidido), teria de ser este a “descalçar a bota”, aprovando a necessária dotação orçamental, cativando a despesa e pagando-a»
O art. 12.º do Decreto Regulamentar nº 92-C/84, de 28 de Dezembro, também invocado na sentença recorrida, estipulava o seguinte: «1- O processo de realização de despesas envolve as operações abaixo discriminadas, com a seguinte sequência: a) Verificação das condições legais para a realização das despesas, nomeadamente as estabelecidas no Decreto-Lei nº390/82, de 17 de Setembro ([1]); b) Emissão de requisição ou outro documento descritivo da despesa; c) Verificação do cabimento, cativando a importância correspondente à despesa na respectiva conta corrente e no Diário, e confirmação expressa do cabimento na requisição ou documento referido na alínea b); d) Autorização da realização da despesa (...)
Resulta pois da citada alínea c) acima transcrita que a cabimentação da despesa tinha de ser confirmada na requisição ou noutro documento declarativo da despesa, ou seja, no caso em apreciação, naqueles escritos de 2001, o que não aconteceu.
As despesas devem obedecer à legalidade, ao cabimento orçamental, à execução estrita (respeito do orçamento, não podendo as verbas terem diversa utilização daquela para que foram previstas). Trata-se, em suma, da tipicidade quantitativa e qualitativa das despesas.
Na execução do orçamento das ………. as despesas só podem ser cativadas, assumidas, autorizadas e pagas se, para além de serem legais, estiveram inscritas no orçamento e com dotação igual ou superior ao cabimento e ao compromisso, respectivamente (cfr. Ponto 2.3.4 – Execução orçamental, 2.3.4.2, alínea d), do POCAL, em anexo ao Decreto-Lei n.º 54-A/99, de 22 de Fevereiro).
À utilização das dotações da despesa deve corresponder o registo das fases de cabimento (cativação de determinada dotação visando a realização de uma despesa) e de compromisso (assunção, face a terceiros, da responsabilidade de realizar determinada despesa).
Em conformidade, a entidade competente para autorizar a despesa deve estar munida de todas as informações contabilísticas necessárias à concretização do acto, o que se traduz na existência de informação relativa à classificação económica da rubrica orçamental que vai suportar a despesa, à sua dotação global e ao saldo disponível.
A falta do cabimento é uma ilegalidade que gera a nulidade.

No que se refere ao argumento de que não incumbia ao recorrente a tarefa de verificar a cabimentação da despesa em causa (pois, segundo o recorrente, de acordo com o Regulamento da Organização dos Serviços da D………. é aos directores de departamento ………. que compete "promover o controlo da execução do plano de actividades e orçamento no âmbito do departamento”, basta apenas referir que o recorrente, enquanto titular de um orgão político, não pode simplesmente deitar a culpa para outros quando contrai responsabilidades em nome desse orgão ou do .......... . Ou seja, antes de celebrar contratos ou contrair obrigações não pode deixar de estar ciente (informado) da legalidade formal e substancial da acção.
Mas como acentua a recorrida na sua resposta, o essencial no caso em apreço é que o recorrente «sabia (ou devia saber) é que, nos termos da citada alínea c) do nº 1 do art. 12º do Decreto-Regulamentar nº 92-C/84, não podia outorgar os escritos sem ter a confirmação expressa do cabimento, antecipadamente prestada pelos serviços de contabilidade, e que essa confirmação deveria ter ficado a constar dos próprios escritos, ou em documento anexo»
Pelo menos o recorrente agiu com negligência ao omitir a obtenção e menção dessa informação de previsão da despesa

Por fim, quanto ao argumento de que há erro notório na apreciação da prova no que toca à “manifesta” falta do elemento subjectivo do crime, é bem preciso dizer que sendo a culpa um conceito material que se não esgota em cumprir o juízo de censura, mas inclui a razão da censura e com ela aquilo que se censura ao agente, torna-se desde logo possível a consideração, através dela, dos elementos do tipo de ilícito: não existe uma culpa jurídico-penal em si, mas só tipos de culpa concretamente referidos a singulares tipos de ilícitos (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, "As Consequências Jurídicas do Crime", Vol. I, pág. 218).
Como refere Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, v. II, 1981, p. 292) «existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptiveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica», o que é corroborado por N. F. Malatesta quando diz que «exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas se a concluir pela sua existência ... afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material. .. o homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim.» (A Lógica das Provas em Matéria Criminal, p. 172 ss)
No mesmo sentido se pronunciam os Acs da RelPorto, de 23-1-1985 e de 16-1-2005 (BMJ, 343-376 e 343-377), quando referem que a prova do dolo pode fazer-se através das próprias regras da experiência comum. Tal como se refere no acórdão da RelPorto. de 23 -2-1993 (publicado no BMJ, 324, pág. 620) «(...) dado que o dolo pertence à vida interior de cada um é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência». Ou como enuncia o acórdão do STJ, de 23-11-2006 (in www.dgsi.pt, Proc. 06P4096, citado também pela recorrida): «As normas dos artigos 126° e 127° do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo. Essa interpretação não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade, ou das garantias de defesa, ou da presunção de inocência e do contraditório, consagrados no art.º 32.°, n.º 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria facto para efectivo controlo da decisão» . Ainda naquele mesmo sentido: ac RelPorto, de 13-42005, proc. 0540750, www.dgsi.pt)
Ora, perante todo o quadro atrás referido, é perfeitamente legitima a inferência pelo tribunal recorrido (e por este tribunal de recurso) de que o recorrente, ao agir como agiu, não podia deixar de representar a ilicitude da sua conduta, e querer essa mesma conduta de forma livre e deliberada, quer dizer, consciente
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DECISÃO
Pelos fundamentos expostos:
I- Nega-se provimento ao recurso

II- Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 Ucs
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Tribunal da Relação do Porto, 21-05-2008
Jaime Paulo Tavares Valério
Luís Augusto Teixeira
José Alberto Vaz Carreto
José Manuel Baião Papão

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[1] E, posterior e sucessivamente, no Dec.Lei nº 55/95, de 29 de Março, e no Dec.Lei nº 197/99, de 8 de Junho.