Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0847989
Nº Convencional: JTRP00042213
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: ARMA
ARMA PROIBIDA
Nº do Documento: RP200902250847989
Data do Acordão: 02/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 356 - FLS. 276.
Área Temática: .
Sumário: O tráfico de armas de alarme não preenche o tipo de ilícito do art. 87º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 7989/08-4.ª


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. O Ministério Público deduziu acusação contra Manuel B…………. e requereu o seu julgamento, em processo comum e, nos termos do artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal[1], com intervenção do tribunal singular, pela prática de um crime de tráfico de armas, p. e p. pelo artigo 87.º, n.º 1, com referência aos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea e), 3.º, n.os 1 e 2, alínea n), e 4.º, n.º 1, todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Segundo a acusação, e no que ao preenchimento do tipo objectivo interessa, a conduta típica foi preenchida por o arguido ter vendido uma pistola de alarme ao menor C…………….. e, depois, por aquela se ter avariado, a ter substituído por outra pistola de alarme, de marca BBM, modelo 315 Auto, cal. 8 mm K, com o número de série H0234667.

2. Distribuído o processo para julgamento [com o n.º 35/08.5GAVNH do Tribunal Judicial de Vinhais], foi proferido despacho de rejeição de acusação, por a mesma ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.os 2, alínea a), e 3, alínea d), do CPP.

Segundo esse despacho, e em síntese, uma arma de alarme não está compreendida na descrição contida no artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, pelo que, considerando a remissão do artigo 87.º para o artigo 86.º, a venda de uma arma de alarme não integra o ilícito típico previsto naquele artigo 87.º

3. Inconformado com o despacho, o Ministério Público interpôs o recurso, agora em apreço, no qual formulou as seguintes conclusões:

«1. A referência do artigo 87.º, n.º 1, ao artigo anterior (86.º) reporta-se unicamente às substâncias e produtos “aí referidos”;

«2. O tráfico tipificado no artigo 87.º, n.º 1, quando se reporta às armas inclui naturalmente as da classe A cuja venda é absolutamente proibida pelo artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23/02;

«3. Até porque a venda ou cedência de armas de alarme não é sancionada como contra-ordenação, diferentemente do que sucede com os demais actos, o que representa uma irrazoabilidade e um contra–senso;

«4. A razão da classificação das armas de alarme como sendo da classe A e ainda a proibição absoluta da venda assenta na especial facilidade e na muita frequência com que são transformadas pela simples aposição de um cano;

«5. Por isso, a única interpretação do artigo 87.º, n.º 1, conjugado com o artigo 86.º, n.º 1, e artigo 4.º, n.º 1, é a de criminalizar como tráfico a venda de armas de alarme.»

Indicou como normas jurídicas violadas o artigo 87.º, n.º 1, por referência ao disposto nos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea e), 3.º, n.os 1 e 2, alínea n), e 4.º, n.º 1, todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

4. Ao recurso não foi apresentada resposta.

5. Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este tribunal.

6. Na oportunidade conferida pelo artigo 416.º, n.º 1, do CPP, o Ministério Público limitou-se à aposição do seu “visto”.

7. Devendo o recurso ser julgado em conferência, colhidos os vistos, com projecto de acórdão, realizou-se a conferência.

Dos trabalhos da mesma procede o presente acórdão.


II

1. A Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, veio estabelecer o regime jurídico aplicável ao fabrico, montagem, reparação, importação, exportação, transferência, armazenamento, circulação, comércio, cedência, detenção, manifesto, guarda, segurança, uso e porte de armas e suas munições, bem como o regime punitivo criminal e contra-ordenacional relativo a comportamentos ilícitos associados àquelas actividades com o objectivo de salvaguardar a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, segundo o objecto definido na Lei n.º 24/2004, de 25 de Junho, que autorizou o Governo a legislar sobre o regime jurídico das armas e suas munições.

Em conformidade com o sentido e alcance da autorização legislativa [artigo 2.º da lei de autorização legislativa], a Lei n.º 5/2006 procede à fixação conceptual de definições técnicas dos tipos de armas, munições e outros acessórios e à sua classificação por classes, criando as classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o seu grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.

Segundo a definição legal contida no artigo 2.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 5/2006, entende-se por “arma de alarme “o dispositivo com a configuração de uma arma de fogo destinado unicamente a produzir um efeito sonoro semelhante ao produzido por aquela no momento do disparo.

E, de acordo com a classificação das armas, munições e outros acessórios a que aquela Lei procede, as armas de alarme são classificadas na “classe A” [artigo 3.º, n.os 1 e 2, alínea n)].

Decorrendo do artigo 4.º da mesma Lei, sobre “Armas da classe A”, a proibição da venda, da aquisição, da detenção, do uso e do porte de armas, acessórios e munições da classe A [n.º 1].

2. O Capítulo X da Lei n.º 5/2006 trata da responsabilidade criminal e contra-ordenacional, sendo especialmente convocados pelo recurso os artigos 86.º e 87.º

2.1. O artigo 86.º tipifica as condutas que consubstanciam “detenção de arma proibida” estabelecendo, nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 1, as punições em função do tipo de armas, equipamentos, produtos ou substâncias detidos que, nessas alíneas, são taxativamente indicados.

Na alínea a) são indicados os equipamentos, meios militares e material de guerra, as armas biológicas, químicas, radioactivas ou susceptíveis de explosão nuclear, as armas de fogo automáticas, os engenhos explosivos ou incendiários. Compreendem-se, portanto, nesta alínea as armas da classe A indicadas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 3.º

Na alínea b) são referidos os produtos ou substâncias especialmente adequados às condutas, nessa alínea descritas, relativas a armas biológicas, químicas, radioactivas ou susceptíveis de explosão nuclear.

Na alínea c) são indicadas as armas das classes B, B1, C e D, as espingardas ou carabinas facilmente desmontáveis em componentes de reduzida dimensão, as espingardas não modificadas de cano de alma lisa inferior a 46 cm, as armas de fogo dissimuladas e as armas de fogo transformadas ou modificadas. Incluem-se, assim, nesta alínea as armas da classe A constantes das alíneas d) [no segmento armas de fogo], l), o) e p) do n.º 2 do artigo 3.º

Na alínea d) são englobadas as armas da classe E, certas armas brancas, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usadas como armas de agressão não justificando o portador a sua posse, certos aerossóis de defesa e certas armas lançadoras de gases e certas armas eléctricas, instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciadores e partes essenciais de armas de fogo, bem como munições. Cotejando as armas, munições e acessórios descritos nesta alínea com a descrição das armas, munições e acessórios da classe A contidos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 3.º, verifica-se que esta alínea d) compreende as armas, munições e acessórios indicados nas alíneas d) [no segmento armas brancas], e), f), g), h), i), j), q) e r) daquele n.º 2 do artigo 3.º

Encontrando-se as armas cuja detenção, para efeitos desse artigo, é proibida taxativamente indicadas nas quatro alíneas do artigo 86.º tem de se concluir que nem todas as armas cuja detenção é proibida [as da classe A, conforme artigo 4.º] nelas estão compreendidas.

É esse, justamente, o caso das armas indicadas na alínea n) do n.º 2 do artigo 2.º [as reproduções de armas de fogo (mecanismos portáteis com a configuração de uma arma de fogo que, pela sua apresentação e características, possam ser confundidas com as armas previstas nas classes A, B, B1, C e D, com exclusão das armas de softair, segundo a definição da alínea av) do n.º 1 do artigo 2.º) e as armas de alarme].

O que significa que a detenção de armas proibidas não é esgotantemente prevista e punida pelo artigo 86.º da Lei n.º 5/2006.

Por ser assim, a detenção das armas proibidas indicadas na alínea n) do n.º 2 do artigo 2.º [fora dos casos do artigo 89.º, a que, adiante, aludiremos] conforma a contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 97.º da mesma Lei.

2.2. O artigo 87.º procede à tipificação do crime de tráfico de armas.

Segundo a técnica legislativa usada, para que os comportamentos descritos integrem o tipo-de-ilícito terão de envolver «quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos» referidos no artigo 86.º [“aí referidos”].

O artigo 87.º não indica, expressamente, as armas, equipamentos, produtos ou substâncias cujo tráfico é proibido; tal indicação é feita por remissão para as armas, equipamentos, produtos ou substâncias expressa e taxativamente indicados no artigo 86.º

Ou seja, são rigorosamente os mesmos as armas, equipamentos, produtos ou substâncias cuja detenção e tráfico são proibidos.

Por isso, o tráfico das armas constantes da alínea n) do n.º 2 do artigo 3.º não integra o ilícito típico do artigo 87.º tal como a sua detenção não integra o ilícito típico do artigo 86.º

2.3. A interpretação proposta pelo Ministério Público, na 1.ª instância, não tem qualquer sustentabilidade.

Pretende o Ministério Público que a remissão do artigo 87.º para o artigo 86.º se esgota nas substâncias ou produtos nele referidos [“aí referidos”], a implicar que o tráfico de quaisquer armas, quaisquer engenhos, quaisquer instrumentos, quaisquer mecanismos ou quaisquer munições integram o tipo-de-ilícito do artigo 87.º

Desde logo, gramaticalmente, não é autorizada a cisão pretendida pelo Ministério Público, de modo a que a expressão “aí referidos” se ligue, apenas, às substâncias e produtos.

Por outro lado, sem a remissão para a descrição contida no artigo 86.º as referências aos engenhos, instrumentos e mecanismos não teriam qualquer conteúdo útil, pois, por absurdo, tudo o que pudesse caber nesses substantivos, ainda que sem qualquer relação com a matéria objecto do regime jurídico das armas, implicaria tráfico de armas.

Quer dizer, a expressão “aí referidos” liga-se a todo o elenco das “coisas” que a precedem [«quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições substâncias ou produtos»], tanto mais quanto é absolutamente indispensável à descrição típica [à descrição dos objectos da acção].

2.4. Neste entendimento, o tráfico das armas de alarme [como, também das reproduções de armas de fogo e das armas das classes F e G] não integra o tipo-de-ilícito do artigo 87.º

Para que assim não fosse, bastaria – mas era necessário –, que o legislador descrevesse os comportamentos referindo-os a «qualquer das armas previstas no n.º 1 do artigo 2.º, bem como quaisquer munições, engenhos, instrumentos, mecanismos, produtos ou substâncias referidos no artigo 86.º», como, aliás, procedeu na redacção do artigo 89.º, sobre «Detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos».

2.5. Pode surpreender que o legislador não tivesse incluído todas as armas cuja venda é proibida na descrição típica do artigo 87.º e não se encontrar fundamento que teleológica e racionalmente explique a exclusão de algumas armas cuja venda é proibida.

Todavia, o princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa, a que também se subordina «significa que, por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos»[2].

Daí que, por força do princípio da legalidade, a analogia – compreendida como aplicação de uma regra jurídica a um caso não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados –, tenha, em direito penal, de ser proibida. Conclusão que já resultaria evidente do artigo 29.º, n.º 1, da CRP, e do artigo 1.º, n.º 1, do CP, mas que o legislador entendeu reforçar, no n.º 3 do artigo 1.º do CP, estatuindo expressamente que «não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime (…)».

3. No âmbito da responsabilidade contra-ordenacional definida pela Lei n.º 5/2006 não está expressamente prevista a responsabilidade contra-ordenacional pelo tráfico das armas não incluídas na indicação taxativa contida no artigo 86.º

Com efeito, o artigo 97.º dispõe sobre a detenção ilegal de reprodução de arma de fogo, arma de alarme, ou armas das classes F e G.

As modalidades de conduta descritas nesse artigo são: deter, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obter por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trazer consigo.

Ora, na consideração das modalidades de conduta descritas no tipo, não pode afastar-se, em absoluto, a punição do agente que se comprove ter praticado tráfico das armas nele indicadas.

Na verdade, como, por regra, só se pode vender ou ceder aquilo que se detém por compra, aquisição a qualquer título ou por qualquer meio, por importação, o agente que venda, ceda a qualquer título ou por qualquer meio ou por qualquer meio distribua uma arma das descritas no artigo 97.º, sempre estará sujeito à punição nele prevista, não pelos actos de venda ou cedência, mas pelas condutas anteriores a esses actos em que se manifestem as modalidades de conduta descritas no artigo 97.º (detenção, transporte, importação, guarda, compra, aquisição a qualquer título, obtenção por fabrico, transformação, importação, exportação dessas armas). Excluída ficará tão só uma das modalidades de conduta do tráfico de armas previsto no artigo 87.º – a mediação de uma transacção, sempre que o agente mediador não chegue, em nenhum momento, a ter a arma na sua posse.

A lacuna de punibilidade (pelo tráfico) poderá, nos termos indicados (pela detenção prévia ao acto de tráfico quando as circunstâncias deste, afinal, a comprovem) ser resolvida.


III

Termos em que, na confirmação do despacho recorrido, negamos provimento ao recurso.

Não há lugar a tributação.

Porto, 25 de Fevereiro de 2009

Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro

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[1] Doravante designado pelas iniciais CPP.
[2] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 168.