Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
969/07.4TAPRD-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RICARDO COSTA E SILVA
Descritores: CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RP20110511969/07.4taprd-B.P1
Data do Acordão: 05/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos crimes contra a propriedade [v.g. Dano (art. 212.º, do CP) e de Alteração de marcos (art. 216.º, do CP)], saber que a coisa é “alheia” constitui um a priori da própria acção típica.
II – À luz do princípio da suficiência da acção penal, a propriedade “alheia” da coisa sobre que versa a acção delituosa pode ser apurada no processo penal.
III – Quando a natureza “alheia” da coisa é incerta ou controvertida, essa situação de incerteza acaba por se projectar na possibilidade de se vir a formar uma convicção segura sobre o dolo do agente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 969/97.4TAPRD-B.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto,
I.
1. Em 2010/02/18, no processo de instrução n.º 969/97.4TAPRD-B, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Paredes, foi proferida a decisão instrutória de não pronúncia, que, na parte que interessa, a seguir reproduzimos:
«(…)
«I.
«Tiveram origem os presentes autos de instrução no requerimento da Assistente B… que, inconformada com o despacho final de inquérito que determinou o arquivamento dos autos relativamente aos crimes de dano e de alteração de marcos, p. e p., pelos artigos 212° n° 1 e 216° n° 1, respectivamente, do Código Penal, veio requerer a pronúncia do arguido pela prática de tais ilícitos.
«Para tanto alega, em síntese, que houve uma diligência essencial para a descoberta da verdade que não foi promovida, o exame ao local, que comprovou nos autos com a documentação adequada a propriedade do terreno que foi invadido e onde se situavam os pinheiros abatidos que aliás ainda lá se encontram deitados por terra com as raízes à vista e teria sido fácil comprovar os locais exactos dos muros, dos marcos e a localização dos dois pinheiros abusivamente abatidos. Mais alega que forneceu fotogramas esclarecedores das destruições efectuadas e prova indiciária inequívoca de quem foi o mandante.
«Conclui pela pronúncia do arguido pela prática dos aludidos crimes de dano e de alteração de marcos, p. e p., pelos artigos 212° n° 1 e 216° n° 1, respectivamente, do Código Penal.
«II.
«O requerimento de abertura de instrução aduzido aos autos pela assistente foi admitido [cfr. fls. 378], por preencher os requisitos estipulados no art. 287° do Código de Processo Penal.
«A assistente requereu como diligências instrutórias a realizar pelo tribunal a inspecção ao local, e que ali fossem inquiridas a assistente bem como as duas testemunhas arroladas, bem como que fosse requerido ao Sr. Procurador da República no sentido de apurar das razões da existência de dois despachos contrários que objectivamente a prejudicaram e da possibilidade e viabilidade de apurar o responsável, o que viu ser parcialmente deferido, nos termos e com os fundamentos que melhor constam dos despachos constantes dos autos a fls. 378-379 e 387.
«O Tribunal determinou ainda oficiosamente, em momento prévio à realização do debate instrutório, a tomada de declarações ao arguido, bem como a deslocação ao local onde ocorreram os factos participados, como o comprova a acta de fls. 412 a 417 e a acta que antecede.
«III.
«Não se vislumbrando qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade e finalidades da presente instrução, procedeu-se à realização de debate instrutório, com observância do formalismo legal, no decurso do qual a assistente C… juntou documentos, agora constantes dos autos a fls. 418 a 429, como o comprova a respectiva acta.
«IV.
«O tribunal é competente.
«A instrução foi requerida por quem para tal tem legitimidade.
«Não há nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
«V.
«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
«Com o requerimento de abertura de instrução a parte define o âmbito desta, sem que com isso limite os poderes do juiz quanto às diligências probatórias a efectuar para averiguar dos factos alegados.
«Resulta do art. 286°, n°1 do Código de Processo Penal que "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.".
«A instrução destina-se a obter, parafraseando Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo Jurídico), "o reconhecimento jurisdicional da legalidade ou ilegalidade processual da acusação, a confirmar ou não a acusação deduzida, para o que o juiz tem o poder-dever de a esclarecer, investigando-a autonomamente".
«Do preceito transcrito deduz-se, por conseguinte, que no caso de instrução requerida pelo assistente, como sucede nos presentes autos, o que se pretende é que o Juiz investigue os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (artigos 308º e 309°). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo.
«Aqui o essencial é apenas que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objecto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução (art. 287° n° 3 do Código de Processo Penal).
«A instrução a requerimento do arguido é uma manifestação do direito de defesa, disponível, que exercerá conforme entender, mas a instrução a requerimento do assistente é fundamentalmente uma garantia, garantia para o arguido de que não será submetido a julgamento senão quando se verifiquem os pressupostos legais e garantia da legalidade da decisão do Ministério Público, findo o inquérito1.
«O assistente não pode requerer a abertura da instrução em relação a pessoa contra a qual o Ministério Público não deduziu acusação, se o inquérito não foi dirigido contra essa pessoa2.
«A instrução consubstancia, assim, um "direito ao juiz" (Souto Moura, Inquérito e Instrução, in Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, Almedina, pág. 122), no sentido de que representa, constitucionalmente, a judicialização da fase preparatória (cfr. art. 32° da Constituição da República Portuguesa)
__________________
«1 Vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo Jurídico, pág. 140.
«2 Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão datado do dia 30/01/2008, no âmbito do processo 0716298, disponível no endereço electrónico www.dgsi.pt.
_________________
«Configura-se, assim, como fase processual sempre facultativa - n°. 2 do art. 286° do Código Penal - destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.
«Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que, tendencialmente, se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal.
«O art. 308°, n° 1, do C.P.P., estipula que "Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.".
«Na base do despacho de não pronúncia, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão ainda estar motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal de procedimento ou vício de acto processual.
«Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
«Por sua vez, no dispositivo do art. 283°, n° 2, do mesmo diploma legal, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
«Por indícios suficientes tem de entender-se "aqueles elementos que, logicamente relacionados e conjugados, facultem um conjunto persuasivo na pessoa que os examina, sobre a existência de facto punível, de quem foi o seu autor e da sua culpabilidade, ou ainda, mais precisamente, quando já em face deles seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição" (Ac. Relação de Coimbra de 09 de Março de 1988, in Col. Jur., Tomo II, pág. 84 e art.° 283.°, n.° 2, do Código de Processo Penal).
«Ainda sobre aquele conceito legal escreve o Prof. Figueiredo Dias 3 - os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.
«Acrescenta este autor que logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um "non liquet" na questão da prova.., tem de ser sempre valorado a favor do arguido.
«Na jurisprudência, a interpretação desse conceito é resumido pela Relação de Coimbra4 da seguinte forma - para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que é imputado.
«Neste sentido se pronunciou o S.T.J.5, que definiu "indiciação suficiente" como aquela que resulta da verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder.
«Recentemente também a Relação do Porto, em acórdão datado de 22/10/20086, se pronunciou no sentido de que são suficientes os indícios, para efeitos de pronúncia, como de acusação, quando a probabilidade de condenação seja maior que a de absolvição, sendo que a probabilidade de condenação é maior que a de absolvição quando, num juízo de prognose antecipada, se possa afirmar que, se os elementos de prova existentes no inquérito ou na instrução se repetirem em julgamento e aí não forem abalados ou infirmados por outros aí produzidos, o arguido será seguramente condenado.
«Ainda a este propósito veja-se o recente Ac. da Relação de Coimbra, datado de 10/09/20087, o qual sumaria: "I. Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a unia condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado. II. - A suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de
_________________
«3 Direito Processual Penal, 1% 1974, 133, citado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T. II, p. 66.
«4 Cit. Ac. R.C., de 31.3.93, in C.J., T. II, p. 66.
«5 Ac. de 10.12.92, citado no Cód. de Proc. Penal Anotado, de Manuel Silva Santos e outros, Ed. de 1996, p. 131.
«6 Disponível no endereço electrónico www.dgsi.pt.. 7 Disponível no endereço electrónico www.dgsi.pt..
__________________
«futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia). III. - O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade. IV. - Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.".
«Assim, pretende-se nesta fase obter uma decisão judicial que encerre não um juízo sobre o mérito, mas que investigue os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciar o arguido por esses factos, de forma a aferir da admissibilidade da submissão dos arguidos a julgamento com base na “acusação alternativa” ínsita no RAI do assistente.
«Na instrução deve, assim, o juiz compulsar toda a prova coligida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
«Para que surja uma decisão de pronúncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final: trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
«Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos, e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado.
«Assim sendo para fundar uma decisão de pronúncia, não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que, da sua lógica conjugação e relacionação, se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
«Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
«Fixadas as directrizes, que de acordo com a lei, nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interessa agora apurar, por um lado, se em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pelo arguido F… dos ilícitos referidos no RAI, e, como tal, deva ser pronunciado pela comissão como autor material de um crime de dano p. e p., pelo artigo 212° n° 1 do Código Penal e de um crime de alteração de marcos, p. e p. pelo art. 216° no 1, do Código Penal, em que é ofendida B….
«Vejamos, então, o caso em apreço:
«Em sede de inquérito:
«Na sequência da participação criminal subscrita pelas ofendidas B… e C… foi dado início aos presentes autos.
«Ouvida a ofendida, ora assistente, B… (cfr. fls. 15), a mesma confirmou o teor da participação constante dos autos e disse que teve conhecimento dos factos participados através de outras pessoas, suas vizinhas, continuando a desejar procedimento criminal contra os autores dos factos. Mais esclareceu que o seu terreno confronta com a estrada. Juntou documento da Direcção Geral das Contribuições e Impostos referente ao seu terreno.
«Ouvida a ofendida, ora assistente, C… (cfr. fls. 30), a mesma confirmou o teor da participação constante dos autos e disse desconhecer os motivos de tal actuação por parte dos denunciados e que apenas teve conhecimento dos factos através do marido D… e no dia seguinte em que as máquinas estiveram no terreno a fazer as valas, sendo que apenas o Sr. E… presenciou os factos denunciados. Juntou cópia da escritura de compra e venda e habilitação e partilhas dos pais, onde se faz referência que o terreno da … é sua propriedade e foi este terreno que foi invadido. Esclareceu que caso o seu terreno seja arranjado e devidamente normalizado pelo denunciado F… não continuará a desejar procedimento criminal contra o mesmo. Por último refere que se sente mais lesada do ponto de vista moral, uma vez que o prejuízo patrimonial não é assim tão elevado, uma vez que se resume a tapar as valas que se encontram abertas no terreno.
«Ouvida a testemunha E… (cfr. fls. 32) referiu que há cerca de 1 ou 2 meses atrás (por referência à data em que foi ouvido 31/10/2007), passou com a sua carrinha, no … em … e o senhor G…, seu primo, fez-lhe sinal de paragem e perguntou-lhe se tinha feito um serviço de terraplanagem no …, ao que respondeu que não. Também lhe perguntou se por acaso tinha visto alguma máquina a trabalhar numa bouça à beira da estrada no …, ao que respondeu que dias antes tinha passado com o seu tractor agrícola, naquela estrada, e realmente viu uma máquina retroescavadora manobrada pelo Sr. H… a trabalhar naquele terreno, sendo que o Sr. F… estava presente.
«Constituído enquanto tal e interrogado, o arguido F…, (cfr. auto de fls. 37-38), negou o teor da participação constante dos autos. Mais esclareceu que fez obras num terreno de sua pertença e que confina com o terreno propriedade da sua irmã C… e da sua tia B…. Na verdade, o terreno onde fez as obras foi atravessado por uma estrada ficando uma parte dele junto do terreno das ora denunciantes. Desta forma, apenas fez os referidos trabalhos nessa parcela de terreno, que na verdade é sua, não invadindo outro e qualquer terreno. Na altura em que fez a limpeza do terreno ainda lá se encontravam muros e marcos que permaneceram no local. Mais esclareceu que abateu dois pinheiros que estavam dentro do seu terreno.
«Constituído e interrogado como arguido, H…, (cfr. auto de fls. 43- 44), esclareceu que trabalha por conta própria e foi contratado pelo Sr. F… para efectuar trabalhos de retroescavadora num terreno supostamente dele (já referido nos autos). Mais esclarece que o trabalho foi facturado e caso seja necessário, oportunamente poderá vir juntar aos autos. Na verdade fez a limpeza de uma vala já existente no terreno e alteração do caminho. Também foram retirados dois pinheiros de médio porte. Refere ainda que naquele dia não foram removidos muros, nem alterados marcos já existentes naquele terreno.
«Ouvida a testemunha G… (cfr. fls. fls. 58), genro da assistente B…, referiu que no dia 20 de Agosto do corrente ano, cerca das 12.30 horas passou no terreno propriedade da sua sogra B…, sito em … -… e reparou que do caminho de servidão que passa junto ao terreno da B… circulava uma retroescavadora conduzida pelo senhor H… e viu o denunciado F… a passar no caminho de servidão. Como o denunciado possuí terrenos nas proximidades nem ligou. À noite do mesmo dia, e porque da parte da tarde tinha ocorrido um incêndio nas proximidades do terreno da B…, dirigiu-se ao terreno da sogra e foi aí que deparou com o seguinte cenário, paredes em xisto derrubadas, pinheiros arrancados pela raiz e derrubados no chão e desapareceram os marcos que separavam o terreno da B… do terreno da queixosa C…, sendo esta irmã do denunciado. No terreno da C… o denunciado derrubou uma parede e entrou no terreno da mesma derrubando tudo por onde passou a máquina retroescavadora. No dia seguinte ao acontecido ligou ao H…, dono da retroescavadora para confirmar se tinha andado no terreno da B… e da C… e o mesmo confirmou dizendo que procedeu a um trabalho encomendado pelo denunciado e disse que o F… disse ser proprietário daqueles terrenos. Esclarece que o terreno propriedade do denunciado F… não confina com o terreno da B… e muito menos da C…, isto porque entre o terreno do denunciado e o que é propriedade da B… existe um caminho de servidão e uma parede de lousa que veda o terreno do denunciado F….
«Em sede de instrução:
«Nesta sede foi ouvida em declarações a assistente B…, as testemunhas G… e I…, assim como foi realizada inspecção ao local por parte do Tribunal para obter melhor percepção do local e dos terrenos em discussão nos autos. O tribunal tomou ainda declarações ao arguido.
«Assim, ouvida a assistente B… (cfr. fls. 401), referiu que em data que não se recorda o arguido deitou os pinheiros e as paredes abaixo e andou a escavar num terreno que lhe pertencente e não ao arguido. Não lhe vai dar o terreno. Onde o F… tem a casa é que é o terreno dele. Há um caminho de servidão a separar o seu terreno do terreno do F…. Por último refere que apenas o terreno da C… é junto ao seu.
«Ouvida a testemunha G… (cfr. fls. 402-403) referiu que no dia 20/08/2007 a sua mulher passou no terreno por volta das 11:30 horas e viu que andava lá o arguido e o Sr. H… com uma retroescavadora e comunicou-lhe tal facto, tendo então dito àquela que ia lá passar, ao que a mulher lhe respondeu para ter cuidado face ao carácter violento do Sr. F…. Deslocou-se ao dito terreno por volta das 12:00/12:30 horas e viu dois pinheiros a ser deitados abaixo e a parede e os marcos destruídos, tendo ficado incrédulo. Os marcos dividiam o terreno das assistentes B… e C…. Não disse nada ao arguido e decidiu ir-se embora. Conversaram entre todos (ele, a mulher e a sogra) e decidiram aguardar algum tempo porque o sucedido podia ser um engano e ainda podiam ser pedidas desculpas ou repostas as coisas no estado em que encontravam. Entretanto também o marido da assistente B… conversou com ele tendo então decidido pôr o caso em Tribunal. O terreno do arguido estava vedado por pedra de lousa e entre esse terreno e o terreno da assistente existe um caminho com uma largura aproximada de 3 metros. O terreno que confina com o terreno da sogra, em partilhas ficou a pertencer à irmã do arguido, a ora assistente C…. Junto ao terreno da sogra, ora assistente, o arguido não tem qualquer terreno confinante. O terreno do arguido também não confina com o terreno da assistente C… e apenas confina com o caminho de servidão. Mais referiu que se comenta que na altura dos factos o arguido andava zangado com a irmã C… e poderá ter sido um dos motivos que terá levado o arguido a destruir o terreno daquela. Referiu ter visto o arguido no terreno da sogra uma outra vez, num domingo de manhã, quando lá passou a pé, e existem outras pessoas que dizem já o ter visto lá outras vezes. Confrontado com as fotografias juntas aos autos a fls.70 a 74 e 179 a 181, reconhece-as como sendo o terreno em causa nos autos e que retratam a situação aqui descrita, nomeadamente o corte dos pinheiros, a destruição dos marcos e do muro de lousa.
«Ouvida a testemunha I… (cfr. fls. 403-404), referiu recordar-se da situação por ter ocorrido no dia de anos da mãe, 20/08/2007, e ao passar junto ao terreno viu o Sr. F… com o Sr. H… e uma retroescavadora, ligou ao marido e foi para casa e não se quis meter porque o arguido é uma pessoa muito violenta, inclusivamente o ano passado ameaçou o marido de sachola. O marido foi ao local e não fez nada. Ao final da tarde daquele dia juntamente com o marido e a mãe dirigiram-se ao terreno e aí viram derrubados dois pinheiros e destruídos muros ou paredes em xisto antigo, assim como viram alterada a entrada do terreno que conhece desde criança. O arguido também mexeu nos muros da irmã C…. Contactaram com a assistente C… e decidiram instaurar o processo no Tribunal. Entre o terreno da assistente B… e o do arguido passa um caminho de servidão. O terreno do arguido não confina com o terreno das assistentes. Não tem explicação para o sucedido, muito embora refira que posteriormente foi construída uma casa no terreno do arguido que parece lá ter caído como um bloco de cimento, sem respeitar as áreas de distância e sem placa. Parece que procurou arranjar espaço. A referida casa que ali foi construída, confina com a estrada.
«Interrogado novamente, o arguido F…, referiu ter um terreno na … que confina de poente com a irmã C..., o qual não confina com a B…. No local onde foram cortadas as árvores o terreno é de sua propriedade, já o falecido sogro dizia que era dele. O seu terreno foi cortado pela estrada ficando um bocado mais pequeno do lado debaixo com cerca de 600 m2, onde foram cortadas as ditas árvores e um bocado mais acima com cerca de 4000m2. No dito terreno mais pequeno arrancou duas árvores e procedeu à limpeza de uma vala já existente. Dirigiu-se ao dito terreno mais meia dúzia de vezes e apenas para dar uma vista de olhos. Não faz ideia quando a estrada foi construída. Numa ocasião o marido da C… foi fazer uma limpeza ao terreno e decidiu ir lá e fazer uma marca para delimitar o que era seu, com base num marco existente ao cimo da estrada. Estava convencido que o terreno é próprio agora já desapareceu o marco que ficava junto ao muro do lado de cima da estrada. Antes do dia 20 de Agosto de 2007 só foi ao terreno em discussão nos autos uma vez para buscar dois pinheiros secos, acompanhado do sogro, quando ainda era solteiro. Não destruiu quaisquer marcos. Para si o terreno pertence-lhe, e se suspeitasse que não era dele, não ia lá mexer, pois nunca mexeu em terrenos de ninguém. A irmã C… zangou-se consigo há cerca de 14 anos. Não mexeu nos muros da irmã. Ainda em solteiro ajudava o sogro e sempre teve aquele bocado de terreno (os cerca de 600 m) como dele. O terreno em discussão nos autos era do sogro e o que dividiu com a irmã era dos pais. No terreno em discussão nos autos ainda estão as raízes ou tocos dos pinheiros cortados. A casa que foi construída no terreno que vendeu pertence a um Senhor de Valongo, de nome J… e ao que parece é arquitecto, a qual foi construída num terreno com uma área de cerca 1600 m. Desconhece se a casa foi feita de acordo com as regras legais. Este terreno foi por si vendido há cerca de 4 anos, o qual confina com um caminho que não sabe se é público ou de servidão, assim como confina com um terreno de 600 m no qual foram cortadas as ditas árvores. Ainda sobre o terreno que vendeu refere não saber se confina com os terrenos das assistentes e acha que não confina com o caminho público. A respectiva escritura foi realizada em Valongo. Não tem terrenos no … e o que vendeu situa-se no …. Neste último lugar tem três terrenos, um em …, outro em … que é o bocado de terreno que é separado pela estrada e outro em … que foi o que vendeu ao Sr. de Valongo. Todos estes 3 terrenos foram herdados da parte da mulher. Os terrenos das assistentes são no … os seus são em …. As raízes ou tocos dos pinheiros ficam no l…. Entre os terrenos onde estão os tocos dos pinheiros e o que vendeu separa um caminho que desconhece ser publico ou de servidão. Tendo por referência a EN… na direcção da Senhora do Salto todos os terrenos, ou seja, o dos 600m, o que vendeu, bem como o das assistentes, ficam do lado esquerdo por referência à dita estrada. Por último referiu que o terreno que ficou para a irmã já lhe pertenceu pela herança dos pais, conhecendo os limites de tal terreno, o qual não chega ao caminho com o qual confina a faixa do terreno dos 600 m.
«VI.
«No Requerimento de abertura de instrução da assistente B… é imputado ao arguido F… a prática de um crime de dano e de um crime de alteração de marcos.
«Do crime de dano:
«Dispõe o art. 212° n° 1 do Código Penal que "Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.".
«O bem jurídico protegido é a propriedade.
«Ao nível dos elementos objectivos é objecto da acção coisa alheia - que significa coisa cujo direito de propriedade pertence a outrem que não o agente8 - podendo a conduta típica assumir várias modalidades graduadas no tipo legal conforme a intensidade do ataque à coisa alheia:
«-> Destruir, no todo ou em parte;
«-> Danificar;
«-> Desfigurar;
«-> Tornar não utilizável.
«A destruição é a forma mais intensiva e drástica de cometimento da infracção e determina a perda total da utilidade da coisa, implicando, na maioria das situações, o sacrifício da sua substância9.
«Danificar significa que os atentados à substância ou à integridade da coisa alheia não atingem o limiar da destruição10.
«Desfigurar consiste em ofender irremediavelmente a estética da coisa11.
____________________
«8 Ac. da Relação de Coimbra, de 03.05.1989, relatado pelo Senhor Desembargador Hugo Lopes, sumariado no BMI, n." 387, pág. 665.
«9 MANUEL DA COSTA ANDRADE, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 221.
«10 MANUEL DA COSTA ANDRADE. ob. cit.. pág. 222.
____________________
«Tornar não utilizável abrange condutas que, mesmo que temporariamente12, reduzam a utilidade da coisa segundo a sua função13.
«Do ponto de vista do tipo subjectivo, o cometimento do crime pressupõe a existência de dolo, em qualquer uma das suas modalidades.
«Neste crime o dolo consiste na consciência e vontade de destruir, danificar ou desfigurar a coisa alheia, com o fim de lesar a propriedade de outrem, aceitando generalizadamente14 que para integrar o crime de dano basta um dolo genérico, exigindo-se apenas que o agente represente, em termos gerais, que a sua acção sacrifica a coisa alheia.
«Do crime de alteração de marcos:
«Dispõe o art. 216° do Código Penal, sob a epígrafe Alteração de marcos "1. Quem, com intenção de apropriação, total ou parcial, de coisa imóvel alheia, para si ou para outra pessoa, arrancar ou alterar marco é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias. 2. O procedimento criminal depende de queixa. 3. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.° e 2070..
«São elementos constitutivos do crime de "alteração de marcos":
«- a existência de marcos; o arrancamento alteração ou supressão: a intenção de apropriação de coisa imóvel alheia.
«Por "marco" entende-se qualquer construção, plantação, valado, tapume ou outro sinal destinado a estabelecer os limites entre diferentes propriedades, postos por decisão judicial ou com o acordo de quem esteja legitimamente autorizado para o dar (art. 202° al. g) do Código Penal).
«O bem jurídico protegido é a tutela da inviolabilidade da propriedade imobiliária.
«A acção típica consiste em arrancar ou alterar marco, ou seja, tirar marco do lugar onde se encontrava ou deslocando-o conduzindo-o, assim, à modificação da demarcação.
«O tipo subjectivo exige o dolo quanto aos marcos representando o agente o carácter demarcatório dos mesmos e a intenção de apropriação para si ou para outrem de coisa imóvel alheia.
_____________________
«11 LEAL HENRIQUES/SIMAS SANTOS, in Código Penal, Vol. II, 2' edição, pág. 510.
«12 LEAL HENRIQUES/SIMAS SANTOS, ob. cit., pág. 510.
«13 MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., pág. 222.
«14 MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., pág. 225 e ainda, na jurisprudência, o Ac. do S.T.J., de 31.05.1989, relatado pelo Senhor Conselheiro Mendes Pinto, in BMI, n.° 387, pág. 310, o Ac. da Relação de Coimbra, de 11.02.1987, sumariado no BMI, n.° 364, pág. 951 e o Ac. da Relação do Porto, de 21.12.1988, relatado pelo Senhor Desembargador Fernando Sequeira, sumariado no BA41, n.º 382, pág. 529.
______________________
«Atendendo às considerações ora tecidas e considerando os factos apurados indiciariamente nos autos, dúvidas inexistem de que o arguido não praticou os ilícitos que lhe são imputados, senão vejamos:
«Dúvidas inexistem que o arguido procedeu ao corte de dois pinheiros existentes no terreno em discussão nos autos.
«Todavia o que aqui está em discussão em primeira linha é se o fez em terreno que era próprio ou alheio, pois que sempre será o carácter alheio do terreno que permitirá concluir que possam estar perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos típicos do crime de dano e de alteração de marcos.
«No caso em apreço, do que se aqui se trata é de antecipadamente definir a propriedade da coisa objecto dos tipos de ilícito em questão (crime de dano e de alteração de marcos), posto que tal como aparece configurada a pertinente factualidade, a este nível não questionada, as valas que no interior do terreno foram abertas, o derrube e abate dos pinheiros e os muros e os marcos que se pretende seja o arguido acusado/pronunciado de destruir estão incorporados em prédio relativamente ao qual quer as assistentes B… e C…, quer o arguido, se assumem donos.
«Ora constituindo o objecto da acção dos tipos legais em apreço, e por isso seu elemento típico, a coisa alheia, é pressuposto do preenchimento do crime de dano que a coisa destruída, desfigurada ou inutilizada não seja propriedade do agente, e do crime de alteração de marcos que a coisa imóvel cuja intenção de apropriação visada pelo agente não seja propriedade deste.
«Para a verificação de tais ilícitos o arguido tem de conhecer o carácter alheio da coisa que pretende apropriar-se ou destruir.
«No caso que nos ocupa, o arguido desde o primeiro momento que assume ser proprietário do terreno em causa nos autos onde foram cortados os pinheiros e limpa uma vala nele existente. O arguido não só identifica os prédios que possui, como faz a destrinça daqueles que vieram à sua posse por morte dos sogros e de que mulher é herdeira universal, bem como os que herdou por morte dos pais.
«O arguido, não obstante a relação de família que mantém com as assistentes, uma das quais não lhe fala há cerca de 14 anos, ainda assim referiu conhecer os prédios das assistentes, as suas delimitações e confrontações, os seus limites e não ter invadido o terreno de ninguém, asseverando ao Tribunal que se suspeitasse que o terreno não lhe pertencia não ia lá mexer. O mesmo admitiu ter ido ao terreno em discussão nos autos demarcar o que é seu, na sequência duns trabalhos de limpeza que o marido da assistente C… estaria a fazer num terreno a eles pertencente.
«Por outro lado, também não deixa de se estranhar que as testemunhas G… e I… tenham visto o arguido no terreno que dizem pertencer à assistente e não tenham reagido imediatamente junto daquele, no sentido de parar os trabalhos de limpeza que estariam a ser realizados e tenham ido para casa e só à noite se tenham deslocado ao dito terreno para ver o que havia sido feito.
«Como já supra se aludiu, para que um arguido seja submetido a julgamento, a prova existente tem de ser suficiente, isto por força de um processo penal respeitador das garantias dos arguidos e onde a presunção de inocência constitui um princípio basilar. A propósito da suficiência indiciária, refere Carlos Adérito Teixeira, "Indícios Suficientes": Parâmetro de Racionalidade e "Instância"de Legitimação Concreta do Poder-Dever de Acusar, in Revista do CEJ, 2.3 Semestre de 2004, Número 1, p. 189, que "O conceito de "indícios suficientes", densificado no plano jurídico, funciona como critério de decisão e critério de justificação da acusação, no quadro de um procedimento orientado por princípios constitucionais e legais.
«Naquele conceito liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da "possibilidade razoável" desta, estabelecida por força daqueles indícios e não de outros. A determinação do grau de tal possibilidade passa pela bitola da possibilidade particularmente qualificada ou de probabilidade elevada, por ser a que melhor salvaguarda a referência de condenação, a exigência de verdade do julgamento e os princípios que convergem no procedimento já nesse momento (presunção de inocência, in dúbio pro reo, etc.).
«O juízo de indiciação suficiente deve, assim, ter por equivalente o juízo de condenação em julgamento. Difere, todavia, o contexto probatório em que a convicção se afirma: dada a ordem natural das coisas, na fase (posterior) de julgamento, com a adição do imprescindível contraditório, da imediação da prova e do princípio da investigação, bem pode reger o postulado epistemológico segundo o qual "uma anterioridade cronológica revela-se uma inferioridade lógica", a sobrepor-se, paradoxalmente, ao postulado de que "só a prova concomitante ao facto se pode dizer que é genuína" (por não ter sofrido a corrosão do tempo sobre a memória, sobre o suporte físico e sobre a re(de)sistência do juízo)".
«Na sequência de tais ensinamentos, e aplicando-os à situação dos autos, não podemos, senão, deixar de concluir que, da prova recolhida [e outras diligências úteis não se vislumbram, nem foram requeridas] não resultam indícios que revelem uma possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de ao arguido vir a ser aplicada uma pena, porquanto, por apelo a um juízo de prognose, com base em critérios de normalidade e mantendo-se em julgamento os elementos probatórios existentes (e tendo, sobretudo, em conta, os princípios da presunção de inocência e do in dúbio pro reo), estes conduziriam, inevitavelmente, à absolvição do arguido - sobre este ponto, refere, Fernanda Palma, "Acusação e Pronúncia num Direito Processual Penal de Conflito entre a Presunção de Inocência e a Realização da Justiça Punitiva", in I Congresso de Processo Penal -Memórias (coordenação de Manuel Monteiro Guedes Valente), Almedina, Lisboa, 2005, p. 126, que "[a] exigência da probabilidade dos factos é, por isso, qualificada em função de uma antecipação do que ditaria o in dúbio pro reo na fase do julgamento. Verificação provável dos factos é aquela que exibe a potencialidade de ultrapassar a barreira do in dúbio pro reo na fase de julgamento". Isto é, da factualidade existente nos autos, resultam, inequivocamente, dúvidas de que a conduta do arguido preencha, os elementos subjectivos dos dois crimes imputados, dos tipos de ilícito em questão, pelo que se impõe a conclusão de que o cometimento dos crimes em causa não se encontra suficientemente indiciado.
«E isto porque, conforme já adiantamos, não podemos ter por suficientemente indiciados (porque a disputa de natureza marcadamente cível sobre a propriedade do terreno em causa, e que não poderá deixar de passar pela instauração de litígio cível, a isso não consente) os elementos subjectivos dos ilícitos em questão.
«Em conformidade com o que antecede, atendendo à definição de indícios suficientes plasmada no artigo 283.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, na acepção que julgamos ser a adequada ao processo penal português, e considerando os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime em apreço, entendemos não estarem recolhidos elementos suficientes que permitem imputar ao arguido a prática, em autoria material, de um crime de dano e de um crime de alteração de marcos, crimes pelos quais não poderá, nem será, assim, pronunciado.
«As assistentes insistem na afirmação de que os autos reúnem elementos suficientes para levar a julgamento o arguido pela prática dos crimes de dano e de alteração de marcos, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 212° n° 1 e 216° n° 1, do Código Penal.
«Está em causa um incidente relacionado com actos de posse praticados num prédio rústico cuja propriedade é objecto de discussão entre as assistentes e o arguido, ainda que não objecto de qualquer acção cível.
«Já o despacho final de arquivamento, que antecede a presente instrução e que constitui o seu objecto, decidiu não prosseguir os autos, e é claro na indicação de que o que está em causa é a insuficiência de indícios susceptíveis de demonstrar, desde logo, os "elementos subjectivos" dos apontados crimes. Assim é. A par da incerteza sobre a verificação de todos os elementos objectivos dos indicados tipos de crime, a existência de três pessoas, em que cada uma dela reivindica, para si, a propriedade do aludido prédio denota bem que não se prefigura a alegada representação subjectiva do arguido sobre a ilicitude de actos que alegadamente praticou ou terá praticado no imóvel. Não é difícil antever a defesa que as aqui assistentes apresentariam caso viessem a ser acusadas da prática de idênticos crimes, em resultado da sua actuação no prédio: diriam, por certo, que actuaram na convicção de que o prédio lhes pertence e que, nessa medida, agiram no exercício legítimo de um direito, sem consciência da ilicitude e sem dolo. Ora, o prosseguimento do processo criminal para julgamento só se aceita nos casos que ofereçam uma garantia fundada de procedência da acusação.
«Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana [artigo 1.°], do Estado de direito democrático (ou da protecção dos cidadãos contra a prepotência e o arbítrio por parte do Estado, designadamente quando submete uma pessoa a julgamento penal) [artigo 2.°] e da presunção da inocência (do qual decorre o princípio in dubio pro reo que percorre todo o processo penal) [artigo 32.°, n.° 2] impõem que a expressão "indícios suficientes" seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final, o que também pressupõe que a suficiência de indícios só se afirme nos casos em que quaisquer dúvidas razoáveis quanto à futura condenação sejam previamente afastadas [posição proposta por Jorge Noronha Silveira, "O conceito de indícios Suficientes no processo penal português", Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. pp. 155-181].
«Nas palavras sempre actuais do Professor Castanheira Neves (que justificam a extensão da citação): "(...) no que toca à apreciação da prova ou dos indícios, deve observar-se que se não trata de aceitar um grau menor de comprovação, uma mera presunção, ou uma probabilidade insegura (...) antes se impõe também aqui uma comprovação acabada e objectiva, i.é., a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de 'verdade' requerida pelo julgamento final - só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação (desde logo porque não concorrem nesse momento elementos que anulem ou contrabalancem a força convincente dos elementos incriminadores obtidos". E mais à frente: "(...) deverá, sim exigir-se aquele tão alto grau de probabilidade prática quanto possa oferecer a aplicação esgotante e exacta dos meios utilizáveis para o esclarecimento da situação - um tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer a dúvida (ou logre impor uma convicção) a um observador razoável e experiente da vida, ou, talvez melhor, a um juiz normal" [Sumários de Processo Criminal, 1967-68, p. 39 e 53-54].
«Cotejando a prova produzida nos autos, facilmente concluímos que os indícios coligidos não são suficientes para pronunciar o arguido pela prática de qualquer um dos crimes que as assistentes [sua tia e irmã] lhe atribuem.
«Se é verdade que as assistentes juntaram aos autos prova documental da propriedade dos respectivos terrenos, as suas confrontações e as áreas não resultam absolutamente demonstradas.
«Os "muretes" em lousa visíveis na inspecção realizada ao local traduzem uma divisão de terrenos e já não a existência de quaisquer leiras para plantação, até porque o terreno é maioritariamente, senão mesmo na totalidade, de pinhal e mato.
«A versão aduzida aos autos pelo arguido é consentânea com a configuração e disposição dos terrenos vista in loco.
«Também não é menos verdade que as assistentes apenas se referem ao prédio do arguido como sendo aquele onde agora foi implantada uma casa, cuja percepção e visualização foi conseguida pelo Tribunal mediante a inspecção que fez ao local. Todavia o arguido diz-se proprietário de um terreno situado mais ou menos em frente ao das assistentes, o qual foi dividido pela Estrada Nacional que foi construída no local e que a parte de terreno onde os factos em discussão nos autos foram praticados ainda lhe pertence e este sim está situado próximo ao terreno das assistentes, confinando a poente com o terreno da assistente C….
«Daqui resulta tornar-se evidente que os autos não permitem afirmar um juízo de indiciação da prática dos crimes por parte do arguido - uma vez que não se mostram suficientemente indiciados os elementos constitutivos dos apontados crimes.
«Assim, temos por não verificado o elemento subjectivo dos tipos de ilícito de dano e de alteração de marcos, impondo-se, por isso, a não pronúncia do arguido.
«O tipo legal do ilícito de alteração de marcos exige que o agente tenha representação do carácter demarcatório dos marcos e por via da sua actuação exige-se a intenção de apropriação para si ou para outrem de coisa imóvel alheia, de modo a garantir o domínio de facto sobre a coisa imóvel como se fosse proprietário.
«Tal não se verifica relativamente a uma pessoa que, como o arguido, se arroga proprietário, por direito, do imóvel que pertenceu ao sogro e agora pertence ao casal, constituído por si e pela mulher.
«No caso em apreço, ainda que se admita como verdadeiro que o arguido cortou dois pinheiros, o que aliás foi admitido pelo próprio e referido por todos quanto foram ouvidos quer durante o inquérito, quer durante a instrução, resulta indiciado nos autos que o mesmo fê-lo no convencimento de que o terreno onde aqueles se encontravam é um bem próprio dele e não coisa imóvel alheia.
«Daqui resulta que o arguido não actuou com dolo, não se mostrando verificado o elemento subjectivo típico para a verificação dos crimes de dano e de alteração de marcos.
«Uma última nota para dizer que não existe aqui, ressalvado o devido respeito por diferente opinião, qualquer questão prévia cuja decisão importe aguardar para posteriormente se decidir pela existência ou verificação dos ilícitos em causa, desde logo porque o desfecho de eventual acção cível instaurada ou a instaurar, não contende com a apreciação que nesta sede penal nos cumpre apreciar, desde logo porque resultou suficientemente indiciado que sempre o arguido, independentemente de eventual ganho de causa na acção cível, actuou no pressuposto de que o terreno é bem próprio dele, mesmo que tal facto não lhe venha a ser reconhecido por via da acção judicial que vier a interpor ou em que seja réu/ demandado.
«Da prova coligida para os autos teremos que concluir que os elementos deles constantes, não permitem, ainda que conjugados entre si, fundar qualquer juízo de culpabilidade do arguido, nada apontando para uma probabilidade de condenação daquele em julgamento.
«A manter-se a prova produzida até então, é bem mais provável que o arguido venha a ser absolvido do que condenado.
«O juízo de pronúncia deve em regra passar por três fases: um juízo d e indiciação da prática de um crime, ou seja, a indagação de todos os elementos probatórios produzidos; um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido e um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos ou vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento15.
«No caso em apreço, e fazendo apelo aos juízos acabados de enunciar, entendemos não estar suficientemente indiciada a prática dos ilícitos que se imputam ao arguido no Requerimento de abertura de instrução da assistente B… que em si contém a "acusação alternativa" na sequência do despacho de arquivamento do Ministério Público, impondo-se, assim, a sua não pronúncia, pois que se nos afigura mais provável que o arguido venha a ser absolvido pela prática de tais ilícitos do que condenado.
«A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame. Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.° daquela Declaração e 27.° da CRP).
«Nestes termos, vem-se entendendo que a «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição».
«Em face de todo o exposto, impõe-se, por isso, a não pronúncia do arguido, nos termos do disposto no art. 308, n° 1, última parte, do Código de Processo Penal, relativamente aos factos ínsitos no Requerimento de abertura de instrução aduzido aos autos pela assistente B….
«Considerando que a acusação particular deduzida pela assistente C… não foi posta em causa pelo arguido, a mesma não faz parte do objecto da presente instrução e do +pelo que, nesta parte, sempre os autos deverão ser remetidos à distribuição para julgamento.
«VII.
«Pelo exposto, e nos termos do art.° 308.°, o C. P. Penal, decide-se não pronunciar o arguido F… no que respeita aos crimes de dano e de alteração de marcos, p. e p. pelos artigos 212° n°1 e 216° n° 1, respectivamente, do Código Penal, que lhe eram imputados no Requerimento de Abertura de Instrução da assistente B…, ordenando-se, nesta parte, o arquivamento dos autos.
«(…)»
2. Inconformada com a decisão referida, dela recorreu a assistente, B…, com os demais sinais dos autos.
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
«1. O despacho em crise padece do vício fundamental expresso na motivação de recurso e para a qual se reporta ponto por ponto, a saber
«2. Dignificou a um ponto desmesurado as declarações contraditórias do arguido quanto à localização e propriedade do seu terreno.
«3. A pontos de anular e rejeitar toda a restante matéria factual objectiva e subjectiva que ficou assente e comprovada desde o início.
«4 Mas sem ordenar diligências fundamentais e fáceis de obter, capazes de comprovar que, entre o terreno do arguido e os terrenos das assistentes, há um longo caminho de servidão pertença de uma outra pessoa que, aquando da inspecção ao local lá se encontrava de nome F… e que separa os terrenos em causa do arguido e assistente.
«5. E não ordenando sequer a entrega da aludida escritura de venda do terreno pelo arguido à Conservatória de Valongo.
«6. Ao mesmo tempo errando na fundamentação por desvalorizar o comportamento de duas meras testemunhas que não tinham legitimidade sequer para resistir fisicamente aos desmandos do arguido no momento em que o mesmo destruía o que não era seu.
«7. E apreciando erradamente a própria matéria factual subjectiva, dando como adquirido que o arguido apenas pretendeu limpar o terreno que acreditava ser seu, quando ficou patente que o mesmo se limitou a destruir e a deixar no terreno, os pinheiros arrancados pela raiz, não cortados e nunca levados e aproveitados por si, bem como os despojos da destruição dos muros, junto aos quais se situavam os marcos desse modo alterados e escondidos por debaixo do entulho.
«8. E desse modo prejudicando a assistente, através de uma fundamentação para a não pronúncia sem assento factual capaz de levar a essa decisão.
«9. Decisão que, para mais sugere que a decisão apropriada seria a resistência física e a consequente paragem dos trabalhos no momento por duas testemunhas.
«10. E estranhando a decisão da assistente de se queixar perante a justiça mais tarde e após constatar no local a destruição ocorrida.
«11. Tratando desse modo a assistente de forma injusta e não equitativa.
«12. Mas também de forma desigual pois sabia o tribunal que, nestes autos prossegue para julgamento a acusação particular da co assistente pelos mesmos factos alegadamente cometidos pelo mesmo arguido ali acusado e aqui não pronunciado.
«12. Violou assim o despacho os art°s 97° n° 5; 289° n° 1; 290° n° 1; 292° n° 1 a contrario sensu; 304° n° 2; 410°, n°s 1 e 3 e 412° do CPP; 13°; 204° e 205° n° 1 da Constituição da República Portuguesa; e art. 6° n° 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.»
Terminou a pedir que o despacho recorrido seja declarado nulo, ferido de inconstitucionalidade e substituído por outro que pronuncie o arguido pelos ilícitos em causa.
4. Notificado do recurso, o Ministério Público (MP) apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento.
5. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto (PGA) juntou aos autos parecer em que se pronunciou por que o recurso não merece provimento.
6. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), a recorrente não respondeu.
7. Realizado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência. Realizada esta, dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
II.
1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, a única questão posta no recurso é a da errada apreciação da matéria de facto, que, no dizer da recorrente, conduziria à nulidade da decisão de não pronúncia, Isto conforme a expressão constante de I–A da motivação: [n]ulidade por erro na apreciação da matéria de facto, para a qual remete a conclusão 1.ª.
Na concepção da recorrente uma acertada valoração dos indícios existentes deverá levar à revogação do despacho de não pronúncia e sua substituição por outro, que mande pronunciar o arguido.
No desenvolvimento dessa ideia a recorrente afirma que foi tratada de forma injusta, não equitativa e desigual, por a acusação da co-assistente C… prosseguir para julgamento, pelos mesmos factos, cometidos pelo mesmo arguido.
Pretende, ainda, a recorrente que o despacho recorrido violou preceitos constitucionais e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Não vale a pena, por ocioso, reformular, aqui, os subsídios dogmáticos do despacho recorrido, relativos à natureza e desígnios do processo de instrução e exigências normativas de existência de indícios da prática do crime, bem como dos tipos de crimes envolvidos e dos elementos objectivo e subjectivo que os integram.
Devemos, contudo, declarar a nossa concordância com tais contribuições teóricas, bem apoiadas em referências doutrinárias e jurisprudenciais valiosas e, de um modo geral, pacificamente aceites.
Também o Ex.mo PGA, no douto parecer que apresentou, manifesta argumentos que confirmam e apoiam os do referido despacho, não divergindo dele substancialmente.
Vejamos então, o que poderá ser ainda dito, sem pecado de manifesta redundância.
Os crimes das previsões dos artigos 212.º (dano) e 216.º (alterações de marcos), são crimes conta a propriedade.
As acções típicas que integram tais crimes são acções contra a propriedade alheia, o que nos art.º 212º e 216.º se exprime, respectivamente nas expressão “coisa alheia” e “coisa imóvel alheia”.
Assim, as condutas danosas ou de alteração de marcos só são puníveis quando, além da verificação dos demais elementos típicos, se dirijam contra propriedade alheia.
O facto de a coisa danificada ou objecto de arrancamento ou alteração de marcos ser alheia é um a pirori da própria acção punível.
Não é que a propriedade alheia da coisa sobre que versa a acção pretensamente delituosa não possa ser apurada em processo penal. Pode! Tal impõe o princípio da suficiência da acção penal. Mas, por regra, o carácter alheio da coisa é um elemento estabilizado, anterior à discussão penal (não podemos dizer “exterior” à discussão penal, porque, como vimos, o carácter alheio da coisa danificada ou alterada é um elemento dos tipos legais de crimes em presença).
O problema é que quando a natureza alheia da coisa pretensamente objecto do crime for incerta (ainda que o seja apenas em primeira aparência) ou controvertida, essa situação de incerteza, mesmo que venha a ser desfeita no decurso da lide, acaba por se projectar quase inelutavelmente, na possibilidade de se vir a formar uma convicção segura sobre o dolo do agente.
O juiz terá sempre dúvidas, face à inicial aparência de incerteza sobre a propriedade da coisa, quanto a ter o agente agido na convicção de que a mesma lhe pertencia. É que mesmo que se demonstre que não era assim e que, de facto, a coisa pertencia a terceiro, subsistirá sempre a dúvida sobre poder ter o arguido agido em erro sobre ser ele o proprietário do bem atingido e não a pessoa que se tiver vindo a demonstrar sê-lo. Este é o tipo de erro da previsão do art.º16.º do CP, que exclui o dolo.
Assim, a dúvida sobre a hipótese de o agente ter agido em erro que exclui o dolo é praticamente insuperável – não há meios materiais de a precluir – e, em homenagem ao princípio in dubio pro reo a absolvição acabará por se impor.
O caso dos presentes autos é exemplar desta situação.
A própria assistente/queixosa não define com clareza os limites do direito de propriedade que se arroga.
Na queixa que apresentou limita-se a afirmar que é proprietária, na qualidade de cabeça de casal da herança de K… de um de dois terrenos contíguos situados no …, …, Paredes. Nada mais.
Depois, a fls. 13, temos uma cópia (pouco menos que ilegível, aliás) de um documento da Direcção Geral das Contribuições e Impostos, de um prédio, sito em “…”, …, com o número matricial 2232. Nesse documento figura como proprietário K…. Poderá ou não ser o prédio referido na participação, mas, certamente, como título de propriedade da queixosa é completamente inconclusivo.
Deste documento constam confrontações, mas, como o mesmo não está datado, não tem nenhum valor informativo quanto à actualidade das mesmas, isto admitindo que se trate do prédio em litígio.
Na acusação particular que a dado passo a recorrente deduziu nos autos, continuou a referir o prédio supostamente objecto da prática dos crimes como “terreno vedado com entrada visível, embora sem portão, propriedade da herança indivisa por morte de K…, da qual a assistente é cabeça de casal, sito no … e melhor identificado nos autos.”
Várias peripécias processuais depois, o MP. escreveu, no despacho de arquivamento que lavrou nos autos (cfr. despacho de 2009/01/16, a fls. 338 e ss.), que [o]s presentes autos tiveram início com queixa apresentada por B…, na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa por morte de K…, e C…, na qualidade de herdeira de seus pais, proprietárias de dois terrenos contínuos(sic), com os artigos matriciais 2231 e 2232, sitos no …, …, Paredes (…). Ignoramos onde foi o subscritor deste despacho encontrar a inscrição matricial do prédio da recorrente, presumindo nós que tenha sido no documento, já referido, de fls. 13.
No entanto, no requerimento de abertura de instrução, a ora recorrente, ponto 1, do requerimento, refere que apresentou queixa contra o arguido porque este “invadiu os terrenos em questão” e, adiante, reproduz, como matéria factual imputada ao arguido, os mesmos factos da primitiva acusação particular, que reproduz, com a indicação do terreno visado já transcrita supra.
A propriedade demonstra-se com títulos!
E a verdade é que a queixosa, assistente e, agora, recorrente, não identificou claramente o prédio de sua propriedade que, segundo ela, foi objecto de violação pelo arguido, nem apresentou títulos inequívocos das suas características, localização, área, confrontações actualizadas, inscrição e descrição predial – havendo-a – e inscrição matricial., enfim, tudo o que pudesse ser para demarcar com clareza o objecto da conduta delituosa imputada ao arguido e o inequívoco carácter alheio da coisa,
Face a esta panorâmica o arguido defendeu-se levantando dúvidas sobre as confrontações do prédio da autora e exacta localização de uma das extremas, afirmando, não que o prédio lhe pertencia, mas que estava convencido de que o pedaço de terra em que tinha intervindo – intervenção que não negou – era de sua propriedade.
É verdade que o arguido não se explicou muito bem, nem mostrou títulos do que alegou [1]. Mas há documentos nos autos – parte deles juntos pela própria recorrente (cfr. fls. 419 e ss.) – que mostram que o arguido é proprietário de terrenos na zona. O que aliás é natural, sendo ele parente próximo das duas queixosas dos presentes autos. Se os terrenos do réu confinam ou confinaram com os das queixosas, nomeadamente com aquele que a assistente C… diz ter sido alvo de acção maliciosa do arguido, é coisa de que os os autos não nos elucidam.
Seja como for a dúvida quanto ao conhecimento do arguido de estar a agir em terreno alheio instalou-se e é praticamente impossível de desfazer.
Com isto, a condenação é mais do que improvável. Se o arguido fosse submetido a julgamento com estes indícios a sua absolvição seria praticamente certa.
Nestas circunstâncias, como foi proficientemente demonstrado no despacho recorrido, os indícios são insuficientes para sustentar uma pronúncia e levar o arguido a julgamento. Não esqueçamos que os factos que delimitam o thema probandum são os que constam do requerimento de abertura de instrução.
Queixa-se a recorrente de que lhe foi dado tratamento desigual ao da sua co-assistente dos presentes autos. Não é verdade!
No devido tempo, a acusação particular que deduziu teve exactamente o mesmo tratamento, por parte do MP, que mereceu a da assistente C…. E a rejeição daquela acusação, pelo juiz do julgamento teve a ver com a qualidade da pessoa dela, assistente B…, de que a assistente C… não comungava. Tudo foi feito no escrupuloso cumprimento das leis processuais aplicáveis.
Quando, posteriormente, o magistrado do MP decidiu não acusar pelos mesmos factos, tratou-se de outro magistrado (cfr. fls. 4, 5, 337 e assinatura electrónica de fls.338 ), noutra situação processual, porventura, na prática, de maior exigência Ainda que tivesse sido o mesmo magistrado, não estaria vinculado à posição anteriormente assumida.
Seja qual for o motivo que determinou o MP a ter posições diversas com o evoluir do processo, o certo é que ao juiz de instrução isso nada interessa. Ele sim, apenas se rege pela sua própria análise dos indícios apurados, não lhe cabendo sindicar as posições pretéritas do MP, a não ser reflexamente, na medida em que com a pronúncia ou não pronúncia as suporte ou repudie.
Assim, a decisão de não pronúncia não é sindicável com base nas eventuais incoerências do MP na fase de inquérito.
Justamente, para ultrapassar o possível erro de decisão final do inquérito teve lugar a instrução.
Finalmente, não explica a recorrente em que consistem as pretensas inconstitucionalidades e violações dos direitos humanos. Se pretendia referir-se à duplicidade de tratamento, já vimos que a mesma não se verificou.
Na nossa óptica, o despacho recorrido não incorre em nenhum tipo de ilegalidade.
Termos em que haverá que negar provimento ao recurso.
III.
Atento todo o exposto,
Acordamos em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se a recorrente no pagamento de 3 UC de taxa de justiça.

Porto, 2011/05/11
Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
______________________
[1] E a verdade é que, em bom rigor, não tinha de o fazer. A alegação e prova da propriedade do prédio danificado ou objecto de alteração de marcos cabe à parte acusadora. Em todo o caso, provando-se essa propriedade na esfera patrimonial do queixoso, ao arguido conviria demonstrar a existência de uma situação material susceptível de tornar credível o erro excludente do dolo.