Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0253343
Nº Convencional: JTRP00035393
Relator: PAIVA GONÇALVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200303100253343
Data do Acordão: 03/10/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J V CONDE 2J
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CCIV66 ART508.
DL 522/85 DE 1985/12/31 ART6.
Sumário: O artigo 508 do Código Civil, em que se fixam limites máximos de indemnização em caso de acidente de viação sem culpa do responsável, não se encontra revogado pelo artigo 6 do Decreto-Lei n.522/85, de 31 de Dezembro, onde se estabelecem os limites mínimos do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

CARLOS... instaurou, no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Vila do Conde, acção sumária, destinada a exigir a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, contra a COMPANHIA DE SEGUROS R..., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 1.410.607$00 e no que vier a ser liquidado em execução de sentença, com juros de mora à taxa legal desde a citação, a título de reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, em consequência de, no dia 21 de Maio de 2000, cerca das 23 horas e 40 minutos, na freguesia de Vila Chã, concelho de Vila do Conde, quando tripulava o seu motociclo de matrícula ...-LQ, transportando como passageira Carla..., pela faixa direita da IC 1, no sentido Porto - Vila do Conde, ter sido embatido, na retaguarda, pelo veículo automóvel, de matrícula ...-DD, conduzido por César... que, na altura, circulava no mesmo sentido de marcha, a velocidade superior a 120 Km/hora e totalmente distraído.
Contestou a ré que, além de negar a versão do autor, imputou a culpa pela eclosão do acidente ao condutor do motociclo, por haver saído da berma direita e ter entrado repentinamente na faixa de rodagem do veículo segurado.
Saneado e condensado o processo, procedeu-se depois a julgamento e, por fim, sentenciou-se no sentido da procedência parcial da acção, condenando-se o réu a pagar ao autor a quantia de 935.675$00, correspondente a 4.667 euros e 13 cêntimos acrescidos de juros de mora à taxa legal de 7% a contar da citação até integral reembolso e, bem assim, o montante a liquidar em execução de sentença relativamente aos danos corporais, por incapacidade geral e para o trabalho, morais, estético e de dor ainda não apurados.
Simultaneamente, o autor foi condenado a restituir à ré a diferença entre o valor recebido como reparação provisória e a importância acima fixada.
Inconformado, apelou o autor que, nas suas alegações, concluiu:
1- No dia 21/05/00, pelas 23 horas e 40 minutos ocorreu um acidente de viação no IC, freguesia de Vila Chã, Vila do Conde, em que interveio o motociclo ...-LQ, conduzido pelo autor e o veículo automóvel de matrícula ...-DD, circulando ambos os veículos no sentido Porto/Vila do Conde.
2- Acerca do modo como ocorreu o acidente que provocou graves danos patrimoniais e não patrimoniais ao autor pouco se conseguiu apurar acerca do modo como ocorreu, tendo a Meritíssima Juiz a quo decidido - e bem - pela culpa objectiva, ou pelo risco.
3- Já não diríamos que andou tão bem quando repartiu o risco na proporção de 1/3 para o motociclo e 2/3 para o automóvel.
4- Quer pelas respectivas massas dos veículos, quer pelo espaço que ocupam na via, quer até pela visibilidade envolvente, não é equitativa, justa e adequada aquela percentagem.
5- A jurisprudência não é unânime na fixação da percentagem, nem poderia ser, mas em casos semelhantes vai de 1/4 até 1/7 para o motociclo de 3/4 até 6/7 para os veículos de quatro rodas.
6- Afigura-se-nos, salvo melhor e mais esclarecida opinião em contrário, que o que for além de 1/5 para o motociclo não é justo, nem adequado à perigosidade do ciclomotor.
7- A douta sentença recorrida, merece também censura quando se pronuncia no sentido de que os montantes a indemnizar ao autor (quer já quantificados, quer a liquidar em execução da sentença) se reduzirão aos limites máximos previstos no artº 508 do Código Civil.
8- A fixação dos montantes indemnizatórios constantes do artigo 508º do Código Civil é uma clara violação do disposto nos artigos 1º nº 2 e 5º nº 3, na redacção que foi dada pelo Anexo I, Parte IX, do Acto Relativo às Condições de Adesão do Reino de Espanha e da República de Portugal e às Adaptações dos Tratados da Segunda Directiva que obstam à existência de uma legislação nacional que prevê montantes máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimo de garantia fixados por esses artigos quando, não havendo culpa do condutor do veículo que provocou o acidente, só haja lugar a responsabilidade pelo risco (conforme Ac. de 14/09/2000 da 5ª Secção do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias).
9- O Estado Português deveria ter transposto, o mais tardar até 31.12.1995, a Segunda Directiva para a ordem jurídica interna, eliminando a fixação de montantes máximos fixados pela referida Directiva.
10- Todavia, como se trata de uma norma emanada por uma Organização Internacional dotada de poder legislativo, e porque se trata de uma norma de Direito Comunitário, por força do disposto no artigo 8º nº 3 da Constituição da República Portuguesa, a norma da Segunda Directiva além de entrar directamente na ordem jurídica interna portuguesa, prevalece e até substitui automaticamente a norma de direito interno, o que aconteceu muito antes da ocorrência do acidente dos autos.
11- A douta sentença recorrida violou o disposto na referida Segunda Directiva e o disposto no artigo 8º nº 3 da Constituição da República Portuguesa na redacção da terceira Revisão Constitucional.
12- Em consequência a ré deve ser condenada a pagar ao autor a indemnização já quantificada e a que se vier a liquidar em execução de sentença, indemnização essa não sujeita aos limites fixados pelo artº 508º do C.Civil, uma vez que este artigo se encontra tacitamente revogado pelo artº 6º do D.L. 522/85.
13- Pelo que a indemnização a pagar pela ré, no caso em apreço, apenas terá como limite máximo o do capital obrigatoriamente seguro.
Na resposta, a recorrida pugnou pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância:
No dia 21 de Maio de 2000, pelas 23 horas e 40 minutos, no IC 1, freguesia de Vila Chã, Vila do Conde, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o motociclo, marca Yamaha, de matrícula ..-LQ e o veículo automóvel de matrícula ..-DD (alínea a) dos factos assentes).
Em consequência do acidente o autor sofreu fracturas ao nível do tornozelo esquerdo, fémur direito e clavícula esquerda (alínea b).
E deu entrada no Hospital Pedro Hispano em Matosinhos com diagnóstico "Politraumatizado" (alínea c).
Na altura do embate chovia e o piso estava molhado (alínea d).
O veículo DD circulava no sentido Porto/Vila do Conde (alínea e).
A responsabilidade civil por acidentes de viação causados pelo veículo ..-DD encontrava-se transferida para a ré através de contrato de seguro, titulado pela apólice nº... (alínea f).
O autor conduzia o motociclo, marca Yamaha, de matrícula ..-LQ, sua propriedade, pela IC 1, no sentido Porto-Vila do Conde, transportando como passageira Carla... (resposta ao ponto 1º da base instrutória).
Em consequência do acidente o autor sofreu atingimento neurológico, foi submetido a três intervenções cirúrgicas, as duas primeiras no Hospital Pedro Hispano e a terceira no Instituto Médico de Gaia e terá de efectuar outras cirúrgias para debelar as lesões sofridas (resposta ao ponto 8º).
O autor ficou afectado com várias cicatrizes que o desfeiam ao nível do cotovelo esquerdo, perna direita e clavícula esquerda (resposta ao ponto 9º).
E ficará afectado com mais cicatrizes decorrentes das futuras intervenções cirúrgicas (resposta ao ponto 10º).
Sofreu, sofre e sofrerá dores com tratamentos, cirúrgias e fisioterapia (resposta ao ponto 11º).
Passou a denotar alterações ao nível psíquico e comportamental, enervando-se facilidade, denotando hipersensibilidade ao ruído, emocionando-se com facilidade (resposta ao ponto 12º).
O autor está, desde o acidente, totalmente incapacitado para o trabalho, inclusive para tratar de si próprio (com referência à data da propositura da acção) (resposta ao ponto 13º).
Os primeiros dois meses passou-os retidos ou na cama do hospital ou em cadeiras de rodas (resposta ao ponto 14º).
Actualmente para se movimentar necessita de canadianas (com referência à data da propositura da acção) (resposta ao ponto 15º).
O autor não teve ainda alta médica (com referência à data da propositura da acção) (resposta ao ponto 16º).
Antes do acidente o autor trabalhava como montador de elevadores para António..., auferindo o salário mensal médio de 90.000$00 (incluindo trabalho suplementar), sendo o seu salário base de 81.650$00 (resposta ao ponto 17º).
A roupa que o autor vestia aquando do acidente ficou totalmente danificada, sendo um blusão de cabedal no valor de 70.000$00, umas calças "Heavy", no valor de 13.500$00, uma camisola, no valor de 5.000$00, uma t-shirt, no valor de 7.500$00 e umas botas, no valor de 12.500$00 (resposta ao ponto 18º).
O autor despendeu em transportes de sua casa para os hospitais e clínica de fisioterapia quantia superior a 150.000$00 (resposta ao ponto 19º).
Em material ortopédico o autor gastou a quantia de 18.762$00 (resposta ao ponto 20º).
E suportou a quantia de 156.250$00 relativa ao internamento e cirúrgia no Instituto Médico de Gaia (resposta ao ponto 22º).
Em consequência do acidente o motociclo LQ ficou totalmente destruído (resposta ao ponto 23º).
O mesmo tinha à data do acidente um valor comercial de 710.000$00 e os seus salvados não valem mais de 50.000$00 (resposta ao ponto 24º).
Enumerados os factos provados e não havendo motivo legal para os alterar, é altura de apreciar a impugnação.
Equacionam-se, neste recurso, necessariamente delimitado pelas conclusões da alegação, as seguintes questões:
a) Graduação do risco;
b) Se o artigo 508º do Código Civil se pode considerar tacitamente revogado pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.
Vejamos a primeira questão.
Pretende o autor - apelante que a contribuição pelo risco do motociclo deveria ser graduada em percentagem não superior a 1/5.
Não tem, porém, razão.
Permanecendo oculta a génese do acidente, aceita-se que o deflagrar do evento não ocorreu por culpa de qualquer dos condutores intervenientes.
Daí que, nesta situação, se determine no artigo 506º nº 1 do Código Civil que a responsabilidade seja repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos haja contribuído para os danos.
A colisão deu-se entre um motociclo e um veículo automóvel e os danos foram causados pela acção conjunta de um e outro.
Neste caso, a culpa como pressuposto da responsabilidade é substituída pelo fundamento lógico, baseado num critério de justiça distributiva, consagrado na máxima ubi commodum ibi incommodum, de que sendo o dono do veículo quem aproveita as vantagens a ele inerentes sobre o mesmo devem recair os danos provenientes da sua utilização.
Ora, o veículo automóvel na colisão com o motociclo produz, normalmente, maiores danos do que aqueles que sofre e, assim, na determinação da respectiva proporcionalidade os riscos daquele devem ser computados em plano mais elevado.
Na verdade, cotejando a maior potencialidade do veículo automóvel, susceptível de provocar danos graves e a falta de estabilidade inerente ao motociclo agravada pelas circunstâncias concretas de nele se fazer transportar uma passageira, de chover e de o piso estar molhado, é de concluir que as características deste veículo contribuíram, apesar de tudo, em medida mais reduzida para o deflagrar do evento.
Admitindo-se, deste modo, dada a ausência de prova em contrário, que a viatura automóvel contribuiu, no caso em apreço, em grau mais elevado para a -produção dos danos verificados pelo maior risco que criou, a determinação de 2/3 e de 1/3 para o automóvel e para o motociclo, baseada num critério prudente e equilibrado, não é merecedora de qualquer censura.
Examinemos, agora, a segunda questão.
Entende o apelante que o artigo 508º do Código Civil se acha tacitamente revogado pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.
Em abono da sua tese, expende que a fixação dos montantes indemnizatórios previstos no artigo 508º do Código Civil constitui clara violação dos artigos 1º nº 2 e 5º nº 3 do Acto Relativo às Condições de Adesão do Reino de Espanha e da República de Portugal, na redacção dada pelo Anexo I, Parte IX, bem como às Adaptações dos Tratados da Segunda Directiva que obstam à existência de uma legislação nacional que prevê montantes mínimos de garantia estipulados por esses artigos, em caso de responsabilidade pelo risco.
Além disso, ainda na sua óptica, dado que a Segunda Directiva não foi transposta, como deveria, para a nossa ordem jurídica interna até ao dia 31 de Dezembro de 1995 e atendendo a que se trata de uma norma emanada de Organização Internacional dotada de poder legislativo tal norma de direito comunitário entra directamente na ordem interna, por força do nº 3 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa.
Será assim?
Pensamos que não. Expliquemos porquê.
Como é sabido, no âmbito das regras que presidem à fixação do quantum indemnizatório em acidentes de viação podemos divisar o princípio geral da reparação integral do dano na responsabilidade subjectiva e o da limitação do ressarcimento na responsabilidade objectiva, pese embora o primeiro sofrer a atenuação imposta pelo artigo 494º do Código Civil, diploma a que pertencerão as demais disposições legais a citar sem outra indicação.
Vale isto por dizer que a responsabilidade objectiva por acidentes de viação é limitada e excepcional, uma vez que não repara integralmente o dano e só existe nos casos especificados na lei (artigos 483º nº 2 e 503º nº 1).
Neste sentido, estipula-se no artigo 508º nº 1, na versão dada pelo Decreto-Lei nº 190/85, de 24 de Junho, que a indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo, no caso de morte ou lesão de uma pessoa, o montante correspondente ao dobro da alçada da Relação, que à data do acidente estava fixada em 14.963 euros e 94 cêntimos pelo artigo 24º nº 1 da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção dada pelo artigo 3º do Anexo ao Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de Dezembro.
Por seu turno, em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, surgiu como o primeiro acto de direito comunitário derivado, a Directiva nº 72/166/CEE, de 24 de Abril de 1972, do Conselho das Comunidades Europeias, que, no seu artigo 3º nº 1, estatuiu a obrigação de cada Estado - Membro adoptar todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro, determinando o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.
Subsequentemente, o Conselho aprovaria a 2ª Directiva nº 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983, que veio complementar e alterar a 1ª, visando fundamentalmente a harmonização das diferentes legislações dos Estados membros no que toca à cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e estabelecendo, além do mais, os valores mínimos a impor pelos Estados membros para a cobertura garantida pelo respectivo seguro que deveria obrigatoriamente abranger os danos materiais e os corporais.
Portugal optaria pela última alternativa concedida pelo nº 2 do artigo 2º desta Directiva: montante global mínimo de 120.000.000$00, ou seja, 600.000 euros, por sinistro, independentemente do número de vítimas ou da natureza dos danos, alterando, em cumprimento daquele acto de direito comunitário, o artigo 6º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, através da publicação do Decreto-Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro, mas com efeitos a partir de 1 de Janeiro do mesmo ano.
Por último, a 3ª Directiva nº 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 cuja preocupação se centrou na protecção das vítimas de acidentes de viação e na salvaguarda dos respectivos direitos de indemnização, designadamente quer pela via do âmbito da cobertura do seguro obrigatório e da intervenção do Fundo de Garantia quer da definição da entidade que, em primeira linha, em caso de dúvida, deve indemnizar a vítima, fixou, no seu artigo 6º nº 2, em derrogação ao nº 1, um prazo suplementar à República Portuguesa até 31 de Dezembro de 1995 para dar cumprimento aos artigos 1º e 2º.
Importa, desde já, acentuar que o cumprimento da obrigação de transposição da Directiva 84/5/CEE - concretamente do artigo 1º nº 2 e do artº 5º nº 3, que obstam à existência de limites máximos de indemnização do seguro obrigatório neles fixado - tem vindo a ser feito através do artigo 6º do Decreto-Lei nº 522/85, sucessivas vezes alterado precisamente com este propósito.
Por outro lado, assume especial relevo, neste domínio, o acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 14 de Setembro de 2000, proferido no Procº C - 348/98, motivado por um pedido que lhe fora dirigido pelo Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, o chamado reenvio prejudicial nos termos do artigo 177º do Tratado de Roma, actualmente artigo 234º segundo a redacção do Tratado de Amesterdão da União Europeia.
Nele se afirma, entre outras coisas, que "O artigo 3º nº 1, da Primeira Directiva, tal como foi precisado e completado pela Segunda e Terceira Directivas, impõe, portanto, aos Estados - Membros que assegurem que a responsabilidade civil relativa à circulação dos veículos com estacionamento habitual no seu território seja coberta por um seguro e precisa, designadamente, os tipos de danos e os terceiros vítimas que esse seguro deverá cobrir. Em contrapartida, este artigo não se pronuncia sobre o tipo de responsabilidade civil, pelo risco ou por culpa, que o seguro deverá cobrir".
Logo a seguir, pondera-se que "Na falta de regulamentação comunitária que precise qual o tipo de responsabilidade civil relativa à circulação dos veículos que deve ser coberta pelo seguro obrigatório, a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos é, em princípio, da competência dos Estados - Membros e que ... no estado actual do direito comunitário os Estados - Membros continuam livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos, mas são obrigados a garantir que a responsabilidade aplicável segundo o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme às disposições das três directivas referidas".
Concluiu-se também, naquele Acórdão, a propósito da Segunda questão que lhe foi posta, que "... a responsabilidade civil que, segundo o direito nacional do Estado - Membro em causa, se aplica os acidentes resultantes da circulação dos veículos deve ser coberta por um seguro e que este seguro deve respeitar os montantes mínimos de garantia fixados nos artigos 1º nº 2 e 5º nº 3, na redacção que lhe foi dada pelo acto de adesão, da Segunda Directiva" e que "... em relação aos sinistros cobertos com esta responsabilidade civil, a legislação não pode prever limites máximos de indemnização inferiores a esses montantes mínimos".
Aquele aresto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias na interpretação que fez da Segunda Directiva no sentido dos limites mínimos de cobertura por ela impostos não poderem coexistir com limitações estatuídas no direito interno aos montantes indemnizatórios devidos em termos de fixar máximos de indemnização inferiores à cobertura imposta obriga apenas o tribunal que colocou a questão prejudicial bem como os que, posteriormente, se pronunciarem sobre o mesmo litígio sendo as mesmas as partes.
Por isso, mantém-se a vigência do artigo 508º, pese embora a incompatibilidade entre ele e a Directiva 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983, na interpretação dada por aquele Tribunal, a não ser que o Estado Português, à semelhança da alteração produzida no artigo 504º, altere o texto do artigo 508º, de forma a que o limite da responsabilidade pelo risco não seja inferior ao valor mínimo fixado para o seguro obrigatório automóvel (cfr. Anotação ao Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de 14 de Setembro de 2000, da autoria de Adriano Garção Soares, in Revista da Ordem dos Advogados do Conselho Distrital do Porto, Ano 2001, nº 19, págs. 60 e 61).
Na verdade, como se observou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Maio de 2002, "a vigência do artº 508º nº 1 só cessa pela sua revogação, expressa, ou tácita, ou de sistema".
"Está fora de causa - afirma-se ainda neste aresto - a ocorrência das primeira e terceira modalidades revogatórias".
Por outro lado, afastando a tese defendida no acórdão desta Relação de 8 de Novembro de 2001 e sustentando que a regulamentação do seguro quanto ao montante da cobertura legalmente imposta não contende, por si só, com as limitações resultantes do regime da responsabilidade civil, concluiu-se que "a Segunda Directiva, tal como a entendeu o TJCE, acaba por ser - na mediada em que interfere na existência destas limitações - uma disposição comunitária que pretende ser também uma regulamentação de um aspecto próprio do regime da responsabilidade civil a observar pelos Estados - Membros "(CJ do STJ, Ano X, Tomo 2, pág. 57).
Inversamente, ao entendimento adoptado pelo nosso mais alto Tribunal e que temos vindo a subscrever, o Prof. Calvão da Silva, em anotação ao acórdão do S.T.J. de 30 de Março de 2000, opina que, sem prejuízo do legislador nacional proceder a uma alteração do artigo 508º em sintonia com o artigo 6º do Decreto-Lei nº 522/85, aquela norma da lei civil tem de considerar-se parcialmente revogada mas actualizada de acordo com este último normativo, sucessivamente alterado, por forma a que os limites máximos da responsabilidade não sejam inferiores aos montantes mínimos do seguro obrigatório (cfr. Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 134º, págs. 112 e segs.).
Sem embargo da posição perfilhada por aquele ilustre civilista, temos como mais exacta a doutrina que entende que o artigo 508º não foi revogado, ainda que parcialmente, pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, nem na sua versão originária, nem tão pouco nas sucessivas alterações que sofreu.
Como o efeito directo vertical das normas comunitárias não é aqui invocável (invocabilidade da norma comunitária por um particular contra um Estado-membro), dada a ausência do efeito directo horizontal (invocabilidade da norma comunitária por um particular contra outro particular) também está arredada a possibilidade dos particulares se valerem delas, enquanto não forem devidamente transpostas, para defenderem os seus direitos sobre outros particulares.
De resto, é o próprio Tribunal de Justiça que, no acórdão Faccini Dori de 14 de Julho de 1994, considera que as directivas não têm efeito directo vertical e que "alargar esta jurisprudência ao domínio das relações entre particulares equivaleria a reconhecer à Comunidade o poder de instituir, com efeito imediato, obrigações a cargo dos particulares, ao passo que ela não detém tal competência senão quando lhe é conferido o poder de adoptar regulamentos".
Assim, como conclui Nuno Manuel Pinto Oliveira no excelente trabalho publicado a propósito da Revogação Tácita do artigo 508º do Código Civil (?), excluída a possibilidade de se conseguirem os resultados estabelecidos na Segunda Directiva 84/5/CEE, do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, por intermédio da interpretação conforme do direito interno, as consequências da incompatibilidade entre o artº 508º do Código Civil e o direito comunitário circunscrevem-se a duas: em primeiro lugar, o Estado-membro - neste caso, o Estado Português - tem o dever de corrigir o seu direito interno (alterando ou revogando o artº 508º do Código Civil); em segundo lugar, tem a obrigação de indemnizar os particulares pelos danos decorrentes do cumprimento imperfeito do dever de transposição (in Scientia luridica, Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, Janeiro-Abril 2002 - Tomo LI, número 292, págs. 109).
De tudo o que se deixou explanado e contrariamente ao pretendido pelo apelante, resulta que não há violação do artigo 8º nº 3 da Constituição da República Portuguesa, dado este preceito legal só admitir a vigência automática das normas provenientes de certas organizações internacionais, desde que tal se encontre estabelecido nos tratados, como é o caso, entre outros, dos regulamentos e certas directivas normativas da União Europeia, além das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (cfr. Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa Comentada, LEX, pág. 81).
É que a directiva obriga apenas, como já se disse, quanto ao resultado a atingir, razão por que só das disposições jurídicas nacionais, adoptadas para alcançar o resultado prescrito, poderiam derivar para os particulares direitos susceptíveis de salvaguarda jurisdicional.
"Permitir que a directiva produzisse - antes que o Estado houvesse observado o comportamento conducente ao resultado prescrito - qualquer efeito imediato na esfera jurídica dos particulares, corresponderia a menosprezar a margem de liberdade que, por definição, os autores do Tratado haviam pretendido reservar para os Estados ao contrapor a directiva ao regulamento directamente aplicável" (João Mota de Campos, Manual de Direito Comunitário, 3ª edição, pág. 366).
No entanto, há que reconhecer que a jurisprudência comunitária, desde o Acórdão de 4 de Dezembro 1974, caso VAN DUYN, inclina-se no sentido de que, observadas determinadas condições, também a directiva poderá produzir efeitos imediatos na esfera jurídica dos particulares e susceptíveis de tutela jurisdicional.
Tal concepção não invalida, porém, que a generalidade das directivas comunitárias, para a sua aplicabilidade directa, careçam de transposição para a ordem jurídica interna sob a forma de lei ou de decreto-lei, conforme os casos, em obediência ao estipulado nº 9 do artigo 112º da nossa Lei Fundamental.
Improcedem, deste jeito, as conclusões da alegação da apelação.
Termos em que se nega provimento ao recurso e se confirma a decisão impugnada.
Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Porto, 10 de Março de 2003.
António de Paiva Gonçalves
Baltazar Marques Peixoto
António José Pinto da Fonseca Ramos