Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0753506
Nº Convencional: JTRP00040555
Relator: PINTO FERREIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
ANULAÇÃO
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RP200709170753506
Data do Acordão: 09/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 310 - FLS 155.
Área Temática: .
Sumário: I - Não constitui condenação em objecto diverso (e nulidade de sentença) o facto de se decretar a resolução de contrato de compra e venda, quando o pedido formulado era de anulação desse contrato.
II - Trata-se de mera aplicação do direito aos factos alegados, de qualificação jurídica diversa, permitida pelo art. 664.º do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da relação do Porto

I - Relatório

B………., L.da, instaura contra C………., L.da, intentam a presente acção de condenação, pedindo a anulação do contrato de compra e venda da viatura Audi .., matrícula ..-..-HD e ainda a pagar-lhe uma indemnização correspondente a € 24.106,90, a título de montante despendido no crédito para aquisição de bens de consumo duradouros, bem como o valor de € 320,45 relativos ao prémio de seguro automóvel obrigatório, como numa indemnização de € 1.500,00 a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido dos respectivos juros de mora até efectivo e integral pagamento.
Alega que celebrou com a ré um contrato de compra e venda de uma viatura automóvel a qual, no prazo de um ano da garantia convencionada, apresentou defeitos que impedem o seu normal funcionamento, com o que sofreu prejuízos, os quais reclama.
Contestou a ré que excepciona a caducidade do direito de acção e impugnou os factos alegados por esta, concluindo, portanto, pela improcedência da acção.
A Autora replicou alegando que não se extinguiu o direito de anular o contrato dos autos.

Dispensou-se a audiência preliminar e o tribunal julgou verificada a excepção da caducidade e absolveu a Autora do pedido.

Desta decisão foi interposto recurso de apelação, tendo a Relação revogado o despacho saneador sentença, ordenando a substituição do mesmo por outro que relegue o conhecimento da excepção da caducidade para a sentença final, fixando-se a base instrutória.
Devolvidos os autos, foi novamente dispensada a audiência preliminar e elaborado despacho saneador que seleccionou os factos assentes e os factos controvertidos, relegando para final o conhecimento da excepção da caducidade.
Realiza-se o julgamento, sendo ordenada a realização de uma perícia, e fixa-se a matéria de facto, sem reparo.
Profere-se sentença em que se julga a acção procedente e anula o contrato de compra e venda que fora efectuada entre as partes e relativo ao veículo automóvel.
Inconformada recorre a ré.
Recebido o recurso, juntam-se alegações.
Há contra alegações.
Colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do recurso.
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II - Fundamentos do recurso

O âmbito dos recursos é limitado pelo teor das conclusões - artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC -
Daí a utilidade da sua transcrição.
Assim:

1º. A recorrida alegou que a Ré não procedeu à reparação da avaria emergente da quebra de dentes da correia de distribuição.
2º. Não foi alegado nem se provou que tal quebra existisse no acto da celebração do contrato de compra e venda da viatura.
3º. O que, aliás, é impossível, pois é das regras da experiência e conhecimento comuns que a quebra da correia de distribuição ou de algum dos seus dentes provoca, inevitavelmente, o imediato e descomando” do motor. A A. circulou durante 10 meses e 16.000 Kms.
4°. No entanto a douta decisão recorrida enveredou pela existência de erro como causa de anulabilidade do negócio.
5°. Ninguém o tinha alegado, não foi provado e é impossível de existir.
6°. O enquadramento da questão, correcto, só poderia ser feito no âmbito de garantia de bom funcionamento.
7°. E a verificar-se o incumprimento desta a condenação da R. na reparação e, eventual, indemnização.
8°. Aliás o que a A. alegou foi, exactamente, esse incumprimento e não erro na celebração do contrato.
9°. Assim, a douta decisão recorrida conheceu da questão da qual não podia conhecer. E pior: conheceu mal.
Por outro lado:
10°. Sempre teria ocorrido caducidade do direito de acção. De facto,
11°. O negócio cumpriu-se e tornou-se perfeito em 16/01/2001.
12°. Em, pelo menos, 30 de Junho de 2002, a R. advertiu, expressa e confessadamente, a R. que não efectivaria qualquer reparação.
13º - A A. só interpôs a acção em 4/03/04
14º - Nada legitima, no caso, a desconsideração dos prazos legais de caducidade.
15º - Que, manifestamente, se verificam.
Violaram-se os artigos 247º, 251º, 254º, 287º, 914º, 916º e 921º do CC e 668º do CPC.

Nas contra alegações a posição é, naturalmente, diferente, pugnando-se pela manutenção do decidido
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III - Factos Provados.

Da Matéria Assente.

1 – A autora celebrou em 16/01/2001 um contrato de compra/venda de uma viatura automóvel com a ré, Soc. Comercial por Quotas que se dedica ao Comércio de automóveis.
2 – O objecto do referido contrato foi a viatura marca Audi – modelo …. matrícula ..–.. – HD, com 93.370 km, cujo ano de fabrico se reporta a 1996.
3 – A Autora e a Ré acordaram uma garantia de bom funcionamento desde 6-01-2001 a 15-01-2002.
4 – A referida viatura foi adquirida mediante contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros, sob o nº ……, com a D………., SA.
5 – O custo total do crédito, supra identificado, composto pelo montante financiado, pelas despesas, impostos e seguro perfez a quantia de Euros 24.106.90, a ser liquidado em 60 mensalidades, com início em 15/02/2001.
6 – Em virtude da aquisição do veículo, foi celebrado com a Companhia de Seguros E………., SA um seguro automóvel de responsabilidade civil, apólice nº ………, mediante o pagamento de 320.45 Euros, a título de prémio anual.
7 – A viatura foi adquirida com a finalidade de servir os interesses da Autora, no âmbito da actividade que exerce, e passou a ser utilizada pelo Sr. F………., habitual colaborador desta.
8- Desde a aquisição da viatura surgiram problemas, nomeadamente com o tecto de abrir, o qual se abria sem ordem de comando e depois não fechava.
9 -Em Junho de 2001, numa viagem ao Algarve, a viatura teve de ser sujeita a reparação devido a um problema de sobreaquecimento (o termóstato do veículo indicava temperatura máxima)
10 - Após a reparação referida no ponto anterior o Sr. F………. dirigiu-se à Ré a fim de resolver o problema a que se alude no ponto 9 e foi-lhe comunicado que o veículo não tinha qualquer anomalia no sistema de refrigeração.
11- Á viatura supra identificada, foi atribuído “Titulo de Garantia Plus” pela ACAP, á qual a ré se encontra vinculada na categoria de sócia sob o nº ….. .
12º- A garantia emitida pela ACAP*, na aquisição da 1ª viatura, atribui ao comprador “(…) o direito de exigir ao vendedor a reparação gratuita dos eventuais defeitos ou avarias que venham a ser detectados nos órgãos pelos quais o vendedor garante o seu bom funcionamento.
13 – A Ré aceitou a reclamação feita pela Autora em Junho de 2001.
14 – Os Técnicos da Ré referiram que a avaria apresentada em Junho de 2001 não resultava de qualquer anomalia no sistema de refrigeração.

Da base instrutória.

15 - Os defeitos do tecto de abrir protelaram-se até Abril / Maio de 2001 – resp. Q. 1º.
16 - Provado que em 10-11-2001 quando o veículo estava a circular na A1 parou e não circulou mais devido a uma falta de vários dentes na correia de distribuição do motor, o que, originou o descomando do motor - resp. Q. 2º.
17 - Nessa ocasião o veículo tinha 109.816 km - resp. q. 3º.
18 - E foi rebocado no âmbito da “ assistência em viagem” da Cª de Seguros E………., SA - resp. q. 4º.
19 - Desde Novembro de 2001 que o veículo se encontra na oficina da Ré para ser reparado – resp. q. 5º.
20 - O veículo foi entregue à Autora com 93.370 km, que teve as avarias referidas nos itens 8 e 9 da matéria assente e aquela referida na resposta ao quesito 2º e que deixou de circular em 10-11-2001, apresentando nessa altura 109.816 km - RESP. Q. 6º.
21- A Autora celebrou um contrato de Aluguer sob o nº ……… com a locadora G………., Lda. - resp. q. 7º.
22- No contrato referido ficou estipulado o prazo de 61 meses para o cumprimento do contrato, com o vencimento da 1ª prestação/ aluguer em 15/12/2001, no valor de Euros 452.27 cada (montante correspondente ao valor de cada prestação, acrescido do IVA respectivo) - resposta quesito 8º.
23 - Do mencionado contrato resultaram ainda despesas, inerentes a este, suportadas pela Autora, no valor de Euros 145, 89 – resp. q. 9º.
24 - Em Junho de 2002 o Sr. F………., colaborador da Autora, deslocou-se à oficina da Ré - resp. q. 10º.
25 - Nessa data o veículo continuava a ter as mesmas deficiências e avarias referidas na resposta ao quesito 2º - resp. q. 11º.
26 - A Ré desde a data referida na resposta ao quesito 2º até data não concretamente apurada de Junho de 2002 sempre se disponibilizou a resolver os problemas inerentes à viatura, a qual, durante esse período esteve parada nas instalações da Ré - resposta q. 12º.
27 - Após Junho de 2002 a Ré informou a Autora que teria de ser esta a reparar o preço da reparação e que desde então até à presente data o veículo permaneceu e permanece nas instalações da Ré - resp. q. 13º.
28 - Quando o veículo foi deixado na oficina da Ré para reparação o veículo marcava 109.816 km - resposta q. 14º.
29 - Em consequência da avaria descrita na resposta ao quesito 2º a viatura não podia nem pode circular - resposta q. 15º.
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IV - O Direito

IV - I - O tribunal considerou existir erro e daí seguir o caminho da anulabilidade do negócio.

Considera a apelante que nem a autora alegou qualquer facto nesse sentido nem resulta da matéria provada qualquer circunstância donde se possa retirar a existência de erro por banda do autor e justificativo da anulação do contrato, ou seja, não se mostra expresso qualquer vício capaz de determinar a anulabilidade.
Examinado o processo, pensamos que tem razão a apelante.
De facto, o autor assente a acção não no erro mas na circunstância de, durante o período de garantia concedido pela ré, ter surgido uma avaria no veículo usado que havia adquirido e que impede o andamento deste, qual seja a quebra de dentes da correia de distribuição.
Ora, esta formulação petitória, conjugada com a matéria dada como provada, enquadra-se antes na previsão do art. 921º do CC e não dos artigos 905º e 913º do CC.
De facto e desde logo, não podemos esquecer que nos encontramos perante um veículo usado, tendo como ano de fabrico 1996, com 93.370 km, à qual foi prestada um ano de garantia, sendo certo que a avaria ocorreu precisamente durante este período.
Por outro lado, não está demonstrado nos autos que a ré conhecia o vício ou a falta de qualidade do bem vendido, nem que o comprador não aceitasse a eventualidade de ocorrer uma avaria.
Questão e perspectiva diferente se poderia ter, eventualmente, caso se tratasse de um veículo novo, saído de um stand
Por isso que se pode encontrar a justificação para que tivessem as partes acordado uma garantia de bom funcionamento desde 6-01-2001 a 15-01-2002.
Acresce ainda que a autora seguiu na sua conduta, em primeira-mão, a via da reparação do veículo “Desde Novembro de 2001 que o veículo se encontra na oficina da Ré para ser reparado – resp. q. 5º -, “Em Junho de 2002 o Sr. F………., colaborador da Autora, deslocou-se à oficina da Ré - resp. q. 10º - Nessa data o veículo continuava a ter as mesmas deficiências e avarias referidas na resposta ao quesito 2º - resp. q. 11º - “A Ré desde a data referida na resposta ao quesito 2º até data não concretamente apurada de Junho de 2002 sempre se disponibilizou a resolver os problemas inerentes à viatura, a qual, durante esse período esteve parada nas instalações da Ré - resposta q. 12º”
Mas acontece que o vendedor não cumpriu essa obrigação, a da reparação do veículo nem a da substituição - art. 914º do CC -, para além de expressamente anunciar e informar mesmo a autora que teria de ser esta a reparar (entenda-se como suportar) o preço da reparação.
Deste modo, verificamos que o incumprimento da ré vendedora se tornou definitivo e quando tal acontece, então nada impede que o comprador invoque ou a perda de interesse objectivo na prestação ou lançar mão da interpelação admonitória para o converter o não cumprimento em incumprimento definitivo.
Mas no caso, como dissemos já, o vendedor recusa definitivamente ao cumprimento da obrigação, tornando este inadimplemento definitivo, pelo que há então lugar à resolução do contrato dos artigos 801º e 802º e 793º do CC - Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 66 e segts. E Armando Braga, A Venda de Coisas Defeituosas no CC, pág. 34 -.

IV - II - Mas este novo enquadramento jurídico da matéria factual apurada, faz surgir agora um outro problema, que cumpre solucionar.

A autora enquadra a problemática factual como justificativa de um pedido de anulação do contrato de compra e venda da viatura integrado no art. 913º do CC e pede o pagamento de uma indemnização correspondente a € 24.106,90, a título do montante despendido no crédito para aquisição do veículo, valor do prémio do seguro e indemnização por danos não patrimoniais.
A sentença da 1ª instância anula o negócio jurídico de compra e venda celebrado entre a autora e a ré mas condena apenas esta a pagar à autora uma indemnização a liquidar em execução de sentença mas correspondente ao valor pago por conta do preço do veículo Audi.
Ora, será que se pode converter o pedido de anulação de um contrato de compra e venda em resolução desse mesmo contrato, sabendo dos impedimentos fixados no n.º 1 do art. 661º do CPC - condenação em objecto diverso do pedido -.
Isto é, pedida a anulabilidade de um contrato de compra e venda por erro não pode ser decretada a resolução desse contrato por cumprimento defeituoso, ou seja, não se pode convolar de anulação para resolução?
Para o Ac. STJ, de 17-6-92, BMJ, 418º/715, apoiando-se em doutrina e exemplos expressos e citados em Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, pág. 182 e Antunes Varela, R.L.J., ano 122º, pág. 255, entende que se deve aceitar que se vier pedido a anulabilidade de um contrato e não a sua resolução, se considere que o autor qualificou erradamente a sua pretensão e, atento o art. 664º do CPC e uma vez que o juiz não está sujeito às qualificações jurídicas das partes, não fica o princípio do dispositivo ofendido com a conversão da anulabilidade de um contrato de compra e venda em resolução desse mesmo contrato.
O pedido correcto seria não o da anulabilidade do contrato de compra e venda mas o de resolução desse mesmo contrato.
Para além do mais, podemos verificar ainda que os efeitos da anulabilidade de um negócio e da resolução são os mesmos - artigos 289º e 433º do CC -, sendo certo ainda que com a declaração de resolução de contrato a condenação da 1ª instância se mantém, apenas se alterando a qualificação jurídica que lhe serve de base.
Portanto e em conclusão, embora com outro fundamento jurídico - resolução - haverá de confirmar a sentença apelada.

IV - III - Finalmente, o problema da caducidade da acção.

Consideramos que não tem razão a apelante, donde que apenas compita confirmar inteiramente a visão dada pelo tribunal a quo a esta questão.
De facto, aí se apontam os factos com interesse para este instituto, se faz uma análise extensa e cuidada da legislação aplicável e da doutrina adequada, nada mais se justificando que se diga.
Como mera análise de apoio ao entendimento aí manifestado, diremos que a declaração do vendedor de 30 de Junho de 2002, expressa e confessadamente, de não efectivar qualquer reparação, depois de a aceitar, não tem a virtualidade de suspender o prazo de caducidade e fazer renovar um outro - artigos 331º do CC -.
Será mesmo uma situação típica em que se justifica a aplicação do art. 713º n.º 5 do CPC, por acordo total com os fundamentos e com a decisão.
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V - Decisão

Nos termos e pelas razões expostas, acorda-se, embora com outro fundamento, em se julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão apelada.
Custas pela apelante.
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Porto, 17 de Setembro de 2007
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome