Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0434328
Nº Convencional: JTRP00037195
Relator: SALEIRO DE ABREU
Descritores: ALD
REGIME
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RP200410070434328
Data do Acordão: 10/07/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de aluguer de veículo sem condutor não está sujeito à disciplina vinculística.
II - Quando um contrato de locação é resolvido por falta de pagamento das rendas, o locador pode exigir juros de mora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
“B............., SA”, intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra “C............., LDA”, D.............. e E..............., alegando, em síntese, que:
- Em 17.01.2001, celebrou com a 1ª Ré um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, veículo esse de matrícula ..-..-RB;
- A Ré obrigou-se ao pagamento, durante 60 meses, de 61 alugueres, sendo o primeiro de € 398,78 e os restantes de € 144,86; porém,
- Não procedeu ao pagamento dos alugueres que se venceram desde Março de 2001 até Novembro, inclusive, do mesmo ano, no valor global de € 1.158,88;
- A Ré entregou o veículo à Autora em Agosto de 2001;
- Face ao incumprimento do contrato, a A. considerou-o resolvido em 01/12/2001;
- A A. acabou por vender o referido veículo por € 3.700,00;
- Tendo em conta os valores dos alugueres que se venceriam até final do contrato e o valor obtido com a venda do veículo, sofreu a A., em consequência da resolução do contrato, decorrente do seu incumprimento, um prejuízo de € 3.813,74 (ao qual deve ser deduzida a quantia de € 1.196,37, valor da caução prestada);
- Com a recuperação da viatura a A. suportou despesas no montante de € 409,50, € 70,03 com o seu reboque e € 146,25 com o respectivo leilão;
- Os 2º e 3º Réus constituíram-se fiadores da 1ª Ré.
Concluiu pedindo que:
a) seja declarada a resolução do contrato celebrado com a Ré, com efeitos a partir de 01/12/2001;
b) se condenem solidariamente os Réus a pagarem-lhe a quantia de € 1.455,89, correspondente aos alugueres vencidos e não pagos e respectivos juros, acrescida de juros de mora vincendos à taxa contratual fixada, acrescida de 4%, sobre o montante de € 1.158,88;
c) a pagarem-lhe a quantia de € 579,81, correspondente às mensalidades de seguro e respectivos juros vencidos, acrescida de juros de mora vincendos à taxa contratual fixada, acrescida de 4%, sobre o montante de € 461,52;
d) a pagarem-lhe a quantia de € 2.617,37, a título de indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos pela A. suportados em razão directa da resolução contratual;
e) e a pagarem-lhe a quantia de € 625,78, a título de despesas efectuadas com a recuperação, reboque e venda em leilão da viatura.

Os Réus, regularmente citados, não contestaram.

Cumprido que foi o disposto no artigo 484º do Código de Processo Civil, veio a ser proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente, condenando-se os Réus “a pagarem solidariamente à Autora a quantia de 869,16 €, a título de rendas vencidas e não pagas; bem como a quantia de 346,14 €, a título de prémios de seguro vencidos e não pagos, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 12%, até integral pagamento”.

Inconformada, apelou a Autora, tendo na alegação e respectivas conclusões defendido a validade da resolução extrajudicial do contrato e demais cláusulas nele insertas, maxime quanto a juros e indemnização compensatória pelos prejuízos decorrentes de uma tal resolução, tendo peticionado a procedência total da acção.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir:

II.
O tribunal a quo teve como assente a seguinte factualidade:
1. A Autora tem por objecto o aluguer de veículos, com ou sem condutor, bem como de qualquer outro tipo de máquinas ou equipamentos.
2. A Autora era legítima proprietária do veículo de marca “.............”, modelo “..............”, com a matrícula ..-..-RB.
3. No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com a 1ª Ré, em 17 de Janeiro de 2001, o contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor, vulgarmente designado de Aluguer de Longa Duração, que teve por objecto o veículo supra referido (doc. junto a fls. 13 e seguintes dos autos, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
4. Tal contrato foi afiançado pelos segundo e terceiro Réus.
5. Nos termos daquele contrato, a 1ª Ré ficou obrigada, pelo período de 60 meses, ao pagamento de 61 alugueres mensais, sendo o primeiro aluguer no valor de € 340,84 e os restantes no valor de e 123,81, a que acrescia IVA à taxa legal.
6. O veículo foi entregue pela Autora à 1ª Ré na data da celebração do contrato.
7. A Ré não pagou o aluguer que se venceu em 30 de Março de 2001 nem nenhum dos subsequentes.
8. Por força do mencionado contrato, a 1ª Ré ficou ainda obrigada a custear, relativamente ao prazo de duração do aluguer, um seguro, cujo beneficiário seria a Autora, que abrangesse as eventualidades de perda ou deterioração, casuais ou não, do veículo, bem como um seguro de montante ilimitado que abrangesse a responsabilidade civil emergente dos danos provocados pela sua utilização, tendo sido convencionado que a 1ª Ré pagaria o prémio do referido seguro.
9. Porém, a Ré não liquidou a mensalidade vencida em 30 de Março de 2001 nem nenhuma das subsequentes.
10. A 1ª Ré procedeu à entrega do veículo locado à Autora em Agosto de 2001.
11. A Autora enviou à 1ª Ré a carta junta a fls. 20 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual, entre outras coisas, refere que “tendo o contrato (...) sido resolvido de comum acordo em 01 de Dezembro de 2001 (...)”.
12. Após a restituição da viatura à Autora, esta vendeu a mesma pelo valor de € 3.700,00.
13. Com a recuperação da viatura, a Autora teve despesas no valor de € 409,50.
14. Por outro lado, e apesar da formalização da entrega da viatura, teve a Autora que proceder a suas expensas ao reboque da viatura, com o que despendeu a quantia de € 70,03.
15. Pagou ainda a Autora a quantia de € 146,25, relativa a despesas de leilão.

III.
Entendeu-se na sentença recorrida que a resolução do contrato celebrado entre as partes só por via judicial podia ser feita, atenta a natureza imperativa da norma do art. 1047º do CC e a sua aplicação ao caso em apreço.
E daí, escreveu-se que “não se pode considerar anteriormente resolvido, de forma válida, o contrato de aluguer em causa, nem se podendo, igualmente, fazê-lo nesta acção, uma vez que tal pedido não foi expressamente formulado – artigo 661º do Código de Processo Civil”.

Quanto ao pedido de resolução, cabe notar que a A. expressamente o formulou (vd. al. a) do petitório), pese embora apenas devesse ter pedido - quando muito e coerentemente -, a declaração judicial de que o contrato havia sido validamente resolvido.
Mas será que um contrato como o ora em apreço – contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, vulgarmente designado aluguer de longa duração (ALD) – só judicialmente pode ser resolvido?
Estamos perante um contrato de feição especial, a que são aplicáveis, para além das disposições do DL nº 354/86, de 23.10, com a alteração introduzida pelo DL nº 44/92, de 31.3, as normas gerais dos contratos de locação, as disposições gerais dos contratos e as cláusulas estabelecidas pelos contraentes que não estejam em contradição com aquelas, quando de natureza imperativa.

De acordo com o disposto no nº 4 do art. 17º do citado DL nº 354/86, “é lícito à empresa de aluguer sem condutor (...) rescindir o contrato nos termos da lei, com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais”.
A jurisprudência dos tribunais superiores - segundo julgamos quase unanimemente - vem decidindo que aquela referência aos “termos da lei” não se reporta ao art. 1047º do CC, mas antes aos arts. 432º e segs. do mesmo Código, maxime ao art. 436º.
Como contrato especial que é, não pode ser regulado nos apertados limites da locação vinculística, nomeadamente para efeitos de resolução.
Ou seja, tem sido entendimento, pelo menos largamente maioritário, que a resolução de contratos desta natureza pode ser feita extrajudicialmente, por simples comunicação ao locatário relapso, nos termos do citado art. 436º (vd. neste sentido, entre outros, Ac. do STJ, de 16-04-2002, www.dgsi.pt, proc. 02A532; os recentes Acs. da RP, de 8-07-2004, 14-06-2004 e 04-05-2004, in www.dgsi.pt, proc. 0433202, 0453206 e 0421774, sendo certo que o sumário do primeiro destes arestos está em desconformidade com o texto do acórdão; Acs. da RP, de 4.12.2001 e 21.11.2002, CJ, 2001, V, 204 e 2002, V, 180 (este último relatado pelo ora 2º adjunto); Acs. da RL, de 27.09.2001, CJ, 2001, IV, 112, e de 14.01.99 e 29.01.98, www.dgsi.pt, proc. 0064456 e 0051212).
Pelas razões apontadas nesses acórdãos, que nos dispensamos de repetir, julgamos ser esse o entendimento conforme à lei e que, por isso, devemos seguir.

Acontece, porém, que no caso sub judice não se mostra ter havido resolução do contrato por parte da A/locadora. Antes, e como bem se entendeu na sentença posta em crise, o contrato extinguiu-se em Agosto de 2001, por acordo das partes.
Com efeito, ficou provado que a Ré locatária entregou à Autora, em Agosto de 2001, o veículo locado.
A A. aceitou a entrega e não se mostra, nem tão-pouco se alegou, que o tenha aceite com qualquer reserva.
Ora, a entrega do veículo ao locador e a aceitação do mesmo sem reserva configura um negócio extintivo ou distrate (neste sentido, vd. Ac. do STJ, de 16.04.2002, acima citado, e Ac. da RL, 21.01.2001, CJ, 2001, I, 99).
É de notar, de resto, que não há qualquer prova de que a A. haja remetido à locatária “carta registada intimando ao cumprimento em prazo razoável”, a fim de tornar definitivo o incumprimento temporário, nem carta a notificá-la da resolução, como exigiam as als. a) e b) da cláusula 16ª do contrato. A única carta que se mostra ter sido enviada pela A. é a junta a fls. 20, datada de 14.03.2002, em que se reclamava o pagamento da quantia de € 5100,57 e se alegava que o contrato havia sido “resolvido de comum acordo em 01.12.201”.

Sendo a resolução a “destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato” (A. Varela, Das Obrigações em geral, II, 7ª ed., 275”, deverá concluir-se que não houve uma verdadeira resolução do contrato, mas antes a sua revogação, assente no acordo dos contraentes.
Ora, não tendo havido resolução do contrato, mas tendo-se este extinguido por mútuo acordo, carece de fundamento o direito da A. a qualquer indemnização decorrente de eventuais prejuízos sofridos com a “resolução do contrato”.
Ou seja, não têm qualquer apoio legal os pedidos formulados nas als. d) e e) da petição, desde logo porque tinham como pressuposto o exercício do direito de resolução contratual por parte da Autora – al. c) da cláusula 16ª do contrato (vd. Ac. do STJ, de 16.04.2002, supra citado).

IV.
A A. peticionou a condenação dos RR. no pagamento da quantia correspondente aos alugueres vencidos e não pagos e respectivos juros de mora, vencidos e vincendos.
Na sentença, foram os RR. condenados a pagar a quantia de € 869,16, correspondente aos alugueres em dívida desde Março de 2001 até Agosto, inclusive, desse mesmo ano, altura em que se considerou extinto o contrato. E não se arbitraram quaisquer juros, por se haver entendido que, in casu, a mora apenas dava lugar à indemnização estabelecida no artigo 1041º nº 1 do Código Civil (50% das renda em atraso) e não a outra, designadamente ao pagamento de juros de mora, previstos no artigo 806º do Código Civil, pelo que era nula, por violação do estatuído no artigo 1041º, nº 1 do Código Civil, de natureza imperativa, a cláusula 6ª das condições gerais do contrato aqui em análise, que estabelece o direito a juros em caso de mora no pagamento dos alugueres,

Quanto ao montante dos alugueres em dívida foi acertada a decisão recorrida, pois que, como vimos, o contrato deve ter-se por extinto, por acordo das partes, em Agosto de 2001.

Já não assim, quanto a nós, no que concerne à questão dos juros.
Com efeito, o nº 1 do art. 1041º não obsta a que sejam devidos juros de mora sobre as rendas ou alugueres em atraso no caso de, com este fundamento, ser resolvido o contrato. Tal preceito apenas obsta a que seja exigível indemnização específica (de 50% do montante em dívida) quando o contrato for resolvido com base na falta de pagamento (vd. Ac. da RL, de 3.3.1972, BMJ, 215º-280).
Ou seja, quando o contrato de locação é resolvido por falta de pagamento das rendas ou alugueres, o locador não poderá exigir a indemnização específica (indemnização a que tem direito no caso de não optar pela resolução), mas poderá exigir juros de mora. Não admitir esta possibilidade redundaria num manifesto, e injustificado, benefício para o locatário relapso.
No sentido de que são devidos juros de mora, em caso de resolução, pronunciou-se também o Ac. da RP, de 4.12.2001, CJ, 2001, V, 204, concretamente a pág. 208.
Conclui-se, assim, que, no caso presente, são devidos juros de mora a incidir sobre os alugueres em dívida.
Nos termos do art. 805º, nº 2, al. a) do CC, existe mora, independentemente de interpelação, quando a obrigação tiver prazo certo. É o que sucede, no caso em apreço, em relação às rendas vencidas desde Março até Agosto de 2001.

De acordo com o disposto no nº 2 do art. 806º do CC, “os juros devidos são os juros legais, salvo se (...) as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal”.
Ora, no caso sub judice, as partes acordaram (cláusula 6ª do contrato) que, em caso de não pagamento pontual de quaisquer quantias devidas por força do contrato, seriam devidos “juros de mora à taxa publicada pela Associação Portuguesa de Bancos acrescida de quatro pontos percentuais”.
É, por isso, essa a taxa aplicável.

Procedem, assim, mas apenas nesta medida, as conclusões da apelante.

V.
Nestes termos, julga-se parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, altera-se a sentença recorrida, condenando-se ainda os RR. (para além da condenação ali proferida) a pagarem à Autora juros de mora sobre cada um dos alugueres vencidos desde Março a Agosto de 2001, e desde as datas dos respectivos vencimentos, à taxa publicada pela Associação Portuguesa de Bancos, acrescida de quatro pontos percentuais, no mais se confirmando aquela sentença.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção do vencido.

Porto, 7 de Outubro de 2004
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo