Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0413148
Nº Convencional: JTRP00038381
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CRIME
VEÍCULO
Nº do Documento: RP200509280413148
Data do Acordão: 09/28/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: I - Age com negligência grosseira o condutor que circula a mais de 70 km/hora, numa localidade cujo limite máximo é de 50 km/hora, não afrouxa a velocidade ao aproximar-se de um cruzamento e não respeita o sinal vermelho.
II - Para efeitos de aplicação da pena acessória de inibição de conduzir, os crimes cometidos com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada, de forma relevante, a que se refere o art. 69º, n.º 1, al. b) do CP, são crimes que nada têm a ver com condução defeituosa, não abrangendo, por isso, os crimes de homicídio ou ofensas corporais involuntárias, emergentes de acidente de viação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No .. juízo do Tribunal Judicial da comarca de .........., em processo comum com intervenção do tribunal singular, procedeu-se ao julgamento do arguido B.........., tendo no final sido proferida sentença, onde se decidiu condená-lo na pena de 18 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 3 anos, pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artº 137º, nºs 1 e 2, do CP e, ao abrigo do artº 69º, nº 1, alínea b), do mesmo código, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 15 meses.

Dessa sentença interpôs recurso o arguido, sustentando, em síntese, na sua motivação:
-A vítima estava a atravessar a estrada fora da passadeira para peões que existia a cerca de 18,60 metros.
-Contribuiu assim para a produção do acidente.
-Além disso, o recorrente passou o semáforo no vermelho, mas escassos segundos depois de passar para essa cor, tendo imprimido aceleração ao veículo quando o semáforo ainda estava no amarelo.
-Destes dois factos resulta que a negligência não é grosseira, sendo, em consequência, o crime cometido o do nº 1 do artº 137º.
-E na moldura penal correspondente a este crime, a pena ajustada é a de 10 meses de prisão.
-Da desqualificação do crime resulta também que a pena acessória de proibição de conduzir deve ser reduzida para 6 meses.
-E deve ser suspensa a sua execução.

O recurso foi admitido.
Respondendo, o Mº Pº junto do tribunal recorrido defendeu a manutenção da sentença recorrida.
Nesta instância, a senhora procuradora-geral adjunta foi de parecer que o recurso merece parcialmente provimento.
Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.
Procedeu-se à realização da audiência.

Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

No dia 08/02/2003, cerca das 9,35 horas, o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-IV, na Estrada Nacional nº ..., no sentido ..........-.......... .
Ao km 9,200, em .........., área da comarca de .........., o arguido embateu com a frente do lado direito do ..-..-IV no peão C.........., no momento em que esta se encontrava a atravessar a referida artéria da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do ..-..-IV.
Em consequência do embate, resultaram para a C.......... as seguintes lesões:
-nas meninges: hemorragia sub-dural na base das meninges;
-no encéfalo: apagamento das circunvoluções cerebrais, devido a edema, muito acentuado;
-nas paredes do tórax: fractura do quarto costal, à esquerda, com infiltração sanguínea dos bordos e tecidos adjacentes; infiltração sanguínea, com ausência de fractura, em todos os arcos costais posteriores, bilateralmente;
-nas pleuras: sangue nas cavidades pleurais; aderências pleurais fibrosas, bilaterais;
-nos pulmões: focos de contusão intra-parenquimatosos;
-no abdómen:
-nas paredes: fractura com infiltração sanguínea dos bordos e tecidos adjacentes de ambos os ramos íleo-ísquio-púbicos;
-no peritoneu: sangue na cavidade peritoneal;
-no fígado: parênquima de consistência friável, com alguns focos de contusão intra-parenquimatosos;
-no baço: fracturas múltiplas; polpa difluente e cor vermelha;
-nos rins: infiltração sanguínea dos tecidos peri-renais; descapsulação fácil; anemiado;
-na raquis: fractura do raquis, entre a décima-primeira e a décima-segunda vértebras dorsais, com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos adjacentes;
-nos membros superiores: fractura do terço superior do úmero esquerdo;
-nos membros inferiores: fractura do terço médio dos ossos da perna esquerda.
Tais lesões traumáticas foram causa directa e necessária da morte da C.......... .
Na sequência do embate, o corpo da vítima foi projectado no ar, vindo a cair sobre o capot do veículo conduzido pelo arguido.
Quando o arguido imobilizou o veículo, o corpo da vítima tombou para o chão, ficando imobilizado na hemi-faixa esquerda da estrada, atento o sentido de marcha do arguido.
O arguido imprimia ao veículo por si conduzido uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 70 km/hora.
O local onde se deu o embate é uma recta de boa visibilidade, com 6,50 metros de largura.
No cruzamento de ..........-..........-.......... existem semáforos, a cerca de 18,30 metros do local do embate, os quais se encontravam a funcionar normalmente.
O arguido, antes de colher o peão, passou nos semáforos quando estes apresentavam acesa a luz vermelha, atento o seu sentido de marcha.
O acidente ficou a dever-se a exclusiva responsabilidade do arguido, por deficiente condução estradal, porquanto imprimia ao seu veículo uma velocidade inadequada para o local, superior a 50 km/hora, a permitida no local, velocidade essa que não lhe permitiu imobilizar o automóvel quando lhe surgiu um sinal regulador do tráfego existente a 18,30 do local do embate.
O arguido só conseguiu imobilizar o veículo por si conduzido 30,10 metros após embater no peão, distância essa que corresponde ao rasto de travagem marcado no pavimento pelo veículo do arguido.
Na data do acidente, estava bom tempo.
O arguido encontra-se desempregado há cerca de 2 anos, estando inscrito no Centro de Emprego de .......... . Anteriormente trabalhava numa empresa de .........., passando todos os dias pela EN nº ... .
É solteiro, vivendo com os pais.
Tem o 9º ano de escolaridade.
É tido como um condutor cuidadoso, e não lhe é conhecido qualquer outro acidente.
É uma pessoa com muitos amigos e que tem bom comportamento social.
É uma pessoa de condição económica remediada.
Não tem antecedentes criminais.

Fundamentação:

O recorrente defende que a negligência não foi grosseira, mas simples, sendo por isso o crime cometido o do nº 1 e não o do nº 2 do artº 137º, em resultado do que a pena principal e a acessória deveriam ser reduzidas para, respectivamente, 10 e 6 meses, com suspensão da execução também da última.
A negligência não seria grosseira, na medida em que, por um lado, a vítima estava a fazer a travessia da via fora da passadeira para peões que existia a 18,60 metros do local, contribuindo desse modo para a produção do acidente, e, por outro, quando o recorrente passou o semáforo, este acabava de ficar no vermelho.
Seria somente da consideração desses dois factos que teria de concluir-se, na óptica do recorrente, pela inexistência da negligência grosseira.
Porém, esses factos não foram dados como provados, e o recorrente não impugna a decisão proferida sobre matéria de facto nesses pontos, nem noutros. Na verdade, não dirige qualquer crítica à decisão de facto, e muito menos especifica quaisquer provas que impusessem a decisão de dar como provados tais factos, como teria de fazer, nos termos do artº 412º, nºs 3, alínea b), e 4, do CPP, para a Relação poder conhecer sobre o assunto.
Da argumentação do recorrente resulta que ele aceita que, entrando em linha de conta apenas com os factos considerados na sentença recorrida, como tem de ser, atento o acabado de referir, a negligência é grosseira.
E é. Na verdade, o arguido, dentro de uma localidade circulava a mais de 70 km/hora, quando o limite máximo previsto era de 50 km/hora, sendo que, além disso, a aproximação de um cruzamento lhe impunha que circulasse a velocidade moderada. Desrespeitou essas duas regras estradais e, acima de tudo, passou o cruzamento com o semáforo no vermelho, atitude altamente censurável e geradora de grande perigo para outros utentes das vias que ali se cruzam, nomeadamente para os peões que, como a vítima, pretendessem fazer a travessia da via em que circulava o recorrente, por confiarem que o sinal vermelho seria respeitado. Houve portanto inobservância das mais elementares cautelas a que deve obedecer a condução automóvel, e mesmo temeridade, estando-se por isso perante negligência acrescida, muito para lá da normal falta do cuidado devido.
Não pode, assim, haver dúvidas de que o crime cometido é, tal como se decidiu, na sentença recorrida, o do artº 137º, nºs 1 e 2, do CP – homicídio com negligência grosseira.
O recorrente só põe em causa a medida da pena de prisão em função da pretensão de que o crime é o do nº 1 do artº 137º.
Aceita por isso que, a manter-se a entendimento de que o crime é o do nº 2, essa pena foi correctamente determinada.
Está em discussão ainda a pena acessória de proibição de conduzir, que o recorrente pretende ver reduzida e suspensa.
Para a aplicação dessa pena, o tribunal recorrido encontrou fundamento no artº 69º, nº 1, alínea b), do CP (“É condenado na proibição de conduzir veículos com motor (…) quem for punido por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante”).
Mas, essa norma não se aplica ao caso.
Sobre isso, escreveu-se em acórdão desta Relação de 12/03/2003 proferido no processo nº 2743/02 da 1ª secção, sendo relator o mesmo deste:
“Quando a lei fala em crime cometido com utilização de veículo não pode estar a referir-se à mera condução de veículo, a crime resultante de condução defeituosa, porque se assim fosse não haveria espaço para aplicação da exigência cumulativa e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante. Na verdade, se o crime a que se refere a norma fosse o que resulta da mera má condução, em que casos se poderia dizer que a execução do crime foi facilitada pelo veículo de forma relevante? Não seria em todos?
A norma só pode, pois, referir-se a crimes que nada têm a ver com condução defeituosa, a crimes que o arguido decidiu cometer, isto é, dolosos, utilizando como instrumento o veículo, e facilitando este de forma relevante a execução do crime. Aliás, é sintomático o termo execução usado no texto legal, bem mais próprio dos crimes dolosos.
Não será outro o entendimento de Germano Marques da Silva quando escreve:
«Também a qualquer outro crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante (v.g., violação, ofensas corporais dolosas, dano, rapto, tráfico) desde que o uso do veículo tenha siso instrumento relevante para a prática do crime. A lei não exige que o uso do veículo tenha sido condição necessária da prática do crime, basta-se com que esse uso tenha sido instrumento relevante, i. e., tenha contribuído de modo importante para a sua prática. Assim, se sem o uso do veículo a prática do crime tivesse sido bastante mais difícil, já é aplicável a sanção acessória» (Crimes Rodoviários, página 31)”.
Mantém-se esse entendimento, já reafirmado em acórdãos proferidos nos processos nºs 712/03 e 2633/03 também da 1ª secção.
Não havendo fundamento para a aplicação ao arguido da referida pena acessória, e estando ela abrangida no recurso, deve a sentença recorrida nessa parte ser revogada.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, no provimento parcial do recurso, em
-manter a sentença recorrida na parte em que decidiu ser o crime cometido pelo recorrente o de homicídio por negligência grosseira do artº 137º, nºs 1 e 2, do CP e aplicou por esse crime a pena de 18 meses de prisão, com execução suspensa pelo período de 3 anos;
-revogar essa sentença na parte em que aplicou ao recorrente a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 15 meses.
O recorrente vai condenado a pagar as custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.

Porto, 28 de Setembro de 2005
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
Fernando Manuel Monterroso Gomes