Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1865/06.8TASTS.P1
Nº Convencional: JTRP00043206
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200911251865/06.8TASTS.P1
Data do Acordão: 11/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 602 - FLS 219.
Área Temática: .
Sumário: O limite de 7500 euros consagrado no n.º 1 do art. 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção que lhe foi dada pelo art. 113º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no art. 107º do RGIT.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº 1865/06.8TASTS.P1


Proc. nº 1865/06.8TASTS, do .º Juízo de Competência Criminal, do Tribunal Judicial de Santo Tirso


Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 1865/06.8TASTS, do .º Juízo de Competência Criminal, do Tribunal Judicial de Santo Tirso, em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, foi o arguido B………. condenado, por acórdão de 14/04/09, na pena 200 dias de multa, à taxa diária de 1 euro, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 107º, nº 1 e nº 2, 105º, nºs 1, 4 e 7, da Lei nº 15/01, de 15/06 e artigo 30º, nº 2, do Código Penal.

2. O arguido não se conformou com essa condenação e dela interpôs recurso, impetrando que se faça cessar a execução da pena aplicada.

2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

--1. Foi o arguido condenado em 200 dias de multa à razão de € 1,00 dia.
2. O Arguido, nos autos à margem referenciados, face Lei nº 64-A/2008 de 31 de Dezembro, veio requerer a extinção do procedimento criminal nos presentes autos, com fundamento em serem todas as prestações em causa de valor inferior a 7.500 Euros.
3. A decisão proferida não deve manter-se por não interpretar e aplicar a lei correctamente ao caso em apreço.
4. Na verdade, o legislador ao não ter introduzido uma expressão similar à utilizada no artigo 105º do RGIT, no artigo 107º deste regulamento, quis com isso significar que neste tipo legal não pretendeu deixar de punir as omissões de entrega inferiores a 7.500,00 Euros.
5. A letra da lei e seu espírito permitem tal conclusão.
6. Muitos aspectos normativos do artigo 105º do RGIT são aplicáveis ao artigo 107º por remissão.
7. Uma das remissões é justamente para a punição do artigo 105º nº 1.
8. O artigo 107º nº 1 remete para as penas aplicáveis ao nº 1 do artigo 105º do mesmo regulamento.
9. Não sendo nenhuma pena é aplicável quando a omissão de entrega é inferior a 7.500,00 Euros, conforme dispõem expressamente o artigo 105º nº1, ao manter-se esta remissão para a punição, tal significa que o limite mínimo de ilicitude é aplicável ao artigo 107º.
10. Sendo a pena uma reacção criminal a conduta ilícita, quando exceda 7.500,00 Euros, não faz sentido manter-se uma remissão para as penas aplicáveis ao nº 1 do artigo 105º, se não quiser, efectivamente, transmitir a vontade em aplicar ao limiar mínimo de ilicitude aos dois tipos legais.
11. A melhor interpretação é conforme atrás se refere, não obstante o legislador não ter feito constar expressamente o valor de 7.500,00 Euros no artigo 107º nº 1.
12. O legislador ao alterar o nº 1 do artigo 105º revogou o nº 6 que estabelecia exclusão de responsabilidade criminal no caso de prestações inferiores a 2.000,00 Euros, sendo efectuada uma notificação conferindo ao arguido a possibilidade de fazer cessar o procedimento criminal, e independentemente de este ter feito as declarações à administração – ao contrario da condição de exclusão da punibilidade prevista no artigo 105º nº 4 alínea b) que pressupõe tal declaração.
13. Com a alteração ao nº 1 do artigo 105º, o nº 6 deixou de ter qualquer sentido e a “notificação” não tem razão de ser quando só existe responsabilidade criminal acima dos 7.500,00 Euros.
14. A revogação do nº 6 teve assim toda a lógica e o legislador quis esse mesmo efeito no artigo 107º pois o nº 6 também era aplicável ao artigo 107º por remissão.
15. Seria absurdo considerar-se a manutenção do nº 6 do artigo 107º do RGIT, quando a responsabilidade apenas existia em omissões de entrega superiores a 7.500,00 Euros.
16. As considerações atrás referidas quanto à despenalização do artigo 105º são aplicáveis ao artigo 107º, uma vez que o legislador passou a entender que os crimes de abuso fiscal dos artigos 105º e 107º apenas são puníveis para as omissões de entrega superiores.
17. Mesmo que assim não se entenda estaríamos com uma situação duvidosa de interpretação da lei e teríamos de fazer a interpretação no sentido mais favorável ao arguido.
18. Em consequência, as prestações relativas à Segurança Social, objecto da sentença condenatória proferida, todas de valor inferior a 7.500 Euros, estão abrangidas pela alteração introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, pelo que deve cessar a execução da pena aplicada nos presentes autos.

3. Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo, pugnando pela improcedência do recurso interposto.

São, em síntese, os seguintes os seus fundamentos:

Ainda que na descrição dos seus elementos típicos se verifique um certo paralelismo (v.g. quanto à não entrega, total ou parcial, das prestações/contribuições deduzidas), os tipos legais são autónomos entre si, sendo que o crime de abuso de confiança contra a segurança social se apresenta como um crime específico próprio, uma vez que a lei caracteriza o dever violado através dos elementos típicos do agente, exigindo que ela seja uma entidade empregadora.
Por outro lado, são igualmente diferenciados os bens jurídicos protegidos por uma e outra norma. Assim, enquanto no crime de abuso de confiança fiscal (art. 105.º) se tutela o normal funcionamento do sistema fiscal e os interesses que este visa satisfazer, ou seja, não apenas a arrecadação de receitas, mas também a prossecução de objectivos de justiça distributiva, tendo em conta a necessidade de financiamento das actividades sociais do Estado – arts. 103.º e 104.º da CRP), no caso do abuso de confiança contra a segurança social (art. 107.º) está em causa a protecção dos deveres de colaboração, transparência e lealdade das entidades empregadoras para com a administração da segurança social (relação de confiança).
E sendo crimes autónomos, parece-nos que a alteração legislativa introduzida pelo art. 113.º da Lei que aprova o OE para 2009, e segundo a qual apenas passa a constituir crime de abuso de confiança fiscal a não entrega, total ou parcial, da prestação tributária de valor superior a € 7500, tem o seu campo de aplicação restrito ao mencionado crime, nada admitindo a extensão de tal limite mínimo ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Tal argumento colhe-se ainda da circunstância de que, enquanto a não entrega das prestações tributárias iguais ou inferiores a € 7500 passa a integrar a contra-ordenação prevista pelo art. 114.º do RGIT, no caso da não entrega das quotizações deduzidas à Segurança Social, tal conduta deixaria, por falta de previsão legal correspondente, de ser objecto de qualquer sanção, consequência que não terá sido a pretendida pelo legislador.
A questão mais perturbadora que se coloca é a de se saber se, tendo sido revogado o n.º 6 do art. 105.º e não tendo sido, concomitantemente, actualizado o disposto no art. 107.º, nº 2, ambos do RGIT, que continua a manter a remissão para aquele n.º 6, se se mantém, ainda assim, quanto ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, a causa de extinção da responsabilidade criminal que aquela alínea comportava.
Todavia, tendo-se verificado a revogação expressa daquela norma, a única conclusão que se entende ser possível extrair é a de que o pagamento da prestação inferior a € 2.000, nos termos então fixados pelo art. 105.º, n.º 6, por remissão do art. 107.º, nº 2 do RGIT, não pode agora ser convocada como causa de extinção da responsabilidade criminal quanto ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, podendo, no entanto, os agentes do ilícito prevalecer-se da prerrogativa do n.º 4 do art. 105.º do RGIT.

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido também da improcedência do recurso, louvando-se nos fundamentos da decisão recorrida e da resposta do Ministério Público ao recurso.

5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Ed. Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Ed. Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/95, DR I-A Série de 28/12/95.

1.1 No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação do recurso, a questão que se suscita é a da aplicação, no âmbito de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, do limite de 7500 euros estabelecido no nº 1, do artigo 105º, do RGIT, na redacção dada pela Lei nº 64-A/2009, de 31/12.
2. A Decisão Recorrida

O acórdão recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

I - Relatório
Para julgamento por tribunal singular, sob a forma de processo comum, o MP deduziu acusação contra:
B………., casado, nascido a 14.08.1962, filho de C………. e de D………., residente na Rua ………., nº .., .º Esq., Santo Tirso
imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos art.’s 107º, nºs 1 e 2, e 105º, nºs 1, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 15.06, com as sucessivas alterações, e ainda pelo art. 30º, nº 2, do Cód. Penal.
O Instituto de Segurança Social constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização, com base nos factos descritos na acusação do respectivo processo, requerendo a condenação do arguido a pagar-lhe a quantia de 24.624,54 €, acrescida dos juros vincendos, calculados à taxa legal em vigor e de acordo com o disposto no art. 16º do Dec. Lei nº 411/91, de 17 de Outubro, e do art. 3º do Dec. Lei nº 73/99, até efectivo e integral pagamento.
O arguido contestou, oferecendo o merecimento dos autos, e apresentou rol de testemunhas.
Contra o mesmo arguido foi ainda deduzida acusação, para julgamento por tribunal singular, sob a forma de processo comum, no processo nº …/06.9IDPRT, aí se lhe imputando a prática de um crime de abuso de confiança fiscal previsto e punível pelo art. 105º, nº 1, do RGIT.
Já em fase de julgamento, foi ordenada a apensação de ambos os processos, prosseguindo os autos para julgamento por tribunal colectivo.
II – As instâncias mantêm a validade que lhes foi reconhecida nos respectivos despacho de recebimento da acusação, impondo-se, todavia, decidir, antes de proferir decisão de mérito, uma questão prévia, o que ora se fará.
Da despenalização
O arguido veio requerer, face à Lei nº 68-A/2008, de 31 de Dezembro, a extinção do procedimento criminal uma vez que todas as prestações são inferiores a 7.500 €.
O Ministério Público opôs-se, argumentando que o legislador com a actual redacção do art. 105º, nº 1, do RGIT, apenas veio restringir a punibilidade dos crimes de abuso de confiança fiscal aos casos em que a prestação tributária não entregue é de valor superior a 7.500 € e que, no caso, no que respeita aos crimes fiscais, vindo o arguido acusado de um único crime, a soma das diversas parcelas totaliza um valor superior àquele.
Cumpre decidir.
Em primeiro lugar, analisar-se-á a questão da invocada despenalização no que tange ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Com a entrada em vigor (em 01.01.09) da Lei nº 68-A/2008, de 31 de Dezembro, o art. 105º, nº 1, do RGIT passou a ter a seguinte redacção: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária superior a 7.500 €, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
A questão supra aludida suscita-se porquanto o art. 107º, nº 1, do RGIT – que configura o ilícito típico de abuso de confiança contra a segurança social – remete para as penas previstas no 105º, nºs 1 e 5, do mesmo diploma legal.
O que importa saber é se, para além disso, aquele preceito também remete para os elementos do tipo ou condições de procedibilidade do 105º, nºs 1 e 5, ou se, pelo contrário, define integralmente o tipo de abuso de confiança contra a segurança social.
Na jurisprudência, duas posições antagónicas foram já defendidas em acórdãos recentes.
Assim, para uns o tipo legal de crime de abuso de confiança contra a segurança social “encontra no nº 1 do art. 107º do RGIT a completa descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que depende em concreto a punição que torna objectivamente determinável o comportamento proibido e objectivamente dirigível a conduta do cidadão, sem necessidade de recurso ao art. 105º do RGIT para tal efeito”, pelo que, circunscrevendo-se a alteração ao art. 105º, nºs 1 e 5, do RGIT introduzida pelo art. 113º da Lei 64-A/2008, de 31.12, a introduzir um novo elemento objectivo ao tipo – limitando-o à não entrega de prestações tributárias “de valor superior a € 7500” –, “essa alteração não abrange o crime de abuso de confiança contra a segurança social, que mantém a sua tipificação autónoma e integral na previsão do art. 107º do RGIT” (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 02.03.09).
Já segundo o Acórdão da Relação de Lisboa de 25.02.09 “a nova redacção dada ao artº 105º, nº 1, do R.G.I.T. pelo artº 113º da L. 64-A/08 de 31/12 (que aprovou o O.G.E. para 2009), que estabeleceu o limite de € 7.500.00 para o crime de abuso de confiança fiscal, é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, por força dos nºs 1 e 2 do art. 107º desse mesmo R.G.I.T.”.
Impõe-se tomar posição num ou noutro sentido.
Recordemos, antes de mais, os preceitos relevantes para a decisão a proferir, para em seguida ponderar os argumentos aduzidos em favor de uma e outra interpretação.
Na sua primitiva redacção, dispunha o art. 105º, nº 1, do RGIT que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, a prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
Através da alteração ora em causa, introduziu-se um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, de forma que a redacção do preceito passou a exigir que ela fosse de “valor superior a € 7.500”. Por outro lado, manteve-se inalterada a redacção do nº 1 do art. 107º, que dispõe do seguinte modo: “As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do art. 105º.”
Perante aquela alteração, defende o último dos citados Acórdãos que o legislador sempre pretendeu que “o regime de punição fosse idêntico em ambos os crimes - abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social - sendo apenas diferentes, as entidades devedoras das prestações e os fundamentos das dívidas”, aduzindo em favor desta tese que no próprio preâmbulo do D.L. 140/95 de 14/6, que passou a criminalizar os comportamentos referentes à Segurança Social, se dá conta daquela identidade de regimes punitivos, pois aí se refere que “com este objectivo, o presente diploma alarga o campo de aplicação do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA) às infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social pelos respectivos contribuintes…”.
“Não se compreenderia”, pois, conclui o referido Acórdão, que “prevendo agora o legislador uma menor severidade quando estão em causa quantias não superiores a € 7.500, se aplicasse tal alteração apenas aos crimes de abuso de confiança fiscal e não também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, não se fazendo a identidade de punições que sempre o legislador entendeu fazer”, designadamente quando, por virtude da remissão do nº 1 do artº 107º, manda ter em conta o montante de € 50.000 previsto no nº 5 do art. 105º para se qualificar o crime, punindo-o mais severamente.
Em favor da tese contrária, sublinha, porém, o citado Acórdão da Relação de Coimbra, no que é seguido pelo Acórdão da Relação do Porto de 25.03.09, como elementos de interpretação que reforçam o entendimento pelos mesmos preconizado, os seguintes:
“Na sistematização do RGIT existe uma parte (título II, capítulo II) das “contra-ordenações fiscais” (art. 113º e segs.) onde encaixa o abuso de confiança fiscal de menos de 7.500 € (art. 114º nº 1).
Porém, o RGIT deixa de fora a previsão das contra-ordenações contra a Segurança Social.
É (ainda) o Decreto-Lei 64/89 de 25.2 que estabelece o regime sancionatório da Segurança Social e define as contra-ordenações nesta matéria (sem prejuízo da existência de outros diplomas que prevêem contra-ordenações contra a Segurança Social em matérias que não estão relacionadas com a entrega das contribuições devidas)
Nesse diploma não existe qualquer contra-ordenação por falta de entrega das contribuições à Segurança Social.
Consequentemente, a entender-se que o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social foi despenalizado, cria-se um espaço de absoluta impunidade para comportamentos bem mais censuráveis do que aqueles que são tipificados como contra-ordenações contra a Segurança Social.
Por outro lado, o art. 113º da Lei 64-A/2008, de 31.12 (Lei do Orçamento de 2009) integra-se na sua secção II –“Procedimento e Processo Tributário” do Capítulo XI –“Procedimento, processo tributário e outras disposições”, enquanto as alterações legislativas que o OE contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu Capítulo V –“Segurança Social” (art.s 55º e seguintes) e, nesta parte é que poderia – deveria – caber qualquer alteração aos crimes contra a segurança social.”
Para além destes elementos relativos à sistematização penal e contra-ordenacional desta área, um outro argumento, ao qual este tribunal é particularmente sensível, é ainda aduzido, qual seja, o de que é esta “a melhor hermenêutica face às distintas proveniências e destinatários dos montantes em causa, e valores tutelados em cada um dos crimes, pois, como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 15/10/2003, “enquanto nos crimes fiscais os deveres impostos aos contribuintes convergem para a revelação da real capacidade contributiva de cada um e de todos os cidadãos obrigados a pagar impostos, tendo em vista a realização da igualdade e justiças tributárias, reconduzindo-se assim a um mais amplo bem jurídico tutelado, qual seja "a confiança da administração fiscal na verdadeira capacidade contributiva do contribuinte", já no crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, não é o Estado/Administração Fiscal o destinatário desses montantes, mas sim o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, com personalidade jurídica e património próprio, dotado de autonomia administrativa e financeira para a gestão dos interesses de segurança social que lhe estão cometidos defender e prosseguir, e cujo orçamento próprio assenta fundamental e prioritariamente nas receitas provenientes das prestações sociais resultantes dos descontos efectuados, sendo pois esta efectiva arrecadação o bem jurídico tutelado”.
Por outro lado, acrescenta o Acórdão da Relação do Porto de 25.03.09, não se pode invocar – como o faz o supra citado Acórdão da Relação de Lisboa – a remissão que também é feita para o nº 5 do art. 105º, “porque esta norma se limita a prever uma circunstância agravante qualificativa (e não um elemento decisor do próprio tipo), que interessa unicamente à delimitação entre o crime simples e o crime agravado, influindo em exclusivo na moldura penal aplicável, que passa para prisão de um a cinco anos, quanto às pessoas singulares, e de multa de 240 a 1200 dias, quanto às pessoas colectivas, quando a não entrega for superior a 50.000 €”.
Aderindo a esta argumentação e ao resultado a que a mesma conduz, na medida em que, como impõe o art. 9º do Código Civil, é de presumir que, apesar da deficiente técnica legislativa patenteada nas alterações sucessivamente introduzidas ao RGIT, o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, conclui-se, como nos citados Acórdãos da Relação de Coimbra e do Porto, que o art. 113º da referida lei não procedeu a qualquer despenalização dos crimes de abuso de confiança contra a segurança social.
Passando, agora, à outra questão suscitada pelo Ex.mo Sr. Procurador, qual seja, a de saber se, encontrando-se o arguido acusado de um único crime de abuso de confiança fiscal e totalizando as diversas prestações tributárias não entregues à administração tributária valor superior a 7.500 €, é a este valor que se deverá atender, não obstante cada uma das parcelas em causa ser inferior a 7.500 €.
Quanto a esta outra questão, entende-se que a decisão a tomar passa por questionar a própria qualificação jurídica efectuada pela acusação, ao considerar que se trata de um único crime e não de vários, tendo em conta a construção típica do crime de abuso de confiança fiscal como crime omissivo.
Na verdade, como se defende no Acórdão do STJ de 04.12.08, acessível in www.dgsi.pt, a integração das infracções em causa, há-de “ser determinada pela delimitação e verificação dos comportamentos omissivos que, por consistirem, negativamente, na falta de cumprimento de um dever prefixado, dependem necessariamente do modo específico de revelação do respectivo dever. Havendo tempos e prazos fixados para a prática do comportamento devido, e cuja omissão constitui a tipicidade da infracção, a referência reverterá sempre ao regime do cumprimento da obrigação de entrega”. E assim sendo, “a omissão de entrega, uma vez efectuadas as operações contabilísticas e financeiras e apurados os montantes, concretiza-se periodicamente, com independência de execução e autonomia típica; cada omissão não está dependente de (eventuais) omissões antecedentes, nem condiciona as (possíveis) omissões subsequentes. Por isso, a natureza específica da não entrega pressupõe a autonomia, que decorre da necessária renovação periódica dos procedimentos que permitem determinar o montante a entregar, não existindo omissão sem conteúdo da acção devida, e o objecto da acção devida só existe se e quando determinado e materializado pelo período a que respeitem as deduções.”
Deste modo, prossegue o citado acórdão, “vistas as qualificações possíveis na relação entre a especificidade típica e as categorias dogmáticas relativas à unidade e pluralidade de infracções, os crimes de abuso de confiança contra a segurança social (ou, no que ao caso importa, contra o Fisco) apenas poderão, no rigor das coisas, ser construídos em pluralidade relativamente a cada procedimento para determinação do conteúdo da obrigação de entrega e da consequente omissão”.
Concluindo: “Os cortes materiais resultantes da pluralidade de procedimentos (materiais e jurídicos; contabilísticos e financeiros) necessários para determinar o conteúdo da (de cada) obrigação de entrega, separados no tempo de acordo com a periodicidade decorrente da lei, remetem para a diversidade (pluralidade) de comportamentos típicos, com a inerente e pressuposta relação da vontade com a realização de cada procedimento para a determinação dos montantes a entregar e da voluntária e sequente omissão (a não entrega)”.
No caso em apreço, é, pois, de considerar que, dada a natureza do ilícito-típico em questão e independentemente da prova produzida, os factos descritos na acusação do processo nº 271/06.9IDPRT integram tantos crimes quantas as omissões de entrega em causa e não apenas um único crime, sendo certo que, em cada um deles, a não entrega imputada ao arguido é inferior a 7.500 €.
Conjugando o que se acabou de expor com a alteração introduzida ao art. 105º, nº 1, do RGIT e o disposto no art. 2º, nº 1, do Cód. Penal, forçoso é concluir que todas as condutas em apreço que se integram no crime de abuso de confiança fiscal se mostram despenalizadas, devendo, por isso, o procedimento criminal com as mesmas relacionado ser declarado extinto.
Acresce que, para parte da jurisprudência, independentemente da solução dada à questão da pluralidade ou unidade de crimes, relevante será, face ao teor literal da norma em causa, o valor de cada uma das prestações devidas e não entregues. Assim sendo, no caso em apreço, por essa via, senão pela supra delineada, alcançar-se-á o mesmo resultado
Decisão:
Face ao exposto, indeferindo-se parcialmente ao requerido, decide-se declarar:
a) não despenalizadas as condutas do arguido relativas ao crime de abuso de confiança contra a segurança social que lhe são imputadas nos autos principais;
b) despenalizadas as condutas do arguido relativas aos crimes de abuso de confiança fiscal que lhe são imputadas no processo nº .../06.9IDPRT, declarando-se extinto, nessa parte, o procedimento criminal.
III - Fundamentação de facto
Factos provados:
O arguido foi gerente e único membro do órgão estatutário da sociedade comercial E………., L.da, com o NIF ………, que se dedicou, desde a sua constituição, em 1994, até 18.10.2005, data em que foi decretada a sua falência, à produção, distribuição, importação e exportação de vestuário e têxteis.
No âmbito da sua actividade e na qualidade de entidade empregadora, a sociedade gerida pelo arguido procedeu ao desconto/retenção sobre os salários efectivamente pagos aos seus trabalhadores e aos membros dos seus órgãos estatutários, da percentagem de 11% e 10%, respectivamente, relativa a contribuições para a Segurança Social, pelo menos nos períodos referentes aos meses de Agosto a Dezembro do ano de 2002, de Janeiro a Dezembro de 2003, de Fevereiro a Dezembro de 2004 e de Janeiro a Julho de 2005 (inclusive).
Nos aludidos períodos, procedeu o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade em causa, ao pagamento de salários e à retenção das contribuições devidas à Segurança Social, da forma e nos montantes a seguir melhor descritos:

Porém, não procedeu o arguido à entrega na Segurança Social das quantias supra indicadas e retidas aos trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, no valor global de 15.785,50 €, no prazo legal, isto é, até ao 15º dia do mês seguinte àquele a que respeitavam, conforme estava obrigado, nem no período dos 90 dias ulteriores.
O arguido não devolveu, até ao momento, as quantias mencionadas e devidas à Segurança Social – tendo-as feito da sociedade e utilizado as mesmas em proveito desta – não tendo igualmente procedido ao respectivo pagamento no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito da Segurança Social, da qual teve conhecimento, pese embora se tenha recusado a assinar.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente;
Ao não proceder à entrega das quantias deduzidas a título de contribuição à Segurança Social, agiu com a intenção de, em representação da sociedade, se apropriar das mesmas e de as usar como se fossem daquela, bem sabendo que era sua obrigação entregá-las àquela instituição, no prazo acima referido;
O arguido viu a sua actuação facilitada pelo facto de a sociedade que geria não ter sido sujeita, ao longo do período de tempo acima mencionado, a fiscalização por parte da Segurança Social;
Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
O arguido não tem antecedentes criminais;
O arguido encontra-se desempregado há cerca de três anos, não auferindo qualquer subsídio, tendo sido declarado insolvente;
O arguido vive em casa própria;
Tem dois filhos de 4 e 11 anos de idade;
A sua esposa possui negócios próprios, sendo sócia de várias empresas;
O agregado familiar subsiste com os rendimentos da esposa;
O arguido encontra-se em depressão desde a falência da sociedade “E……….”, sofrendo, por causa disso, de limitações em termos de deslocação física.
- Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir, não se tendo provado, designadamente, que:
O arguido tivesse feito suas as quantias não entregues e as tivesse utilizado em proveito próprio.
Motivação:
A convicção do Tribunal formou-se com recurso à análise crítica de toda a prova produzida, nela se incluindo toda a documentação junta aos autos, da mesma se destacando:
- Certidão do Registo Comercial de fls. 32 a 34 e fls. 135 a 137;
- Extracto de conta corrente da empresa de fls. 41 a 45;
- Declarações de remunerações mensais entregues na Segurança Social, segundo os dados registados no respectivo Sistema juntos a fls. 46 a 51;
- Mapa dos valores deduzidos e não entregues – fls. 52 a 56;
- Documentos de fls. 86 e 90;
- Depoimentos de:
● F………., técnica superior da Segurança Social, que confirmou o teor de fls. 52 a 56, declarando que, para elaboração do mapa em causa, procedeu à análise das declarações de remunerações elaboradas pela sociedade gerida pelo arguido;
● G………., empregada de balcão da sociedade “E……….” desde Janeiro de 2003 a Outubro de 2005, H………., brunidora da aludida empresa desde 2003 a Outubro de 2005, I………., que trabalhou durante dois anos na aludida sociedade, tendo deixado de lá trabalhar há cerca de 5 anos, que, nomeadamente, confirmaram que o arguido era o “patrão” e que o pagamento dos salários lhes foi sendo feito com regularidade no decurso de todo o período de tempo a que aludem os autos;
- Quanto aos antecedentes criminais, o certificado de registo criminal do arguido junto a fls. 260;
- Quanto à situação pessoal do arguido, as suas próprias declarações.
IV - Fundamentação jurídica:
Ao arguido é imputada a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos art.’s 107º, nºs 1 e 2, e 105º, nºs 1, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 15.06, com as sucessivas alterações, e ainda pelo art. 30º, nº 2, do Cód. Penal.
De acordo com a Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, são punidas pela prática do crime abuso de confiança contra a segurança social as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social (art. 107º, nº 1, do citado diploma legal).
Nos termos das sucessivas leis vigentes ao tempo dos factos (ocorridos entre Agosto de 2002 e Julho de 2005), as entidades empregadoras são «responsáveis pelo pagamento» das «quotizações correspondentes aos trabalhadores ao seu serviço, devendo descontar, nas remunerações a estes pagas, o valor daquelas quotizações» – arts. 24.º, n.º 3, da Lei 24/84, de 14-08, e 62.º da Lei 27/2000, de 08-08, e, posteriormente, art. 47.º, n.º 1, da Lei 32/2002, de 20-12 –, o mesmo determinando o art. 59.º, n.º 1, da Lei 4/2007, de 16-01, que utiliza a expressão técnica de «retenção na fonte» e, nos termos do art. 10.º, n.º 2, do DL 199/99, de 08-06, «as taxas contributivas devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito».
O crime de abuso de confiança em relação à segurança social consuma-se, pois, quando a entidade empregadora não entrega, total ou parcialmente, a contribuição, deduzida no salário do trabalhador ou de membro de órgão social, à Segurança Social.
O crime em apreço tem, em face do art. 107º, como sujeito activo, necessariamente, o devedor de rendimentos de trabalho, ou seja, o substituto do contribuinte originário. Tal não afasta, porém, a responsabilidade criminal dos gerentes, sócios, ou de qualquer outro titular de um órgão de uma pessoa colectiva, bem como de quem actua em representação legal ou voluntária de outrem, já que aqueles, actuando em nome destes últimos, apesar de não terem as qualidades exigidas pelo tipo, são punidos pelo citado artigo em conjugação com o disposto no art. 12º do Cód. Penal, cujo teor é reafirmado pelo nº 1 do art. 6º do RGIT.
E tal punição verificar-se-á ainda que o tipo legal de crime exija que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado - alínea b) do nº 1 do citado art. 6º.
Com já se sublinhou antes, a construção do tipo legal do crime de abuso de confiança, quer fiscal, quer contra a Segurança Social, define uma conduta que consiste na simples não entrega àquela entidade de uma parcela que o agente deduziu nos termos da lei como substituto do verdadeiro devedor, e que estava, também nos termos da lei, obrigado a entregar em determinado prazo – o prazo de entrega que a lei fixa para cada tipo e espécie de prestação deduzida –, traduzindo-se, pois, a conduta prevista nos aludidos tipos, numa omissão pura, esgotando-se no não cumprimento de um dever, previsto na lei, de entrega das prestações deduzidas.
Sendo uma infracção omissiva pura, consuma-se com a não entrega, dolosa, nos termos e no prazo da entrega fixado para cada prestação – art. 5.°, n.º 2, do RGIT.
Os factos descritos no art. 105.°, n.ºs 1 a 3, e 107º, nº 1, do mesmo diploma, só são, porém, puníveis – dispõe o n.º 4 desse preceito – se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (al. a)), ou «se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a comunicação para o efeito» (al. b)), condição prevista ex novo na redacção do n.º 4 do artigo 105.° do RGIT introduzida pela Lei de Orçamento para 2007.
Aplicando estes considerandos ao caso sub judice, temos que os enunciados elementos do tipo objectivo de ilícito em causa se encontram preenchidos pelas condutas do arguido B………., o qual, na qualidade de legal representante da E………., L.da, efectuou variadas vezes as deduções referentes às contribuições devidas pelos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários da E………., Lda à Segurança Social, não tendo procedido à respectiva entrega no prazo legalmente previsto para o efeito.
No que respeita aos elementos subjectivos, temos que o arguido B………. teve uma actuação, livre e consciente, e que, ao não proceder à entrega das quantias deduzidas a título de contribuição à Segurança Social, agiu com a intenção de, em representação da sociedade, se apropriar das mesmas e de as usar como se fossem daquela, bem sabendo que era sua obrigação entregá-las àquela instituição, no prazo acima referido, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, tanto bastando para se considerar preenchido o tipo subjectivo do ilícito em causa.
O arguido, actuando na qualidade de gerente da aludida empresa individual, com estes seus comportamentos violou, pois, por variadas vezes, a relação de confiança estabelecida com a Segurança Social pela empresa arguida. Com efeito, os montantes por aquele retidos, na citada qualidade, foram-lhe, também nessa qualidade, legalmente confiados para que os devolvesse posteriormente à aludida entidade, o que não fez, por sucessivas ocasiões, no interesse da empresa que representava.
Importa agora ponderar a questão da integração de todas as referidas condutas num único crime continuado.
De harmonia com o preceituado no art. 30º, nº 2, do Código Penal, são pressupostos do crime continuado: a homogeneidade da forma de execução do crime, a lesão do mesmo bem jurídico, a unidade do dolo e a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
Provando-se a existência de um circunstancialismo exógeno condicionante e desculpante da conduta do agente que realizou várias vezes o mesmo tipo de crime, pode afirmar-se a verificação da continuação criminosa.
Porém, não basta mostrar que o elemento unificador da conduta criminosa não implica maior gravidade penal das diversas actividades, é preciso também demonstrar que esse elemento importa uma reprobabilidade menor que justifique o tratamento das diferentes actividades como se fossem uma só (Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, 1983, pág. 171).
Tem ainda de se conjugar todo o circunstancialismo homogéneo, avaliado à luz de um critério espaço-temporal, com o circunstancialismo externo ou exógeno que diminua a culpa do agente. Fala a doutrina em linha psicológica continuada para dar solidez à construção do crime continuado.
Necessário é que o lapso de tempo verificado entre cada uma das condutas em causa não seja de ordem a quebrar aquela linha psicológica, que exista uma certa conexão temporal que permita presumir uma menor reflexão sobre a acção criminosa anterior, facilitadora do repetido sucumbir (cfr. Ac. do S.T.J. de 17.02.1983, in BMJ, nº 324, pág. 447).
“In casu”, esta conexão temporal indubitavelmente existe, podendo ainda afirmar-se que a actividade do arguido se desenrolou homogénea e reiteradamente, violando sempre o mesmo bem jurídico, que a determinação criminosa se foi renovando no tempo, sempre dentro do mesmo quadro circunstancial, e que a acção foi sempre praticada da mesma maneira e com os mesmos pressupostos e fins (Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 210).
A relação de confiança estabelecida foi violada aquando da não realização da primeira entrega no prazo legal, surgindo as restantes omissões na sequência do sucesso daquela, servindo, por outro lado, a ausência de qualquer fiscalização por parte da Segurança Social – que, face às declarações apresentadas pelo próprio arguido, estava em condições de, eficazmente, travar a sequência de omissões em causa – , de factor facilitador da repetição da conduta criminosa e, portanto, de elemento externo atenuador da censurabilidade das condutas em causa.
Mostram-se, pois, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime continuado de abuso de confiança fiscal que lhe era imputado pela acusação.
Como estatui o art. 79º do C. Penal, o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação. Pela análise dos vários actos singulares, chegamos à conclusão que todos são punidos dentro da moldura penal prevista no art. 105º, nº 1, razão pela qual deverá a conduta do arguido ser exclusivamente integrada no tipo previsto no ora citado preceito.
Acresce que o arguido não devolveu, até ao momento, as quantias mencionadas e devidas à Segurança Social, não tendo procedido ao respectivo pagamento no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito da Segurança Social, da qual teve conhecimento, pese embora se tenha recusado a assinar, mostrando-se, por isso, preenchida a condição de punibilidade prevista no n.º 4 do artigo 105.° do RGIT, na redacção introduzida pela Lei de Orçamento para 2007.
- Determinação da medida da pena.
Enquadrado da forma descrita o comportamento do arguido, importa, agora, escolher e graduar, dentro da medida abstracta da pena que ao crime cabe, a pena concreta a aplicar-lhe.
O crime em causa é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias – cfr. art. 105º, nº 1, do Dec. Lei nº 15/2001.
A suspensão está prevista, embora condicionada ao pagamento da contribuição e acréscimos legais, no prazo máximo de cinco anos - cfr. actual art. 14º, nº 1.
Enunciadas as molduras penais importa ter presente que segundo o art. 70º do Código Penal se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, como é o caso nos dois diplomas, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, as quais se encontram prescritas no art. 40º, nº 1, do mesmo diploma (a saber: a prevenção geral positiva, de integração – protecção dos bens jurídicos – e a prevenção especial – reintegração do agente na sociedade).
No caso vertente, se, por um lado, a natureza do crime praticado e a frequência da sua prática, coloca exigências acrescidas, por outro, importa ponderar, relativamente ao arguido B………. e em seu favor, que, para além de não haver notícia de quaisquer outros comportamentos ilícitos anteriores ou posteriores ao destes autos, neste momento, não só a sociedade por ele gerida foi declarada falida, como ele próprio foi declarado insolvente, estando, pois, fortemente limitada a possibilidade de o arguido vir a repetir a prática de ilícitos de idêntica natureza, o que dilui as exigências de prevenção especial e a necessidade de protecção ao bem jurídico violado que o caso coloca.
Entendemos, por isso, que a protecção dos bens jurídicos e a ressocialização deste concreto agente são possíveis de alcançar através da aplicação de uma pena de multa que, por isso, se julga a adequada ao caso.
Conforme dispõe o art. 71º, nº 1, do Cód. Penal a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada no referido preceito legal, far-se-á em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial do agente, determinando o nº 2 de tal disposição que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do arguido, desde que não façam parte do tipo legal de crime. Na execução daquela tarefa deverá ainda atender-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime – art. 13º do RGIT.
Assim, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, à prevenção geral a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
Ao nível da culpa, haverá que atender ao grau de ilicitude dos factos praticados, grau esse que é relativamente reduzido, tendo em conta que a conduta mais grave se refere a uma prestação que apenas ascende a 1.013,91 €, não se devendo, porém esquecer que em causa está um período de tempo bastante prolongado (de Agosto de 2002 a Julho de 2005), devendo ainda ponderar-se que o prejuízo global causado à Segurança Social ascende a 15.785,50 €.
A favor do arguido, agora ao nível da prevenção especial, os factores já referidos que conduzem à conclusão da inexistência de grave risco de repetição, por parte do mesmo, de actos semelhantes. Como já se disse, as exigências de prevenção geral que o caso revela não são acentuadas.
Por fim, há que atender às demais condições pessoais do arguido:
O arguido encontra-se desempregado há cerca de três anos, não auferindo qualquer subsídio, tendo sido declarado insolvente;
O arguido vive em casa própria;
Tem dois filhos de 4 e 11 anos de idade;
A sua esposa possui negócios próprios, sendo sócia de várias empresas;
O agregado familiar subsiste com os rendimentos da esposa;
O arguido encontra-se em depressão desde a falência da sociedade “E……….”, sofrendo, por causa disso, de limitações em termos de deslocação física.
Ponderados todos estes factores, entende-se como justa a pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 1 €, dada a situação de insolvência do arguido - art. 15º do RGIT
● Pedido de indemnização cível.
Chegou agora o momento de apreciar o pedido de indemnização civil formulado pela Segurança Social.
Tendo em conta o disposto no art. 129º do C Penal, a indemnização por perdas e danos derivados da prática de um facto subsumível num determinado tipo legal de crime é regulada pela lei civil.
Há, pois, que recorrer ao que preceitua o art. 483º do C Civil, visto estarmos perante uma situação de responsabilidade civil extra-contratual: 1 – Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Pressupostos da indemnização por factos ilícitos são, pois: o facto ilícito; a culpa; o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Facto ilícito é todo aquele dominável ou controlável pela vontade humana, que não esteja a coberto de nenhuma causa de justificação.
A culpa pode configurar o dolo (a intenção de praticar um facto ilícito ou a conformação com esse resultado) e a negligência (a omissão de um dever objectivo de cuidado).
Posteriormente, há que apurar os danos, sendo certo que estes constituem uma lesão patrimonial ou não patrimonial na esfera jurídica do lesado e que tem uma expressão económica susceptível de ser ressarcida (art. 562º do C Civil).
Por último, quanto ao nexo causal, textua o art. 563º do C Civil: a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Face à facticidade dada como assente, dúvidas não restam que a conduta do arguido/demandado implicou a violação de norma destinada a proteger interesses alheios, qual seja, a do art. 107º, nº 1, do RGIT
Por outro lado, preenchido se mostra, como supra se demonstrou, o pressuposto da culpa.
Quanto aos danos, dos autos ressalta que apenas estão em causa prejuízos patrimoniais e que a diferença patrimonial em que a situação do Instituto de Segurança Social passou a divergir em relação à situação em que estaria não fosse a actuação criminosa dos arguidos, em representação da sociedade E………., ascendeu ao montante de 15.785,50 €
Os juros de mora devidos são os previstos no art. 16º do Dec. Lei nº 411/91, de 17 de Outubro, e art. 3º do Dec. Lei nº 73/99, de 16 de Março.
Pelo exposto, deve o arguido ser condenado a pagar Instituto de Segurança Social, a título de danos patrimoniais, a aludida quantia, à qual deverão acrescer juros de mora, a contar, relativamente a cada uma das quantias supra descriminadas, do termo do respectivo prazo de pagamento voluntário – uma vez que as dívidas em causa são líquidas e provêm de facto ilícito ( art. 805º, nº 2, b), do Cód. Civil ) –, nos termos legais, e até integral pagamento de cada uma delas.
V - Decisão.
Pelo exposto, decide-se:
a) condenar o arguido B………. pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto e punível pelos art.’s 107º, nºs 1 e 2, e 105º, nºs 1, 4 e 7, da Lei nº 15/2001, de 15.06, e art. 30º, nº 2, do Cód. Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa de 1 €;
b) condenar o referido arguido no pagamento das custas criminais, fixando a taxa de justiça devida em 4 Unidades de Conta e a procuradoria em metade da taxa de justiça aplicada;
c) condenar o arguido a pagar 1% da taxa de justiça aplicada a favor das vítimas de crimes violentos - art. 13º, nº 3, do Dec. Lei nº 423/ 91, de 30.10;
d) condenar o arguido/demandado no pagamento da quantia de 15.785,50 €, acrescida dos juros de mora devidos nos termos previstos no art. 16º do Dec. Lei nº 411/91, de 17 de Outubro, e art. 3º do Dec. Lei nº 73/99, de 16 de Março, até efectivo e integral pagamento;
e) condenar o demandado no pagamento das custas cíveis.
Após trânsito, remeta boletim ao registo.

Apreciando.

A questão em análise é controvertida e tem suscitado debate, com soluções jurisprudenciais divergentes.

Antes da alteração introduzida pela Lei nº 64-A/08, de 31/12, a redacção do n° 1, do artigo 105º, do RGIT, era a seguinte:

“1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, a prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.

A alteração consagrada no artigo 113°, da mencionada Lei, introduziu um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando a exigir-se que seja ela de valor superior a 7500 euros e revogou ainda o nº 6 daquele artigo 105º, consignando-se agora que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.

Por seu lado, o artigo 107º, do RGIT, que não sofreu alteração alguma pela Lei nº 64-A/08, prescreve:

“1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105º.

2. É aplicável o disposto nos nºs 4, 6 e 7, do artigo 105º”.

Analisando as duas disposições legais em causa e conforme entendimento plasmado no Ac. R. do Porto de 15/10/2003, Proc. nº 0314181, com acolhimento, entre outros, no Ac. R. Coimbra de 04/03/09, Proc. nº 257/03.5TAVIS.C1 e Ac. R. Porto de 03/06/09, Proc. nº 0715084 (in www.dgsi.pt.)constata-se que os crimes contra a segurança social se reportam a condutas paralelas ou similares às dos crimes fiscais.

Não obstante, nos crimes contra a administração fiscal os bens jurídicos protegidos reportam-se ao regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de política social estabelecidos pelo Estado, sendo certo que o escopo do sistema fiscal não é tão só o arrecadar de receitas, “mas também, e primordialmente, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza e a diminuição das desigualdades entre os cidadãos - cfr. arts. 103 e 104 da CRP”.
“Diferentemente, nos crimes contra a Segurança Social o bem jurídico tutelado é o património (lato sensu) da Segurança Social, ou seja, como diz o recorrente [IGFSS], "a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular". Ao contrário do que acontece com as receitas fiscais, as contribuições para a Segurança Social não servem para, indistintamente, o Estado realizar os seus fins (sociais ou outros). Não são receitas do Estado, mas do recorrente (art. 25 n° 1 al. a) do Dec.-Lei 260/99 de 7-7), destinando-se à prossecução dos seus fins específicos, de que não beneficiam, sequer, todos os cidadãos”.

Resulta, em consequência, que o âmbito de protecção de cada uma das normas em presença é diferente”.

Ora, o nº 1, do artigo 107º, do RGIT, contempla todos os elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a segurança social, remetendo tão só para as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105º e não para os elementos do tipo ou condições de procedibilidade deste e a alteração da Lei nº 64-A/2008, de 31/12, como vimos, apenas introduziu um novo elemento objectivo ao tipo incriminador, circunscrevendo-o à não entrega de prestações tributárias de valor superior a 7500 euros, alicerçando, desta forma, pelo menos no que concerne à letra da lei, o entendimento (que é o vertido na decisão recorrida) quanto à inaplicabilidade do limite de 7500 euros consagrado no nº 1, do artigo 105º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção que lhe foi dada pelo artigo 113º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.

Argumenta-se em sentido divergente, com a remissão que igualmente é feita no artigo 107º para o nº 5 do artigo 105º, mas afigura-se-nos que sem razão, porquanto este normativo se limita a prever uma circunstância agravante qualificativa (e não um elemento fundamental do tipo), que se reporta tão só à delimitação entre o crime simples e o crime agravado, repercutindo-se apenas na moldura penal abstractamente aplicável, que passa da pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias para prisão de um a cinco anos, quanto às pessoas singulares e de multa de 240 a 1200 dias, quanto às pessoas colectivas, quando a entrega não efectuada for superior a 50.000 euros.

Também se afirma, para defender a aplicabilidade do limite de 7500 euros ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, como faz o recorrente, que o legislador ao alterar o nº 1 do artigo 105º revogou o nº 6 que estabelecia uma exclusão de responsabilidade criminal no caso de prestações inferiores a 2000 euros, sendo efectuada uma notificação conferindo ao arguido a possibilidade de fazer cessar o procedimento criminal e independentemente de este ter feito as declarações à administração – ao contrário da condição de exclusão da punibilidade prevista no artigo 105º nº 4 alínea b) que pressupõe tal declaração.

Mais articula o recorrente em abono da sua tese que com a alteração ao nº 1 do artigo 105º, o nº 6 deixou de ter qualquer sentido e a “notificação” não tem razão de ser quando só existe responsabilidade criminal acima dos 7.500,00 Euros, sendo que a sua revogação teve assim toda a lógica e o legislador quis esse mesmo efeito no artigo 107º, pois o nº 6 também era aplicável ao artigo 107º por remissão, pois, seria absurdo considerar-se a manutenção do nº 6 do artigo 107º do RGIT, quando a responsabilidade apenas existia em omissões de entrega superiores a 7.500,00 Euros.

Não obstante, este argumento da revogação do nº 6, do artigo 105º, não é, em nosso entender, significativo, nem determinante.

Com efeito, a lei manteve a remissão para uma norma revogada, mas por deficiente técnica legislativa, impondo-se efectuar uma interpretação abrogante quanto a essa remissão, não podendo deixar de se concluir que foi intenção do legislador não alterar o crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social e tanto assim que permaneceram inalterados os seus elementos típicos.
Mas outros argumentos são esgrimíveis em abono da tese da inaplicabilidade.

Seguindo a lição de Manuel de Andrade, “Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, Arménio Amado Editor, Coimbra 1978, pags. 134 a 144, o escopo da interpretação é a determinação do sentido objectivo da lei, enquanto expressão da vontade do Estado, que se autonomiza em relação ao conjunto dos pensamentos e tendências subjectivos dos que contribuíram para a sua produção.

Para o conhecimento do sentido da lei intervêm vários meios, que constituirão outros tantos estádios ou etapas do processo interpretativo, a saber: a interpretação literal (gramatical, linguística, verbal) e a lógica ou racional, em que se integram vários elementos, tais como o elemento racional, o sistemático e o histórico.

Como se salienta no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do nosso Mais Alto Tribunal nº 5/2009, DR 1ª Série, de 19/01/2009 “interpretar um preceito consiste, antes do mais, em tirar das palavras usadas na sua redacção um certo sentido, um certo conteúdo de pensamento, uma significação; em extrair da palavra - expressão sensível de uma ideia - a própria ideia nela condensada.

Não se tratará, porém, de colher da lei um qualquer sentido, o primeiro que o texto legal traga ao espírito do jurista. É que a lei não se destina a alimentar a livre especulação individual; é um instrumento prático de realização e de ordenação da vida social, que se dirige sempre a uma generalidade mais ou menos ampla de indivíduos, não concretamente determinados, para lhes regular a conduta (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 1973, p. 144, e Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 5.ª ed., 1951, p. 24)”.

Para esse escopo contribuem diversos elementos, quais sejam: o gramatical, o racional e o sistemático.

O que se visa, na verdade, é “estabelecer o sentido das expressões legais para decidir a previsão legal e, logo, a sua aplicabilidade ao pressuposto de facto que se coloca perante o intérprete, cientes de que a interpretação da lei não deve cingir -se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (artigo 9º, nº 1, do CC), além de que, na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9º, nº 3)”.

O elemento gramatical perfila-se, como resulta do texto da lei e já ficou supra analisado, no sentido de que se pretendeu restringir a alteração ao abuso de confiança fiscal, não abrangendo o crime de abuso de confiança contra a segurança social, cujo tipo incriminador se manteve intocado.

No que tange aos elementos racional e sistemático cumpre ponderar que enquanto o abuso de confiança fiscal relativamente à falta de entrega de prestações não superiores a 7.500 euros continua a ser punível como contra-ordenação fiscal (artigo 114º, nº 1, do RGIT), a falta de entrega de contribuições devidas à segurança social não integra infracção desta natureza.

Assim, não será o melhor entendimento (salvaguardando obviamente o devido respeito por opinião divergente) considerar que a lei pretendeu deixar totalmente impune essa omissão de entrega nos casos em que não ultrapasse aquele limite de 7500 euros, quando estamos manifestamente perante um comportamento bem mais censurável do que outros que estão tipificados, nomeadamente no Decreto-Lei nº 64/89, de 25/02, como contra-ordenações contra a segurança social.

Para além disso, como se ajuizou no Ac. R. de Coimbra de 04/03/09, Proc. nº 257/03.5TAVIS.C1, acompanhado pelo Ac. R. Porto de 25/03/09, Proc. nº 1131/01.5TASTS, ambos em www.dgsi.pt, da inserção sistemática da alteração em causa, resulta que ela se não aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, porquanto o artigo 113º, da Lei nº 64-A/2008, de 31/12 integra-se na sua secção II –“Procedimento e Processo Tributário” do Capítulo XI –“Procedimento, processo tributário e outras disposições”, enquanto as alterações legislativas que o mesmo diploma legal contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu Capítulo V –“Segurança Social” (artigos 55º e seguintes) e aqui é que poderia/deveria ser integrada qualquer alteração aos crimes contra a segurança social se essa fosse a mens legis.

Em estudo intitulado “A Lei do OE 2009 e o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social” (que pensamos ainda não ter sido dado à estampa) salientou o Desembargador José da Cruz Bucho:

“Este reforço da autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social funda-se e justifica-se na necessidade premente de defesa da sustentabilidade da segurança social fortemente ameaçada, em Portugal como na generalidade dos países europeus, pelo efeito conjunto de várias situações, nomeadamente o crescente envelhecimento da população, a redução da taxa de natalidade, o aumento progressivo do período contributivo (amadurecimento do sistema) e o crescimento das pensões a um ritmo superior ao das contribuições (cfr., v.g., o “Relatório Técnico sobre a Sustentabilidade da Segurança Social”, apresentado pelo Governo aos parceiros sociais, em Maio de 2006), as quais fazem perigar a própria manutenção do Estado Social.

Assim, quanto ao crime de abuso de confiança fiscal compreende-se que, por razões de eficiência, se retirem dos tribunais, contribuindo deste modo para o seu descongestionamento, processos de natureza bagatelar por não se justificar que o Estado afecte recursos humanos e materiais na perseguição criminal de ilícitos fiscais em que a prestação não entregue é igual ou inferior a €7500, mas em que fica ressalvada a luta contra evasão fiscal (onde, de resto, se têm vindo a realizar grandes progressos), desde logo por via do procedimento contra-ordenacional (em que o valor mínimo da coima aplicável corresponde ao valor da prestação em falta, se o arguido for pessoa singular, e duas vezes esse valor, se o arguido for pessoa colectiva - cfr. artigos 114º, n.º1 e 26º, n.º1, ambos do RGIT).

Mas, a mesma justificação não colhe no que se refere ao abuso de confiança contra a segurança social no que toca à não entrega das quotizações deduzidas de valor igual ou inferior a €7500, já que o orçamento do IGFSS assenta ainda primordialmente nas receitas advenientes das contribuições resultantes dos descontos nas remunerações devidas – cfr. artigos 54º, 90º, nº 2 e 92º todos da Lei nº 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social e Gomes Canotilho-Vital Moreira, CRP Anotada, 4ª ed., vol. I, Coimbra, 2007, págs. 817- 818 e 1105-1106”.

Tudo visto, importa concluir, pois, no sentido de que o limite de 7500 euros consagrado no nº 1, do artigo 105º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção que lhe foi dada pelo artigo 113º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º, do RGIT, inexistindo a despenalização pretendida pelo recorrente – neste sentido, vd. também, para além dos arestos supra mencionados, Acs. R. Porto de 20/04/09, Proc. nº 8419/02.6TDPRT; de 27/05/09, Proc. nº 946/07.5TABGC.P1 e de 15/07/09, Proc. nº 0846834; Acs. R. Coimbra de 08/07/09, Proc. nº 148/98.0IDCBR.C2; de16/09/09, Proc. nº 340/07.8TATND. C1 e de 23/09/09, Proc. nº 413/06.4TATND.C1; Ac. R. Lx. de 20/07/09, Proc. nº 7867/2008-3, em www.dgsi.pt.

Em sentido divergente, vd. Acs. R. Porto de 07/05/09, Proc. nº 343/05.7TAVNF.P1 e de 14/10/09, Proc. nº 0546335 e Acs. R. Lx. de 25/02/09, Proc. nº 102/04.4TACDL.L1-3 e 15/07/09, Proc. nº 6463/07.6TDLSB.L1-4), também em www.dgsi.pt.

Porque assim é, o recurso não pode deixar de improceder.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal desta Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.

Porto, 25 de Novembro de 2009

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)

Artur Daniel Tarú Vargues da Conceição
Jorge Manuel Baptista Gonçalves