Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
208/04.0GBBAO-B.P1
Nº Convencional: JTRP00042352
Relator: JORGE JACOB
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
Nº do Documento: RP20090325208/04.0GBBAO-B.P1
Data do Acordão: 03/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Os períodos de privação da liberdade indicados no nº 1 do art. 80º do Código Penal devem ser levados em conta no cômputo dos prazos de concessão da liberdade condicional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto
4ª secção (2ª secção criminal)
Proc. nº 208/04.0GBBAO-B.P1
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO:

Por sentença proferida nos presentes autos, transitada em julgado, foi a arguida B………. condenada na pena de 36 meses de prisão.
Por despacho de 04/07/2008, foi homologada a liquidação da pena.
Notificada, a arguida requereu a aclaração daquele despacho, pedindo a respectiva alteração, o que veio a ser indeferido.
Inconformada, a arguida interpôs o presente recurso com subida em separado.
O M.P. respondeu, pronunciando-se pela manutenção da decisão que homologou a liquidação da pena.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apôr o seu visto.
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
Mediante sentença proferida nestes autos (fls. 433 e seguintes), transitada em julgado, foi a arguida B………. condenada na pena de 36 meses de prisão.
A arguida apresentou-se voluntariamente no estabelecimento prisional especial de ……….., em 4 de Abril de 2008, para cumprimento da pena de prisão efectiva.
Resulta dos autos que a arguida foi detida no dia 27.05.2004 para ser submetida a pri­meiro interrogatório judicial de arguido preso, devendo esse dia ser descontado na pena, nos termos do artigo 80°, nº 1 do Código Penal.
Resulta, ainda, da certidão de fls. 911 e seguintes, que a arguida esteve presa preventi­vamente desde 27.04.2006 a 26.07.2007, à ordem do processo comum colectivo nº …/04.4GFLG, do .° Juízo de Felgueiras, no qual veio a ser absolvida, pelo que se impõe proceder ao desconto deste período de prisão preventiva, ao abrigo do disposto no artigo 80°, nº 1, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, aplicá­vel por ser o regime mais favorável à arguida.
Assim, concordando com a liquidação da pena preconizada pela digna Magistrada do Ministério Público, constata-se que:
- a metade da pena ocorrerá em 19 de Fevereiro de 2009;
- os 2/3 terão lugar em 4 de Junho de 2009
- o termo ocorrerá em 4 de Janeiro de 2010.
Consequentemente, homologo a liquidação constante da douta promoção que antecede.
(…)

Conclusões do recurso interposto pela arguida:
I - Ocorreu erro na liquidação da pena efectuada e preconizada pela Digna Magistrada do Ministério Público, e homologada por douto por despacho de fls. 924 dos autos, uma vez que se afigura que a mesma (liquidação) e respectiva contabilização da prisão preventiva a que foi sujeita a condenada não está devidamente calculada nem descontada;
II - Como bem se refere no douto despacho "a aqui arguida esteve presa preventivamente desde 27.04.2006 a 26.07.2007. à ordem do processo comum colectivo nº …/04.GAFLG, do .º Juízo de Felgueiras, no qual veio a ser absolvida, pelo que se impõe proceder ao desconto deste período de prisão preventiva, ao abrigo do disposto no artigo 80º, nº 1 do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, aplicável por ser o regime mais favorável à arguida ";
III - Ora, a aqui recorrente foi condenada no âmbito dos presentes autos a 36 meses de prisão, sendo necessário descontar a essa pena o tempo que a condenada esteve presa, em prisão preventiva, à ordem do processo nº …/04.4GAFLG, no caso 456 dias, uma vez que nesse processo foi absolvida e, nos termos do artigo 80º, nº 1, do Código Penal, são descontados por inteiro, no cumprimento de pena, o tempo de detenção ocorrida no âmbito desse processo;
IV - Logo, se aos 36 meses, que em dias correspondem a 1095 dias, retirarmos os 456 dias ficam para cumprir 639 dias;
V - A não se entender assim, salvo o devido respeito e melhor opinião, estar-se-á a violar o disposto no art. 80°, nº 1, do Código Penal, o qual impõe que a detenção e prisão preventiva " ... são descontados por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas cm processo diferente daquele em que vier a ser condenado.:" (sublinhado e negrito nosso), e não, como defende o Tribunal a quo na própria pena em si, antes de qualquer cumprimento. Se essa fosse a vontade do legislador, certamente que teria escrito" ... são descontados por inteiro na pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente ... ":
VI - Não estamos perante um qualquer "perdão" da pena, mas sim perante um desconto de uma prisão preventiva já cumprida, no caso concreto entre 27-04-2006 e 26-07-2007,não sendo, ao contrário do que é referido no douto despacho, necessário levar a cabo qualquer ficção quanto à data anterior do cumprimento, porque ela existe (27-04-2006 a 26-07-2007), já foi cumprida e apenas terá que ser (re)conhecida do processo e descontada ab initio; VII- Acresce que, no nosso entendimento, qualquer interpretação que faça do artigo 81º, nº 1, do Código Processo Penal, no sentido de não ser descontada a prisão preventiva sofrida anteriormente por inteiro no cumprimento ab initio da pena de prisão é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32°, nº 1 e nº 4 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos;
VIII - Mais acresce que, na nossa opinião, tal entendimento também é contrário ao fim das penas e as necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir em concreto;
IX - Pelo exposto, uma vez que a arguida se apresentou "voluntariamente no estabelecimento Prisional Especial de………., em 4 de Abril de 2008, para cumprimento da pena de prisão efectiva e efectuando-se o desconto de 456, acrescidos dos 103 dias, estes desde o dia em que se apresentou no Estabelecimento Prisional até à presente data decorreram já 559 dias, ou seja, sendo metade da pena 18 meses, isto é, 547 dias e meio correspondentemente, no dia 4 de Julho do presente ano a arguida já ocorreu o cumprimento de metade da pena.
X - Foram violados entre outras normas e princípios que V. Exas suprirão, o disposto no nº 1 do artigo 80º, 40°, 42°, 61º, todos do Código Penal e artigo 32º, nº 1 e nº 4 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa;
Xl - Pelo exposto deverá ser revogado o despacho posto em crise e a respectiva liquidação, substituindo-se o mesmo por outro que reconheça que o inicio da pena, após desconto da prisão preventiva sofrida no processo nº …/04.4GAFLG, ocorreu no dia 4 de Abril de 2008, o meio da pena ocorreu no dia 4 de Julho de 2008 e os 2/3 em 4 de Janeiro de 2009 e o termo da pena em 4 de Janeiro de 2010. Liquidação esta que deverá ser homologada.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir consiste em saber se, havendo que proceder ao desconto de prisão preventiva sofrida à ordem de outro processo, nos termos previstos no art. 80º, nº 1, do Código Penal, as datas previstas no art. 61º do mesmo diploma devem ser calculadas tendo por base o início do cumprimento da pena de prisão efectiva aplicada ou antes considerando como início da pena a data mais antiga de privação da liberdade, por efeito de detenção ou prisão preventiva sofridas à ordem de outro processo.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

A norma constante do actual art. 80º, nº 1, do Código Penal, constitui uma das inovações introduzidas pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, tendo implicações directas no cumprimento da pena efectiva imposta. Reza assim:
A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
Por força desta norma e após a sua entrada em vigor, o cumprimento de pena de prisão subsequente a condenação em pena de prisão efectiva por facto praticado antes da decisão final de processo em que tenha havido detenção ou imposição de medidas restritivas da liberdade [não descontadas em pena imposta no próprio processo] implica o desconto da privação de liberdade sofrida nesse processo. O problema que esta norma levanta e que corresponde, aliás, à questão suscitada no recurso em apreciação, é a de saber em que termos deverá esse desconto influir no cumprimento a pena, no que tange ao cálculo do cumprimento das parcelas da pena relevantes para a concessão da liberdade condicional.
Por seu turno, o nº 4 do art. 41º, também do Código Penal, dispõe que a contagem dos prazos da pena de prisão é feita segundo os critérios estabelecidos na lei processual penal e, na sua falta, na lei civil.
As normas da lei processual penal aplicáveis, a que alude aquele art. 41º, são as constantes dos arts. 479º a 481º do CPP, havendo a considerar ainda os arts. 80ºa 82º do Código Penal, que constituem verdadeiras normas de processo penal incluídas no Código Penal.
Decorre dos arts. 477º e 478º do CPP que o cumprimento da pena de prisão se inicia com a entrada do condenado no estabelecimento prisional, após trânsito em julgado da sentença condenatória. Se o condenado já se encontrar em prisão preventiva, o cumprimento da pena inicia-se com o trânsito em julgado daquela decisão, havendo que descontar por inteiro no cumprimento da pena a prisão preventiva sofrida, nos termos do supra transcrito art. 80º, nº 1, do Código Penal. Não importa distinguir aqui se a prisão preventiva sofrida respeita ao próprio processo em que foi imposta a condenação ou a processo distinto. Vale aqui o velho aforismo do direito romano segundo o qual ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. A lei não faz essa distinção e nada autoriza que o intérprete a faça. Desde que verificados os pressupostos constantes do art. 80º, a privação de liberdade decorrente de detenção ou de medida de coacção deverá ser integralmente descontada.
De que modo influi tudo isto na verificação dos pressupostos da liberdade condicional ?
Registe-se que a lei não contém qualquer menção expressa à necessidade de cumprimento contínuo da pena de prisão para efeitos de concessão de liberdade condicional. As parcelas relevantes para efeitos de concessão da liberdade condicional são apontadas por referência ao cumprimento da pena (cfr. arts. 61º, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal) e é também por referência ao cumprimento da pena que o art. 80º, nº 1, do mesmo diploma, manda descontar por inteiro a detenção ou privação de liberdade decorrente de medida de coacção, o que não contraria, antes apoia, o entendimento de que aqueles períodos de privação de liberdade devem também ser levados em conta para o cômputo dos prazos de concessão de liberdade condicional [1].
É esta, aliás, a posição assumida por Figueiredo Dias: “Para efeito de se considerar «cumprida» metade da pena, contabiliza-se seguramente qualquer redução que a pena tenha sofrido, nomeadamente por via de perdão parcial ou de outra medida graciosa; como igualmente se contabiliza qualquer privação de liberdade sofrida no processo que conduziu à condenação ou por causa dele, nomeadamente, o tempo de prisão preventiva. Deste modo, pode acontecer que logo no momento da condenação o arguido esteja em condições – ao menos formais – de ser colocado em liberdade condicional” [2].
Em conclusão, deverá a decisão recorrida ser reformada de modo a contabilizar na pena já cumprida a prisão preventiva sofrida pela arguida no proc. nº …/04.4GAFLG.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso, devendo o tribunal a quo substituir o despacho recorrido por outro que, após prévia vista ao M.P., se pronuncie sobre a liquidação da pena nos termos apontados, contabilizando a prisão preventiva sofrida pela arguida no proc. nº …/04.4GAFLG.
Sem tributação.
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Porto, 25/03/2009
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira

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[1] - No sentido apontado, ainda que em situação de natureza distinta, cfr. o Ac. da Relação de Coimbra, de 01/08/2007, proferido no Proc. nº 558/04.5PBVIS-A.C1, in www.dgsi.pt
[2] - “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 536.