Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0831391
Nº Convencional: JTRP000
Relator: GONÇALO SILVANO
Descritores: CONFLITO ATÍPICO DE COMPETÊNCIA ENTRE MAGISTRADOS
Nº do Documento: RP200804020831391
Data do Acordão: 04/02/2008
Votação: .
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA.
Decisão: .
Área Temática: .
Sumário: I- Sendo reconhecido pelo próprio juiz que iniciou o julgamento que já não tem recordação do que se passou na audiência, deve aceitar-se que em tais circunstâncias tenha de repetir-se a audiência de julgamento para que possa produzir-se uma decisão sobre a matéria de facto efectivamente fundamentada.
II-E uma vez decidida a repetição do julgamento já não se justifica a observância do principio da plenitude da assistência dos juízes uma vez que este se circunscreve no âmbito dos actos que se desenvolvem na audiência desde início até final da mesma.
III- Estando o Senhor juiz que iniciou o julgamento a exercer actualmente funções num Tribunal Superior , a audiência de julgamento terá de ser repetida pelo actual Senhor juiz de Circulo.
Reclamações: I-Relatório

O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação do Porto vem requerer a resolução do CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA, suscitado entre o anterior e actual Juiz do Círculo Judicial de ......., nos termos e com os seguintes fundamentos:

1º- Aos 11 de Dezembro de 2003, no decurso da audiência de discussão e julgamento da acção, com processo ordinário, n° …do 2° juízo cível do Tribunal Judicial de …, em que é Autor…. e Ré …, o Mm° Juiz de Círculo que presidia ao respectivo julgamento, depois de produzida a prova testemunhal, proferiu despacho determinando, ao abrigo do disposto no art° 579° do CPC, a realização de uma perícia pelo INML — secção do Porto (fls. 2 a 6 da certidão que se junta junta);

2° -Tal exame apenas ficou concluído em 2007 tendo, por despacho de 10 de Julho de 2007, o mesmo Sr. juiz supra referido (actualmente Desembargador na Relação de …), determinado a conclusão do processo ao juiz de Círculo actualmente competente para o julgamento das acções ordinárias daquele 2° Juízo Cível de …., por considerar ser preferível, atento o lapso de tempo entretanto decorrido e a observação dos princípios da continuidade da audiência, da oralidade e da imediação, a repetição do julgamento, sustentando-se, para o efeito, no disposto no art° 654° n° 3 do Código de Processo Civil (fls.7 da mesma certidão que se junta);

3º- Sucede que o actual Mm° juiz de Círculo, por despacho de 12 de Julho de 2007, entendeu não se justificar a repetição do julgamento, por a totalidade das testemunhas arroladas pelas partes ter sido já inquirida e os seus depoimentos se mostrarem gravados (fls. 8 da mesma certidão);

4º- Ambos os Mm°s Juízes vieram a reiterar as suas anteriores posições, por despachos, respectivamente, de 18 de Outubro (fls.14) e 20 de Novembro de 2007 (fls.15), cada um deles entendendo que não deveria proceder ao julgamento em causa;

5º- Apesar da situação descrita não configurar um verdadeiro conflito negativo de competência, tal como o define o art° 115º n° 2 do CPC, está todavia criado um impasse que urge solucionar por recurso às normas para resolução dos conflitos (art°s 117º a 120°, por aplicação ex vi do corpo do art° 121°, todos do CPC);

6º- Sendo esta Relação, como tribunal de menor hierarquia com jurisdição sobre aqueles tribunais, o competente para decidir o conflito - art° 116°, n° 1- 2 parte do CPC, na redacção ainda anterior à introduzida pelo DL n° 303/2007, de 24 de Agosto, uma vez que as suas disposições não se aplicam aos processos, como o presente, pendentes à data da sua entrada em vigor - artº 11º, nº 2 do referido DL.

II-Fundamentação.

1- Após a instrução do conflito que contém as posições assumidas pelos Senhores juízes intervenientes nos autos em causa, foram os mesmos notificados para se pronunciarem em definitivo, adoptando-se, por analogia e com as devidas adaptações , as regras do disposto nos artºs 115 a 121º, ex- vi artº 654º do CPC.

Por parte dos senhores juízes ouvidos não houve agora qualquer pronúncia, sendo que o autor e a ré também se pronunciaram oportunamente no processo em sentidos opostos.

2- Estamos em presença de um conflito atípico entre magistrados, que importa decidir com vista a definir se no caso há lugar à conclusão da audiência de julgamento pelo anterior Senhor juiz de Círculo que a iniciou ou se perante a actual colocação desse mesmo senhor juiz num Tribunal Superior e dado que o julgamento está suspenso desde 2003, deve repetir-se agora de novo todo o julgamento.

Para a decisão releva o facto de o mesmo senhor juiz que procedeu ao julgamento sem o concluir, embora reconhecendo (fls.11 e 18) que a prova nele produzida esteja gravada, ter declarado nos autos que tendo analisado o processo confirmou não possuir qualquer recordação nem apontamentos do que se passou naquela audiência de julgamento, cuja última sessão se realizou em 11 de Dezembro de 2003, ficando a partir daí os autos a aguardar a perícia ordenada, só concluída em 2007.

Aquele senhor juiz entendeu perante tal situação e invocando o disposto nos nºs 2 e 3 do artº 654º do CPC proferir despacho no processo decidindo que a audiência de julgamento se devia repetir.

Por sua vez o actual senhor juiz de Círculo com competência no juízo onde corre o processo invocando também o disposto no artº 654º, nº 2 do CPC, defendeu não se vislumbrar fundamento para determinar a repetição integral de um julgamento cuja audiência de julgamento praticamente terminou.

3- Perante estas duas posições, impõe-se decidir o conflito existente entre estes dois magistrados.

A redacção do artº 654º do CPC mantém-se equivalente à do CPC de 1939 que introduziu um aditamento na parte final do nº 2, consistente no facto de não haver recurso da decisão proferida pelo juiz que devia presidir à continuação da audiência.

Ora se as decisões proferidas criaram às partes a impossibilidade de delas recorrerem, o certo é que não ficou resolvida a situação prevista na lei que foi precisamente a de encontrar uma solução de sair do impasse quando determinadas circunstancias aconselhem a repetição dos actos praticados num processo.

O principio da plenitude da assistência dos juízes, sendo um corolário dos princípios da oralidade e da livre apreciação da prova deve prevalecer na decisão da matéria de facto.

No caso dos autos, estando a prova gravada e tendo o juiz que presidiu à audiência os elementos nela recolhidos, nada impediria, em princípio, em função da previsibilidade do disposto no nº 1 do artº 654º do CPC que o anterior juiz proferisse decisão sobre a matéria de facto.

Porém as circunstâncias concretas do caso, revelam-nos que é o próprio juiz que presidiu à audiência de julgamento a reconhecer que já não tem recordação da mesma nem os apontamentos que nela colheu.

Ora para a formação da livre convicção do julgador em 1ª instância é decisivo que este tenha presente a dinâmica da audiência, porquanto a percepção formada fora desse condicionalismo pode efectivamente ser defeituosa e permitiria que se proferisse decisão desconforme com a realidade dos depoimentos produzidos em audiência.

4- No caso dos autos compreende-se, assim, que tendo a última audiência sido realizada em 2003 e aguardando os autos desde então até 2007 a conclusão de uma perícia que fora ordenada na sequência do julgamento ainda em curso, seria muito difícil ao julgador que então presidiu ter presentes a realidade dos factos tal como ocorreram, designadamente as reacções dos depoimentos que lhe foram transmitidos.

Como se sabe existem aspectos de comportamento e reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionadas e interiorizadas presencialmente (e não através da simples audição da prova gravada) e que podem ser decisivas para a formação da convicção do julgador.

Sendo reconhecido pelo próprio juiz que já não tem recordação do que se passou na audiência, seria temerário e desconforme com os princípios apontados aceitar-se que em tais circunstâncias tivesse de estar a produzir uma decisão sobre a matéria de facto do processo em causa.

Daí que entendamos justificadas as razões de mandar repetir a audiência de julgamento (cfr sobre esta temática-Alberto ReisCPC anotado, volume IV, pág. 538/540 e Lebre de Freitas: CPC anotado - Volume 2º, pág.633/634).

E uma vez decidida a repetição do julgamento já não se justifica agora a observância do principio da plenitude da assistência dos juízes uma vez que este se circunscreve no âmbito dos actos que se desenvolvem na audiência desde início até final da mesma, deixando de valer relativamente á elaboração da sentença..

Dado que o senhor juiz de então exerce actualmente funções no Tribunal da Relação de ….., a audiência de julgamento terá de ser repetida pelo actual Senhor juiz de Circulo (cfr. Acs. STJ de 10.11.1992-BMJ, nº 421, pág. 343; Ac. de 16.10.1997, BMJ, nº 470º, pág.427 e de 16.03.1999 - CJ/STJ, Tomo I, pág. 170 e Jacinto Bastos, Notas ao CPC - Vol III, pág.174).

III-Decisão

Nos termos expostos decide-se o conflito entre magistrados no sentido de que dever repetir-se o julgamento no processo em causa, cuja audiência deverá ser presidida pelo Senhor juiz de Círculo actualmente competente para o julgamento das acções ordinárias do 2° Juízo Cível de ….

Sem Custas.
Notifique
Porto-2-04-2008

O Presidente do Tribunal da Relação do Porto
Gonçalo Xavier Silvano

Decisão Texto Integral: