Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
106/11.0TBAMM-L.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: INSOLVÊNCIA
DÍVIDAS
MASSA FALIDA
DÍVIDA DA INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RP20140217106/11.0TBAMM.P1
Data do Acordão: 02/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 47º, 51º, 90º, 128º, 129º, 140º, 146º, 172º, 173º, 219º, 233º, 242º, DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
Sumário: As dívidas da massa falida, a que se reporta o artigo 51.º do CIRE, não se confundem com as dívidas da insolvência, relativamente às quais os credores da insolvência devem reclamar a verificação dos seus créditos junto do administrador como condição para obter pagamento no âmbito do processo de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão proferido no Processo n.º 106/11.0TBAMM-L.P1
5.ª Secção (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (artigo 713.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I- A omissão de pronúncia apenas se verifica se o juiz não considerou e decidiu as questões que concretamente lhe foram colocadas, que o tribunal tenha o dever de conhecer para a correcta decisão da causa e de que não haja conhecido, o que não ocorre se o juiz, conhecendo das questões postas ao tribunal, não abordou argumentos das partes que sustentavam tais questões, ou se errou na análise feita.
II- As dívidas da massa falida, a que se reporta o artigo 51.º do CIRE, não se confundem com as dívidas da insolvência, relativamente às quais os credores da insolvência devem reclamar a verificação dos seus créditos junto do administrador como condição para obter pagamento no âmbito do processo de insolvência.
III- O exercício dos respectivos direitos pelos credores da insolvência pressupõe a pendência do respectivo processo.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
1. B… e C…, por apenso ao processo de insolvência n.º 106/11.0TBAMM, da comarca de Armamar, em que é insolvente D…, e invocando a qualidade de credores, vieram requerer, contra E…, na qualidade de Administrador de Insolvência no âmbito do aludido processo, a prestação de caução nos termos previstos no artigo 219.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Para tanto alegam, em suma, que instauraram contra a insolvente uma acção ordinária que ainda corre os seus termos, estando pendente recurso de revista excepcional e onde pedem o pagamento da quantia de 237.607,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento; o Sr. Administrador tinha conhecimento desta acção e da dívida litigiosa, pelo que devia ter acautelado os eventuais direitos dos credores, pela prestação de caução, nos termos do artigo 219.º do CIRE; não o tendo feito, os requerentes, tomando só agora conhecimento da decisão de encerramento do processo de insolvência, vêm tomar tal iniciativa, reclamando a prestação de caução, para acautelar o seu crédito sobre a insolvente.
Notificado nos termos do disposto no artigo 982.º do Código de Processo Civil (na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho), o Sr. Administrador nada disse, pelo que os Requerentes, nos termos do disposto no artigo 985.º do mesmo diploma legal, vieram declarar que pretendiam que a caução fosse prestada mediante depósito em dinheiro (fls. 24 verso).
Foi então proferida decisão que determinou que o Sr. Administrador de Insolvência preste caução, no exacto valor do crédito litigioso, por meio de depósito em dinheiro.
2.1 O requerido, inconformado com esta decisão, interpôs o recurso de apelação que aqui se aprecia, concluindo assim a respectiva motivação:
«A. A sentença proferida padece da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aprovado pela Lei 41/2013 de 26 de junho, na medida em que não se pronunciou sobre questões/pressupostos essenciais para a decisão a proferir, sobre os quais se devia pronunciar, tendo em conta a realidade factual e de mérito resultante do processo de principal, ou seja, do processo de insolvência, ao qual o presente incidente foi apensado. Assim, poderá ainda o Tribunal a quo promover, se assim entender, a possível reforma da mesma nos termos previstos no artigo 613.º, n.º 2, e 616.º, n.º 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil.
B. A sentença recorrida enferma, ainda, de manifesto erro de julgamento, resultante de erro na apreciação dos pressupostos de facto e de direito em que assenta, porquanto, à data de apresentação do presente incidente para prestação de caução (28 de maio de 2013), por apenso ao processo (principal) de insolvência, já este se encontrava encerrado.
C. Donde se conclui não estar preenchido o primeiro requisito imposto pelo artigo 219.º do CIRE, invocado como fundamento da decisão recorrida, cuja possibilidade de aplicação existe, apenas, até ao encerramento do processo. Isso mesmo se extrai da expressão "Antes do encerramento do processo" constante do supra referido normativo legal.
D. Por sentença de 14 de março de 2013, foi homologado o plano de insolvência apresentado nos autos por um conjunto de cooperantes da D…, declarada insolvente por sentença de 14 de Setembro de 2012, transitada em julgado a 2 de Novembro de 2011. O presente incidente para prestação de caução, foi apresentado em juízo em 28 de Maio de 2013, logo muito depois da aprovação do plano, respetiva homologação, encerramento do processo e cessação de funções do AI, tudo conforme ordenado por despacho/sentença proferido pela M. Juiz titular do processo de insolvência.
E. Assim, o AI, ora recorrente, cessou as suas funções em 3 de Maio de 2013, por força de despacho proferido, nessa data, pela M. Juiz titular do processo. Tal despacho é claro e absolutamente inequívoco ao promover o encerramento do processo de insolvência subsequente ao despacho de homologação do plano de insolvência, no qual o AI não ficou incumbido de quaisquer funções.
F. E, em consequência, a nova entidade emergente da aprovação do plano assumiu todas as funções e poderes de administração e condução do plano, como igualmente resulta de decisão proferida pela Ma. Juiz titular do processo, autorizando a transferência dos ativos da massa insolvente para a nova entidade gestora do plano.
G. À data em que a recorrida B… e outro suscitaram o incidente de prestação de caução, já não se verificavam os pressupostos para aplicação do disposto no artigo 219.º do CIRE. Assim sendo, a sentença proferida padece da nulidade prevista na alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto tendo sido proferida num apenso ao processo de insolvência, ignorou toda a verdade material e substantiva constante do processo principal e não se pronunciou sobre questões/pressupostos essenciais para a decisão sobre a requerida prestação de caução. Independentemente da não apresentação de contestação pelo AI, o Tribunal a quo não podia decidir com base em pressupostos que manifestamente não se verificam nos autos e ignorar todas as decisões de mérito já proferidas, incluindo a do encerramento do processo e a cessação das funções do AI.
H. A sentença recorrida enferma de manifesto erro de julgamento o qual deverá ser reparado por este Tribunal da relação, revogando a sentença proferida. Desde logo, porque o AI não é parte legítima neste incidente para prestação de caução, em virtude de não estar já em funções à data em que foi requerido o incidente, nem, por maioria de razão, à data em que ocorreu a citação para vir deduzir oposição, ou seja, em 13 de junho de 2013. Pelo que, a notificação dirigida ao AI, para vir impugnar o pedido de caução, deve ser considerada totalmente ineficaz.
I. Também a Massa Insolvente já se encontrava extinta e sem quaisquer meios para poder, sequer, acautelar o pedido de caução, facto que era e é do conhecimento do Tribunal a quo, que ao decidir como decidiu manifestamente não acautelou o interesse de nenhuma das partes intervenientes. Não faz qualquer sentido a decisão proferida ao determinar que "deve o Sr. Administrador de insolvência prestar caução nos termos do disposto no artigo 219.º do CIRE", tendo este cessado todas as suas funções de AI e encontrando-se totalmente desprovido dos poderes e dos meios para poder dar execução a tal decisão.
J. Forçoso é concluir que o incidente para prestação de caução, apresentado em juízo em 28 de Maio de 2013, contra o ora recorrente "E…, na qualidade de Administrador de Insolvência no processo de insolvência 106/11.0TBAMM em que foi declarada insolvente a Ré D…”, devia ter determinado a absolvição da instância por ilegitimidade passiva do demandado. Se, à data de apresentação do incidente já o AI tinha cessado as suas funções e a massa insolvente extinta, em bom rigor o AI já nem sequer podia ter sido destinatário da notificação para deduzir oposição ao incidente, concluindo-se que nenhum interesse direto tinha em contradizer o pleito. (vd. art. 30º, n.º 1, 2ª parte do CPC).
K. A sentença recorrida também não apreciou bem a própria questão da competência material para a decisão do pretendido incidente de prestação de caução. É que, atendendo ao disposto no então artigo 990.º do CPC (atual art. 915.º), tal requerimento devia ter sido deduzido no próprio processo de Ação Ordinária, em curso com o n.º 95/08.9 TBAMM – Secção única do Tribunal de Armamar ou no Recurso excecional de Revista admitido pelo STJ, com eventual apensação deste aos autos de insolvência.
L. Está, pois, a sentença recorrida ferida de manifesto erro de apreciação dos pressupostos processuais para o conhecimento do pedido formulado pela Autora, pelo que devia, isso sim, ter absolvido da instância, nos termos e com o fundamento constante do artigo 278.º, alínea d) do CPC ou, artigo 288.º do CPC na versão anteriormente em vigor. Igual conclusão se extrai do disposto no artigo 233.º, n.º 1, alínea b), confrontado com o disposto no art. 230.º, n.º 1 alínea b), do CIRE.
M. De tudo isto a M. Juiz do processo tem conhecimento, pelo que não pode dar como provados factos que colidam com a verdade factual constante dos próprios autos de insolvência, bem assim como não pode decidir o incidente ignorando as consequências das decisões de mérito já proferidas no processo principal. Deste modo, é de concluir que a sentença proferida padece de manifesto erro de julgamento, pelo que deve ser revogada.
N. Por fim, a sentença recorrida viola o disposto no artigo 219.º do CIRE, que invoca como fundamento para o teor da decisão, porquanto tal normativo prevê a salvaguarda de dívidas litigiosas da Massa. Ora, o alegado crédito subjacente ao pedido de caução não pode ser considerado como uma dívida da massa insolvente, dado que não foi reclamado, ainda que sob condição suspensiva e/ou resolutiva, como obriga o CIRE, nos artigos 128.º, n.ºs 1 e 3 e artigo 90.º do CIRE, já supra invocados.
O. Acresce que a decisão proferida violou o disposto nos artigos 128, n.ºs 1 e 3 do CIRE, os quais estabelecem a obrigação dos credores reclamarem os seus créditos, sendo que, mesmo que estes se encontrem reconhecidos por decisão definitiva (o que não é o caso) “o credor não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.” Os requerentes B… e outro não reclamaram o seu crédito em tempo, razão pela qual este não se encontra reconhecido sequer condicionalmente. E a circunstância de não ter sido apresentada impugnação dos factos não desobriga o Tribunal da necessidade de verificação se tal crédito estava ou não reconhecido nos autos, ou pelo menos, se foi reclamado em tempo nos autos de insolvência. Pelo que, também nesta parte a sentença recorrida decidiu com manifesto erro de julgamento da matéria de direito.
P. Igual conclusão se extrai do disposto no artigo 50.º do CIRE. Resultando, ainda, do disposto no artigo 90.º do CIRE que “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”. Sucede que os recorridos vieram requerer, de forma totalmente extemporânea, a prestação de caução, por incidente no processo de insolvência, após o seu encerramento. A sentença recorrida ao decidir como decidiu violou o disposto nos artigos 128.º, 50.º, 90.º, 219.º, e 233.º, n.º 1 alínea b), todos do CIRE, pelo que também por isso deve ser revogada.
Termina afirmando que deve ser considerado totalmente procedente o presente recurso e revogada a sentença recorrida.
2.2 Os requerentes vieram responder, concluindo que a nulidade e o manifesto erro de julgamento, invocados pelo recorrente, devem ser julgados improcedentes.
2.3 A Sr.ª Juíza que proferiu a decisão que é objecto do recurso pronunciou-se nos termos do artigo 617.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção actualmente vigente, resultante da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, afirmando que a sentença recorrida não padece da invocada nulidade por omissão de pronúncia, prevista na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º.
3. Colhidos os vistos legais e na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pelo apelante definem a matéria que é objecto de recurso e que cabe aqui precisar, traduzindo-se nas seguintes questões:
● Determinar se a decisão recorrida está ferida de nulidade.
● A pretensa ilegitimidade passiva do demandado/recorrente.
● A alegada incompetência material para a apreciação do incidente de prestação de caução.
● A falta de verificação dos pressupostos em que assenta a pretensão dos requerentes, com alegada violação, na decisão recorrida, do disposto nos artigos 128.º, 50.º, 90.º, 219.º e 233.º, n.º 1 alínea b), todos do CIRE.
II)
Fundamentação
1. Com relevância, importa considerar os seguintes factos que resultam do acordo das partes e dos documentos que integram os autos:
a) Os requerentes intentaram no Tribunal Judicial da comarca de Armamar uma acção declarativa com processo ordinário, que corre seus termos sob o n.º 95/08.9TBAMM, contra D…, peticionando a condenação desta a pagar-lhes, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 237.607,00 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano contados desde a citação até integral pagamento, reportando-se a factos ocorridos em 2004 e que os requerentes consideram configurar actuação negligente da ré.
b) Tal acção encontrava-se, em 28 de Maio de 2013 (data em que foi instaurado o presente procedimento de prestação de caução), no Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista excepcional, admitido por decisão de 24 de Abril de 2013, conforme teor de fls. 10 verso a 15 verso.
c) Na pendência daquela acção ordinária n.º 95/08.9TBAMM foi instaurado o processo de insolvência n.º 106/11.0TBAMM, sendo insolvente o aludido D….
d) Já em fase de recurso, e para prosseguir os ulteriores termos da acção, a massa insolvente, através do Sr. Administrador da Insolvência – E… – mandatou advogada para a representar naquela acção (acção ordinária n.º 95/08.9TBAMM).
e) No âmbito do processo de insolvência n.º 106/11.0TBAMM, em 14 de Março de 2013, foi proferida sentença que, nos termos do artigo 214.º do CIRE, homologou o plano de insolvência, com restrição quanto a créditos da titularidade da Fazenda Nacional ou Segurança Social, a qual transitou em julgado em 2 de Abril de 2013, nos termos documentados a fls. 50 e 51 e 52 verso.
f) Em 3 de Maio de 2013 foi proferida decisão que:
- Tendo em conta que “transitou em julgado a decisão de homologação do plano de insolvência que comporta um saneamento por transmissão”, declarou encerrado o processo de insolvência, nos termos do disposto no artigo 230.º, n.º 1, alínea b), do CIRE;
- E que, “em face da decisão de encerramento proferida e porquanto o plano da insolvência não atribui quaisquer funções ao Ex.mo AI, nos termos do artigo 233.º, n.º 1, b), do CIRE”, declarou cessadas as atribuições do administrador de insolvência nos aludidos autos, “sem prejuízo do dever de apresentação de contas” – teor de fls. 52.
g) Esta decisão foi notificada a todos os mandatários constituídos no âmbito do aludido processo de insolvência, por ofício expedido em 6 de Maio de 2013 (teor de fls. 79 a 82).
h) Em 28 de Maio de 2013, tendo tomado conhecimento da prolação da aludida decisão de encerramento do processo de insolvência, os requerentes, por apenso a este processo de insolvência e invocando o disposto nos artigos 219.º do CIRE e 981.º e seguintes do Código de Processo Civil, vieram instaurar o presente procedimento, requerendo contra E…, na qualidade de Administrador de Insolvência no âmbito do aludido processo de insolvência, a prestação de caução para garantia da quantia de 237.607,00 euros e juros à taxa legal de 4% ao ano contados desde a citação relativamente à dívida litigiosa da insolvente D…, na aludida acção n.º 95/08.9TBAMM.
i) Os requerentes não formularam reclamação de créditos no âmbito do processo de insolvência.
2. A alegada nulidade da decisão recorrida.
Pretende o recorrente que a decisão recorrida está ferida de nulidade, decorrente de omissão de pronúncia, invocando para o efeito o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na redacção aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
É pacífico que a omissão de pronúncia apenas se verifica se o juiz não considerou e decidiu as questões que concretamente lhe foram colocadas, questões em sentido técnico, que o tribunal tenha o dever de conhecer para a correcta decisão da causa e de que não haja conhecido. Já não ocorre se o juiz, conhecendo das questões postas ao tribunal, não abordou (todos) os argumentos das partes que sustentavam tais questões, ou se errou na análise feita.
No ensinamento ainda actual de Alberto dos Reis, “(…) são na verdade coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão" (“Código de Processo Civil Anotado”, volume V, página 143).
Para sustentar a arguição de nulidade, o recorrente alega que a sentença recorrida, tendo sido proferida num apenso ao processo de insolvência, ignorou toda a verdade material e substantiva constante do processo principal e não se pronunciou sobre questões/pressupostos essenciais para a decisão sobre a requerida prestação de caução.
Pretende que, neste âmbito, a sentença recorrida não considerou as decisões proferidas no processo de insolvência e, por essa via, a ilegitimidade do recorrente resultante do facto de já ter cessado funções, a incompetência material do tribunal, no pressuposto de que o incidente em questão devia ter sido suscitado no próprio processo n.º 95/08.9TBAMM e não no processo de insolvência, bem como a falta de verificação dos pressupostos para aplicação do disposto no artigo 219.º do CIRE.
A leitura da sentença recorrida evidencia que foi aí afirmada a competência do tribunal e a verificação de todos os pressupostos processuais; na mesma peça e depois de se julgarem provados todos os factos alegados na petição, por confissão do réu e em resultado da inexistência de contestação, ainda que sem transcrição explícita de tais factos, julgou-se procedente a pretensão dos requerentes, por se considerar que sobre o Sr. Administrador de Insolvência recaía a obrigação de prestar caução, nos termos do disposto no artigo 219.º do CIRE, o que tem implícito a verificação dos pressupostos para a aplicação desta disposição legal.
Em tais circunstâncias, não opera a pretendida nulidade, dado que não se pode afirmar a omissão de pronúncia (o tribunal afirmou, na parte que aqui interessa, a legitimidade do réu e a sua competência material, bem como a verificação dos pressupostos do deferimento da pretensão formulada pelos requerentes); a omissão não decorre do facto de ter sido feita na sentença a apreciação destas questões de forma sumária e de, eventualmente, tal apreciação não merecer a aceitação da recorrente, em termos que entende consubstanciarem um manifesto erro de julgamento.
Assim, o recurso improcede nesta parte.
3. A pretensa ilegitimidade passiva do demandado/recorrente.
A este propósito, o recorrente alega que não é parte legítima neste incidente para prestação de caução, em virtude de não estar já em funções à data em que foi requerido, nem, por maioria de razão, à data em que ocorreu a notificação para vir deduzir oposição, ou seja, em 13 de Junho de 2013, sendo esta notificação totalmente ineficaz; também a massa insolvente já se encontrava extinta e sem quaisquer meios para poder, sequer, acautelar o pedido de caução; o recorrente não tinha qualquer interesse directo em contradizer o pleito.
Nos termos do artigo 30.º do Código de Processo Civil, o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer a pretensão do autor.
Nos presentes autos está em causa a prestação de caução por parte do réu, enquanto administrador da insolvência de D…, nos termos do disposto no artigo 219.º do CIRE, estabelecendo esta norma que, antes do encerramento do processo que decorra da aprovação do plano de insolvência, o administrador da insolvência procede ao pagamento das dívidas da massa insolvente, acautelando os eventuais direitos dos credores, relativamente às dívidas litigiosas, por meio de caução.
Neste enquadramento legal e perante a pretensão dos requerentes, é incontroversa a legitimidade do recorrente, o seu interesse em contradizer a pretensão formulada, enquanto administrador da insolvência. O facto de, alegadamente, já ter então cessado tais funções, perante o encerramento do processo [artigo 233.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, confrontado com o disposto no artigo 230.º, n.º 1 alínea b), do mesmo diploma], não lhe retira a legitimidade, contendendo antes com a tempestividade da pretensão deduzida, a discussão sobre a procedência ou improcedência da pretensão formulada, portanto, com a apreciação de mérito e não no campo da verificação do pressuposto processual de legitimidade.
Improcede, por isso, a alegada ilegitimidade.
4. A alegada incompetência material para a apreciação do incidente de prestação de caução.
O recorrente afirma a este propósito que a sentença recorrida não apreciou bem a questão da competência material para a decisão do pretendido incidente de prestação de caução dado que, atendendo ao disposto no então artigo 990.º do Código de Processo Civil (actual artigo 915.º), tal requerimento devia ter sido deduzido no próprio processo de acção ordinária, em curso com o n.º 95/08.9TBAMM – Secção única do Tribunal de Armamar ou no Recurso excepcional de Revista admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça, com eventual apensação deste aos autos de insolvência.
Nos termos do artigo 990.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, ainda vigente na data em que foi requerida a prestação de caução, a disciplina relativa ao processo especial de prestação de caução é também aplicável quando numa causa pendente haja fundamento para uma das partes prestar caução a favor da outra, mas a requerida é notificada, em vez de ser citada, e o incidente é processado por apenso. Esta regra mantém-se na redacção actual (artigo 915.º do Código de Processo Civil).
A pretensão dos requerentes é sustentada numa norma específica, no caso, o artigo 219.º do CIRE, estabelecendo esta norma, sob a epígrafe “dívidas da massa insolvente” e na parte que aqui interessa que, antes do encerramento do processo que decorra da aprovação do plano de insolvência, o administrador da insolvência acautela os eventuais direitos dos credores, relativamente às dívidas litigiosas da massa insolvente, por meio de caução.
No entendimento de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (“Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª edição, Quid Juris, página 846, em anotação ao artigo 219.º), “conquanto a lei não o diga expressamente, a solução ajustada é a da prestação de caução ser processada como apenso do próprio processo de insolvência, pois que, por um lado, é essa a melhor forma de assegurar, ex officio, o cumprimento da exigência legal, mas, além disso, é no processo de insolvência que, para o efeito, relevantemente se manifesta a litigiosidade e é aí também que melhor se pode decidir o valor da caução, havendo controvérsia”.
Não se vê que haja razão válida para contrariar este entendimento.
É certo que a acção instaurada pelos requerentes não corre no âmbito do processo de insolvência, como apenso do mesmo e que lhes era sempre facultada a possibilidade de instaurarem procedimento cautelar que visasse a salvaguarda do direito que invocam nesse processo, seguindo as regras gerais dos artigos 381.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Contudo, no caso presente, é invocado o específico procedimento previsto no artigo 219.º do CIRE, pelo que o que importa averiguar é a verificação dos respectivos pressupostos, de modo a poder afirmar-se a sua procedência ou improcedência, pelo que também aqui improcede a razão invocada pelo recorrente.
5. A falta de verificação dos pressupostos em que assenta a pretensão dos requerentes, com alegada violação, na decisão recorrida, do disposto nos artigos 128.º, 50.º, 90.º, 219.º e 233.º, n.º 1 alínea b), todos do CIRE.
O recorrente pretende a este propósito que o alegado crédito subjacente ao pedido de caução não pode ser considerado como uma dívida da massa insolvente, dado que não foi reclamado, ainda que sob condição suspensiva e/ou resolutiva, como obriga o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; os recorridos vieram requerer, de forma totalmente extemporânea, a prestação de caução, por incidente no processo de insolvência, após o seu encerramento, ignorando a sentença recorrida os efeitos deste.
5.1 Na sentença que declarar a insolvência e entre outras exigências legalmente estabelecidas, o juiz designa prazo, até 30 dias, para a reclamação de créditos; dentro deste prazo, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, endereçado ao administrador da insolvência e acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham; a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento; nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento; o incidente culmina com a prolação de sentença de verificação e graduação dos créditos, na certeza de que o pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado – artigos 36.º, 128.º. 129.º, 140.º e 173.º do CIRE.
Mesmo findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor – artigo 146.º do mesmo diploma.
Nos termos do artigo 90.º, os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do CIRE, durante a pendência do processo de insolvência. “Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo”, enquadrando a aludida norma “um verdadeiros ónus posto a cargo dos credores” (Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, página 459, em anotação ao artigo 90.º).
Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento quando se verifiquem os pressupostos legalmente exigidos pelo artigo 230.º do CIRE; na parte que aqui interessa, após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste [n.º 1, alínea b), da aludida norma].
Encerrado o processo, cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte; cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com excepção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência; os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência; os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos – artigo 233.º do CIRE.
Antes do encerramento do processo que decorra da aprovação do plano de insolvência, o administrador da insolvência procede ao pagamento das dívidas da massa insolvente; relativamente às dívidas litigiosas, o administrador da insolvência acautela os eventuais direitos dos credores por meio de caução, prestada nos termos do Código de Processo Civil – artigo 219.º do CIRE. A epígrafe desta norma, “dívidas da massa insolvente”, remete para o artigo 51.º do mesmo diploma, onde se qualificam como tal, nomeadamente, as custas do processo de insolvência, as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções, bem como dívidas resultantes de contrato bilateral ou constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes. Com estas dívidas, a que se reporta também o artigo 172.º do CIRE, não se confundem as dívidas da insolvência, a que se respeitam, nomeadamente, os artigos 47.º, 90.º, 128.º, 129.º, 140.º e 173.º do mesmo diploma legal.
“O CIRE (…) veio introduzir um regime em que o plano de insolvência constitui simplesmente um meio de satisfação dos interesses dos credores, alternativo à liquidação universal do património do devedor segundo o modelo supletivo desenhado na lei, e por eles decidido na assembleia, necessariamente após a prévia declaração de insolvência por sentença transitada em julgado (ex vi dos artigos 192.º e 209.º, n.º 2).
Paralelamente, institucionalizou o conceito de dívida sobre a massa insolvente, por oposição às dívidas sobre a insolvência, conferindo àquelas uma amplitude muito significativa e estabelecendo a sua prevalência sobre estas, com a consequência de deverem ser pagas prioritariamente” – Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, antes citado, página 845, em anotação ao artigo 219.º.
5.2 Confrontando o quando legal que se deixa sumariamente enunciado com a situação dos autos, logo avulta a procedência da pretensão do recorrente.
Na verdade, o crédito que os requerentes invocam sobre a insolvente, no âmbito da responsabilidade civil por negligência e com referência a factos ocorridos em 2004, não configura dívida da massa falida, seja porque não integra a definição enunciada no artigo 51.º do CIRE, seja porque tal qualificação não resulta de outra norma legal.
Por outro lado, a pretensão formulada mostra-se intempestiva, na medida em que, exigindo a subsistência do processo, foi neste caso requerida depois do encerramento do mesmo e quando já decorrera o prazo de quinze dias sobre a data de notificação do despacho que declarou encerrado o processo de insolvência e cessadas as atribuições do respectivo administrador de insolvência – artigos 219.º e 90.º do CIRE e 685.º, n.º 1 e 691.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, então vigente. Não prejudica o encerramento do processo o facto de incidir sobre o administrador de insolvência, apesar de declarada a cessação das respectivas funções, a obrigação de prestação de contas.
Mesmo que se entenda que o artigo 219.º do CIRE não se restringe às dívidas da massa insolvente com o alcance que se deixou enunciado, reportando-se à generalidade dos débito da insolvente, sempre a aplicação da norma se mostrava prejudicada, na medida em que o alegado crédito sobre a insolvente não foi objecto de reclamação no âmbito do processo de insolvência, como era legalmente exigido, de acordo com o quadro legal que se deixou enunciado, seja no momento próprio de reclamação de créditos, seja pelo procedimento previsto no artigo 146.º do CIRE.
Pode questionar-se o conhecimento do administrador de insolvência relativamente à pendência da acção declarativa com processo ordinário, com o n.º 95/08.9TBAMM (ainda que sem se conhecer a data em que tal ocorreu, sabe-se que, já em fase de recurso, e para prosseguir os ulteriores termos da acção, a massa insolvente, através do respectivo administrador, mandatou advogada para a representar naquela acção) e o facto de não ter observado o disposto no n.º 1 do artigo 129.º do CIRE. Impunha-se no entanto que os requerentes, em tempo oportuno e em sede própria, no âmbito do próprio processo de insolvência, suscitassem essa alegada omissão.
Na ponderação dos elementos enunciados, em prejuízo da decisão recorrida, impõe-se a procedência do recurso.
Esta conclusão não prejudica eventuais procedimentos cautelares, no âmbito da acção n.º 95/08.9TBAMM e desde que verificados os necessários pressupostos.
III)
Decisão:
Pelas razões que se deixam expostas e dando provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e julga-se improcedente a pretensão dos requerentes, no sentido de se determinar a prestação de caução nos termos previstos pelo artigo 219.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelo administrador de insolvência.
Custas a cargo dos requerentes, sem prejuízo do apoio judiciário.
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Porto, 17 do Fevereiro de 2014.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Ana Paula Carvalho