Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0650132
Nº Convencional: JTRP00038887
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: DESPEJO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
CADUCIDADE
DEPÓSITO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP200602200650132
Data do Acordão: 02/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Depositando o inquilino, demandado numa acção de despejo por falta de pagamento de rendas, as devidas até contestação acrescidas da indemnização legal, mas fazendo-o, não nos termos previstos no RAU, mas antes como depósito autónomo, e não questionando o locador, nem o valor das rendas depositadas, nem o da indemnização, nem pretendendo impugnar o depósito, mas insistindo no “despejo” apenas porque, formalmente, o depósito não obedeceu aos preceitos daquele diploma, pretende exercer um direito com fundamento estritamente formal o que consubstancia abuso do direito na vertente processual, já que almeja, pela via adjectiva, alcançar uma pretensão que, em bom rigor, foi satisfeita pelo locatário, nenhum prejuízo relevante lhe advindo do modo como foi feito o depósito, que fez caducar o direito exercido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B.........., cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de C.........., intentou em 4.3.2005, pelo Tribunal Judicial da Comarca de .......... – .º Juízo Cível – acção declarativa de condenação com processo ordinário (despejo) contra:

“D.........., Ldª”

Alegando:

- a Autora é cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de seu falecido marido C.........., ocorrido em 22.01.2005;

- do acervo hereditário faz parte um prédio urbano destinado à indústria de mobiliário, sito na actual Rua .........., n°.., na cidade de .........., concelho de .......... descrito na Conservatória do Registo Predial de .......... com o n° 16.304 e inscrito na matriz urbana sob o artigo 781º;

- por escritura pública realizada em 02.05.1977, foi cedido à Réu o gozo do referido imóvel pelo prazo de cinco anos para fabrico de mobiliário;

- mediante o pagamento de uma renda que actualmente se cifra em € 1.150,00, passível de retenção de IRS nos termos legais;

- a Ré não pagou as rendas referentes aos meses de Agosto de 2004 até à presente data;

- para pagamento da renda do mês de Agosto de 2004 e juros de mora, passou dois cheques no montante de € 500,00 cada, com vencimento em 20.02.2005 e 12.03.2005;

- apresentado o primeiro cheque a pagamento no Banco sacado veio o mesmo a ser devolvido com indicação de falta de provisão;

- encontra-se assim em dívida a quantia de € 8.050,00 de rendas vencidas e não pagas;

- a esta quantia devem ser acrescidos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde o vencimento de cada uma das rendas até efectivo e integral pagamento.

Pediu que na procedência da acção:

a) se decrete a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.

b) se condene a Ré a entregar à Autora livre de pessoas e bens o arrendado.

c) se condene a Ré a pagar à Autora a quantia de € 8.050,00 a título de rendas vencidas.

d) se condene a Ré a pagar à Autora as rendas que se vencerem até efectiva e total entrega do imóvel arrendado.

e) se condene a Ré a pagar à Autora juros de mora de 4% ao ano, desde o vencimento de cada uma das rendas até efectivo e integral pagamento.

A Ré contestou alegando, no essencial, ter já depositado as rendas em dívida acrescida da indemnização legal, através da guia de depósito autónomo nº .........., no valor de € 15.525,00 à ordem do Juiz do processo;

- tal valor refere-se:

a) 9.775,00€, referente à renda devida pelos meses de Agosto de 2004 a Maio de 2005 após efectivação de retenção na fonte, o que fez por imposição legal conforme previsto no art°98 e 101 do Código do IRS;

a.a) A taxa de IRS aplicada sobre o valor pago é de 15%.

b) € 5.750,06, quantia que é referente á indemnização devida para fazer caducar o direito à resolução do contrato por falta de pagamento das rendas, conforme art°1048 do Código Civil.

- o depósito foi efectuado e junto aos autos sob a forma de depósito autónomo conforme o previsto no art°124°, nº3, do Código das Custas Judiciais.

- assim, nos termos do art.22° do RAU e art.1048º do Código Civil e com o pagamento atrás demonstrado caduca o direito da Autora à resolução do contrato de arrendamento outorgado através de escritura pública lavrada no Cartório Notarial de .......... em 02.05.1977.

Termos em que deve a presente acção declarativa sob a forma de ordinária ser julgada totalmente improcedente, por caducidade do direito à resolução do contrato de arrendamento.

A Autora replicou, considerando que o depósito feito pela Ré não era liberatório, porquanto não obedeceu ao regime específico previsto no RAU – arts. 23º e 24º – não sendo aplicável a tal tipo de depósito o art. 124º,nº3, do CCJ.

A fls. 52 a Ré através de depósito autónomo depositou a renda de mês de Junho de 2005 – € 977,50.

A fls. 57 a 60, a Autora pelas razões invocadas na réplica considerou que o depósito não tinha qualquer eficácia requerendo o despejo imediato nos termos do art. 58º do RAU.

A Ré treplicou, para reafirmar a validade do depósito, tanto mais que para o fazer, nos termos do RAU, teria que saber a data do óbito do marido da Autora a identificação fiscal da herança e a identificação dos demais herdeiros.

Aduziu, ainda, que a atitude da Autora não é compaginável com actuação de boa-fé, porquanto apenas se pretende prevalecer de uma irregularidade formal, já que não questiona o montante, nem do depósito das rendas, nem da indemnização.
***

De fls. 78 a 83 foi proferido despacho saneador-sentença que julgou procedente a acção por ter considerado que o depósito não foi feito nos termos previstos no RAU – arts. 22º e seguintes – e, consequentemente:

- Decretou a resolução do contrato de arrendamento;

- Condenou a Ré a entregar o arrendado à autora, livre e desocupado de pessoas e bens;

- Condenou a Ré a pagar à autora a quantia de 8.050 EUR, a título de rendas vencidas até Fevereiro de 2005 e ainda a pagar-lhe o valor correspondente às rendas vencidas desde Março de 2005 e vincendas até efectiva entrega do locado, no montante mensal de € 1.150,00;

- Condenou a Ré a pagar juros de mora, à taxa legal anual de 4%, calculados sobre cada uma das quantias mensais de € 1.150 EUR, contados desde o primeiro dia de cada um dos meses de Agosto de 2004 a Fevereiro de 2005;

- Condenou a Ré a pagar juros à mesma taxa legal anual, calculados sobre idêntica quantia de € 1.150,00 mensais e contados desde o último dia de cada mês em que se mantiver a ocupação do arrendado, desde Março de 2003 e até efectivo e integral pagamento.
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Seguiu-se ainda decisão – fls. 113 a 115 – sobre o incidente do despejo imediato julgado improcedente, decisão que foi objecto de recurso de agravo da Autora, que subiu em separado – fls. 242 e 244.
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Inconformada com despacho saneador sentença a Ré recorreu, e nas alegações apresentadas, formulou as seguintes conclusões:

A) Vem a Apelante interpor recurso da douta sentença através da qual o Tribunal a quo decretou a resolução do contrato de arrendamento entre ambas as partes, uma vez que com a mesma não se conforma.

B) A acção declarativa foi intentada por B.........., na sua qualidade de viúva e cabeça-de-casal que não foi demonstrada nos autos à margem referenciados.

C) De acordo com o preceituado no art. 26 do Código de Processo Civil, autor é quem tem interesse directo em demandar.

D) In casu, a qualidade de Autor devia ser ter sido assumida pela herança indivisa aberta por óbito de C.........., assumindo esta a personalidade judiciária como património autónomo.

E) A Apelada B.......... não poderia fazer por si própria, porquanto não foi Outorgante no contrato de arrendamento ab initio celebrado entre o falecido e a Apelante e, como tal, não o poderia ter feito, como fez!

F) A questão da legitimidade não foi levantada pela Ré em sede de contestação, uma vez que esta, excepção dilatória, sempre seria de conhecimento oficioso, nos termos do art. 493°/494°, conjugados com o art. 495º Código de Processo Civil.

G) Assim, atendo o art. 26°, 494º e 495º, todos do Código de Processo Civil e por falta de prova da legitimidade da Autora deverá ser decretada por V. Ex.as a absolvição da instância.

H) Entendeu o Tribunal “a quo” que a ora Apelante não logrou obter a caducidade do direito à resolução do contrato de arrendamento, atento o petitório da Autora.

I) Com o respeito que é devido, a Apelante discorda com tal posição, porquanto a Lei confere ao arrendatário a possibilidade de fazer caducar o direito de resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio com a admissão do depósito do valor das rendas em dívida, acrescido de indemnização de 50 % das mesmas, a efectuar no prazo da contestação.

J) Nos autos aqui em questão, o valor das rendas em atraso e a respectiva indemnização foi efectivamente depositado, cumprindo o prazo legal para o fazer.

K) Porém, entendeu o Tribunal “a quo” que as formalidades legais não foram observadas, tendo em atenção que o depósito das rendas foi realizado pela Ré por meio de depósito autónomo conforme o previsto e permitido pelo art. 124° C.C.J. e não por depósito na Caixa Geral de Depósitos em impresso próprio e conforme o previsto no art. 23º do RAU.

L) A Apelante efectuou depósito autónomo no Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça no montante devido para o cumprimento do art. 1048° do Código Civil, à ordem dos presentes autos, sendo certo que o valor não foi impugnado pela Autora, porque diga-se, a Ré não se reteve um cêntimo do valor necessário para obstar à resolução do contrato.

M) Com o depósito das rendas e da respectiva indemnização dentro do prazo legal, aquele é sempre liberatório, fazendo subsistir o direito de arrendamento, cfr. o Ac. Relação do Porto de 24/10/89, CJ. XIV, 4, 223.

N) Não restam dúvidas que esse valor encontra-se depositado a favor da Apelada, com o intuito de fazer caducar o direito de resolução do contrato de arrendamento que deve ser considerado liberatório.

O) Ao não considerá-lo perfeitamente válido e liberatório, está a Apelada a agir de Má Fé e com manifesto Abuso de Direito.

P) In casu, existe um desrespeito dos limites axiológicos-materiais do direito de que se arroga a Apelada, uma vez que não considera válido um depósito que tem todos os elementos materiais para o ser.

Q) Assim, o exercício do direito que invoca a ora Apelada, bem como a sua conduta é geradora de Abuso de Direito, nos termos do art. 334º do Código Civil, que deve ser declarada pelo Venerando Tribunal.

R) No cumprimento das suas obrigações, bem como no exercício do direito correspondente, devem as partes agir de Boa Fé, o que aconteceu no caso da Apelante.

S) É evidente que apesar de não ter procedido ao depósito nos termos e com a formalidade a que se refere o art. 27 do RAU, o resultado prático seria sempre o mesmo, estando assegurados os elementos essenciais e o efeito útil para obstar à procedência da acção.

T) Considerou o Tribunal “a quo” que os dois depósitos não se podem confundir, porquanto no depósito realizado ao abrigo do art. 23° do RAU o seu levantamento é imediato.

U) Porém, no caso do depósito autónomo realizado nos termos do art. 124º do CCJ normativo que também prevê o depósito de rendas também este está à disposição de satisfazer o interesse do senhorio, sendo certo que bastaria o senhorio apresentar o seu NIB aos autos e a transferência seria imediata.

V) E visto o alegado, seria o depósito autónomo mais célere, uma vez que não necessitaria de se deslocar à dependência da Caixa Geral de Depósitos para receber o montante a que tem direito.

W) A “ratio legis” deste regime é facultar aos senhorios a possibilidade de obter dos arrendatários as rendas em dívida.

X) Como o valor devido e depositado ainda se encontra nos presentes autos, nada deve obstar à caducidade do direito à resolução do contrato de arrendamento.

Y) Entendeu ainda a M.ma Juiz “a quo” que o depósito autónomo efectuado nos presentes autos seria um pagamento a terceiro, e por via disso não liberatório.

Z) Pelo contrário, a Apelante entende que mesmo que assim se considere, sempre seria de aplicar-se o art. 770º alínea d) Código de Processo Civil, por não se poder deixar de considerar tal depósito como feito à Apelada e à ordem dos presentes autos, podendo esta dele aproveitar-se.

AA) Ademais, certo é que o processo civil encontra-se “ao serviço da justiça material, com a economia máxima de meios e de tempos”, desprendido dos vícios do formalismos legal que obstam à realização da justiça material (in Ac. STJ 27.05.99, disponível em www.dgsi.pt).

BB) Deste modo, deverá ser alterado a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” em conformidade com o ora alegado, o que será mais justo e equitativo.

CC) Ao decidir inversamente, o Juiz “a quo” violou os princípios subjacentes aos artigos 762°, art. 802°, nº2, ambos do Código Civil e art. 124° CCJ.

Termos em que, concedendo provimento ao presente recurso, devem decidir em conformidade com o ora alegado, e em consequência ser declarada:

- a absolvição da instância, nos termos do art. 494º do Código de Processo Civil e, caso assim não se entenda, sempre deve ser declarada improcedente a presente acção, por caducidade do direito de resolução da Autora, declarando ainda o Abuso de Direito da Apelada, desta forma decidindo será feita, Inteira Justiça.

A Autora contra-alegou batendo-se pela confirmação do Julgado.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta a seguinte matéria de facto:

1) - A Autora é cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de seu falecido marido C.........., ocorrido em 22.01.2005;

2) - Do acervo hereditário faz parte um prédio urbano destinado à indústria de mobiliário, sito na actual Rua .........., n°.., na cidade de .........., concelho de .......... descrito na Conservatória do Registo Predial de .......... com o n° 16.304 e inscrito na matriz urbana sob o artigo 781º;

3) - Por escritura pública realizada em 02.05.1977, foi cedido à Réu o gozo do referido imóvel pelo prazo de cinco anos para fabrico de mobiliário – doc. de fls.9 a 14.

4) - Mediante o pagamento de uma renda que, actualmente, se cifra em € 1.150,00, passível de retenção de IRS nos termos legais;

5) - A Ré não pagou as rendas referentes aos meses de Agosto de 2004 até à data da propositura da acção.

6) - Para pagamento da renda do mês de Agosto de 2004 e juros de mora, passou dois cheques no montante de € 500,00 cada, com vencimento em 20.02.2005 e 12.03.2005;

7) – Com a contestação apresentada em juízo no dia 24.5.2005 a Ré confessando-se devedora das rendas devidas dos meses de Agosto de 2004 a Maio de 2005, depositou em depósito autónomo – via Multibanco – a quantia de € 15.525,00 – doc. de fls. 33.

8) Tal valor refere-se a:

a) - € 9.775,00, à renda devida pelos meses de Agosto de 2004 a Maio de 2005, após efectivação de retenção na fonte, o que fez por imposição legal conforme previsto no Código do IRS, tendo considerado a taxa de 15%.

b) - € 5.750,06, como indemnização devida para fazer caducar o direito à resolução do contrato por falta de pagamento das rendas, conforme art°1048º do Código Civil.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se a Autora é parte legítima;

- se o depósito feito pela Ré/arrendatária pode ser considerado liberatório, para almejar a caducidade do direito do senhorio de pedir a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas;

- se a Autora, ao pretender a invalidade de tal depósito, actua com abuso do direito.

Vejamos:

A acção tem como causa de pedir a falta de pagamento de rendas no contexto de um contrato de arrendamento para fins industriais em que foi senhorio C.......... e é arrendatária a Ré.

A acção foi intentada por B.........., invocando a sua qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por morte daquele C.........., que teria ocorrido em 22.1.2005.

A Ré, nas suas alegações de recurso, suscita pela primeira vez no processo a ilegitimidade da Autora, alegando que esta não demonstra a qualidade que invoca e que, quem deveria figurar na posição de demandante era a herança ilíquida e indivisa do falecido C.......... .

Sendo a ilegitimidade uma excepção dilatória de conhecimento oficioso – arts. 494º e), 495º e 288º, nº1, d) do Código de Processo Civil – o Tribunal, seja ou não arguida, deve apreciá-la no despacho saneador – art. 510º, nº1, a) do Código de Processo Civil.

Se a pronúncia, no despacho saneador, acerca das excepções que ao Tribunal compete oficiosamente apreciar for genérica, não versando, concretamente, sobre alguma delas, não se forma caso julgado - art. 510º, nº1, a) e nº3 do Código de Processo Civil [Como ensinam Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, págs. 370/371 – “Se, porém, o juiz referir genericamente que determinados pressupostos, dos constantes do art. 494 (por exemplo, a competência, a capacidade, a legitimidade ou os da coligação) ou outros (por exemplo, os que tornam admissível a reconvenção, ou o pedido genérico: respectivamente, arts. 274-2 e 471-1), se verificam, o despacho saneador não constitui, nessa parte, caso julgado formal (art. 672), pelo que continua a ser possível a apreciação duma questão concreta de que resulte que o pressuposto genericamente referido afinal não ocorre ou que há nulidade. Esta doutrina, que decorre do nº3, corresponde à solução da questão, controvertida no direito anterior, de saber se o despacho saneador genérico produzia caso julgado formal quanto à ocorrência dos pressupostos e à inexistência de nulidades, fora do caso da competência em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia, em que a lei era expressa em dizer que assim não era (anterior art. 104-2)…”].

Nos termos do art. 2079º do Código Civil “a administração da herança, até à sua liquidação e partilha compete à cabeça-de-casal”.

Esses poderes coenvolvem actos de administração ordinária, ou seja, de mera conservação e frutificação dos bens administrados, pelo que a cabeça-de-casal pode dar de arrendamento prédios da herança desde que o arrendamento não seja superior a seis anos – art. 1024º, nº1, do Código Civil, assim como tem legitimidade, quer substantiva, quer processual para intentar acções de despejo em caso de violação contratual pelo locatário – cfr. Ac. desta Relação de 22.5.90, in BMJ - 397/562 e da Relação de Évora de 12.6.1997, in BMJ - 468/493.

Se a alegada ilegitimidade advém, na tese da Autora, do facto de não ter documentado a sua invocada qualidade de viúva do senhorio, esse facto – apenas demonstrável por documento – é irrelevante quando a acção não versa sobre questão relacionada com o estado civil, como é o caso.

Ademais, a arguição da recorrente no que respeita à ilegitimidade, é contraditória com a posição que assumiu na contestação, quando no art. 1º, afirma – Aceita-se o alegado pela autora e na qualidade em que o faz na sua douta petição inicial.

Ou seja a Ré aceitou não só estado civil da Autora como a sua qualidade de cabeça-de-casal, pelo que a questão da ilegitimidade agora suscitada tinha sido aceite; de contrário a posição mais lógica teria sido arguir a excepção.

Seja como for a Autora tem legitimidade processual – art. 26º, nº1, 1ª parte, do Código de Processo Civil.

Vejamos a 2ª questão colocada no recurso.

A Ré confessou estar em mora relativamente às rendas vencidas até à data em que apresentou a contestação, assumindo assim estar em violação de uma das obrigações do locatário, qual seja a de pagar a renda – art. 1038º a) do Código Civil e 64º, nº1, a) do RAU.

A Autora, ancorada neste último preceito, recorreu a juízo para obter a resolução do contrato com fundamento na violação daquela obrigação da locatária.

Para paralisar tal direito, pela via da caducidade, o locatário pode, até à contestação da acção de despejo, pagar ou depositar as “somas devidas e a indemnização referida no art. 1041º” – art. 1048º do Código Civil.

Aquele normativo – seu nº1 – confere ao senhorio, em caso de mora do locatário quanto ao pagamento das rendas, o direito de exigir os valores correspondentes, bem como uma indemnização igual a 50%.

Essa caducidade obtém-se pela via do depósito a que alude o art. 22º do RAU, depósito que é feito na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do tribunal da situação do prédio, perante um documento em dois exemplares, assinado pelo arrendatário ou por outrem em seu nome, devendo constar as menções exigidas pelas alíneas a) a e) do nº1 do art. 23º do RAU.

A lei não exige a notificação ao senhorio de tal depósito, mas, na contestação da acção, tem de ser junto um dos exemplares das guias comprovativas da sua realização – art. 24º do RAU.

Tal depósito pode ser impugnado pelo senhorio – art. 26º do citado diploma.

A lei especial, que é o RAU, regula processualmente o regime do depósito nos arts. 27º a 29º.

É assim indiscutível que o arrendatário, pretendendo depositar as rendas em mora e a legal indemnização devida ao senhorio, deve seguir as regras próprias de tal depósito como se acham reguladas no RAU, já que a tramitação imposta visa, também, proporcionar ao credor/senhorio a defesa do seu direito ante o depósito, aceitando-o, impugnando-o, resolvendo o contrato, ou levantando a quantia depositada.

A Ré não procedeu assim.

Depositou tal quantia no Multibanco, seguindo na sua tese, o regime que acha aplicável para os depósitos autónomos, previsto no art. 124º, nº3, do CCJ.

Tal normativo que se insere no “Título VIII – Serviços de Tesouraria – Capítulo I – Movimentação de Receitas”, estatui:

“Sem prejuízo de registo contabilístico autónomo, as custas prováveis, as rendas, as cauções e outras quantias estranhas aos encargos judiciais são depositadas directamente na Caixa Geral de Depósitos ou através de sistema electrónico, a favor do Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, ficando à ordem da secretaria”

A apelante entende que as rendas mencionadas neste normativo podem ser as rendas devidas no contrato de arrendamento.

Mas, com o devido respeito, sem acerto.

Não faria sentido que um diploma especial impusesse um regime legal específico – para depósito das rendas como o RAU estabelece – para no diploma que rege a matéria de custas se estabelecer um regime que pudesse ser usado com a mesma validade jurídica.

Seria incongruente.

Quando a lei alude a “rendas” no citado normativo do CCJ manifestamente não se refere a rendas que o locatário deva depositar no prazo da contestação da acção de despejo para fazer caducar o direito do senhorio a obter a resolução do contrato de arrendamento, por haver, em lei própria, regulamentação para tal depósito.

Concluímos, assim que, sob o ponto de vista formal/processual, a Ré não observou o cumprimento da lei – os normativos do RAU a que aludimos.

Mas será que, atenta a especificidade do caso concreto, deve ser dada estrita relevância a tal omissão para considerar a acção procedente?

A resposta passa pela questão de saber se, no quadro circunstancial envolvente, contemplando a atitude da Ré e os interesses da Autora, será compatível com as regras da boa-fé, maxime, numa perspectiva de abuso do direito, poder a Autora prevalecer-se da irregularidade do depósito para conseguir o despejo.

Vejamos:

Dispõe o art. 334º do Código Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que, na normalidade das situações seria ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.

“O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Ac. do STJ, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, 3, 117.

A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

“Há abuso do direito, segundo a concepção objectiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.
Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, Antunes Varela.

O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, obra citada, pág. 536:

“Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido ”em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

Cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ, de 7.1.93, in BMJ, 423-539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, 19.
No caso em apreço a Autora não põe em causa que o montante depositado com a contestação – rendas e indemnização – [aquelas alvo de retenção de taxa de IRS] – seja o montante devido, como também não manifestou qualquer propósito de impugnar o depósito se ele tivesse sido efectuado nos termos prescritos no RAU.

Objectivamente a Ré, pese embora a irregularidade processual cometida, ao depositar a quantia que, confessadamente, deve à Autora satisfez o direito desta, a sua pretensão substancial, embora tenha actuado um direito que a lei lhe confere, o de obter a caducidade do direito de accionar pela efectivação do depósito das rendas em mora e indemnização legal.

Em que medida está a Autora prejudicada?

Está prejudicada apenas se se considerar que, pela violação formal das regras do depósito, não pode despejar a Ré?

Mas, em tempo em que se pretende que os Tribunais profiram decisões de fundo, deixando de se abrigar em questões adjectivas para realizar o Direito, não deixa de ser chocante a insistência da Autora, pretendendo prevalecer-se de uma irregularidade processual que não afecta o seu direito, pois sempre teria que contar com a possibilidade legal da Ré usar procedimento legal que obstaria ao êxito da sua pretensão que, como se alcança da sua argumentação é o despejo, agora com o fundamento de que o depósito foi feito irregularmente.

Sob o ponto de vista substancial está ao seu alcance arrecadar a quantia depositada, mau grado os termos em que o depósito foi feito, sendo que eventuais despesas para obter a quantia depositada sempre serão da responsabilidade da Ré.

No Preâmbulo do DL.329-A/95, de 12.12, pode ler-se acerca do propósito do legislador da Reforma do Código de Processo Civil:

“[…] Pretende-se prosseguir uma linha de desburocratização e de modernização.
Com vista a melhor atingir a qualidade na prestação de serviços ao cidadão que recorre aos tribunais, esforço esse que passa, nomeadamente, por uma verdadeira simplificação processual.
Visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários.
[…]
Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo.
É, assim, o processo civil um instrumento ou talvez mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos e não uma ciência que olvide esses factos para se assumir apenas como uma teorética de linguagem hermética, inacessível e pouco transparente para os seus destinatários”. (sublinhámos).

Acolher a pretensão da Autora, com o fundamento numa irregularidade processual da Ré, que não contende com a questão substantiva, num quadro em que o seu Direito em nada é prejudicado, já que, repete-se, a Autora não questiona que a Ré depositou o que era devido, em cumprimento da lei substantiva, seria afirmar o primado da forma sobre o fundo ou mérito da pretensão, em clara oposição aos ventos da história que, muito legitimamente, apontam no sentido da Justiça Material e não da Justiça Formal.

Porque assim entendemos, consideramos que da parte da Autora há um abuso do direito, na vertente processual, já que pretende pela via adjectiva, alcançar uma pretensão que, em bom rigor, foi satisfeita pela Ré, nenhum prejuízo relevante lhe advindo do modo como foi feito o depósito que fez caducar o seu Direito.

Esta perspectiva é enquadrável no abuso do direito e, como tal, não deve ser sancionada com decisão favorável.

Menezes Cordeiro na recente obra - “Litigância de Má Fé - Abuso do Direito de Acção e “Culpa in Agendo”, - Almedina 2006 - considera – pág. 92 – que “as acções judiciais intentadas (poderíamos dizer os recursos interpostos, interrogamos nós) em grave desequilíbrio de modo a provocar danos máximos a troco de vantagens mínimas, são abusivas: há abuso do direito”.

E na pág.91:

“O instituto do abuso do direito traduz a aplicação, nas diversas situações jurídicas, do princípio da boa fé.
E o princípio da boa fé equivale à capacidade que o sistema jurídico tem de, mesmo nas decisões mais periféricas, reproduzir os seus valores fundamentais.
A boa fé age através de dois princípios mediantes já expostos: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.
Ambos se concretizam numa constelação de situações típicas, acima ponderadas: desde o venire ao desequilíbrio no exercício”. (sublinhámos).

Pelo quanto expusemos a sentença não pode manter-se.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se o saneador- sentença recorrido e absolvendo-se a Ré dos pedidos.

Custas pela Autora/apelante.

Porto, 20 de Fevereiro de 2006
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale