Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP00036185 | ||
| Relator: | FERNANDO SAMÕES | ||
| Descritores: | TRIBUNAL COMUM TRIBUNAL DE COMÉRCIO COMPETÊNCIA ACÇÃO ESPECIAL REFORMA DOCUMENTO | ||
| Nº do Documento: | RP200402100325614 | ||
| Data do Acordão: | 02/10/2004 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO. | ||
| Decisão: | PROVIDO. | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | É competente o tribunal comum para a acção especial de reforma de documentos, prevista nos artigos 1069 a 1072 do Código de Processo Civil. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório Maria....., residente na Rua....., ....., requereu a resolução do conflito negativo de competência suscitado entre o Mm.º Juiz do 2º Juízo Cível do Tribunal da Comarca do Porto e o Mm.º Juiz do 2º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, alegando que ambos os Magistrados se atribuem reciprocamente a competência, negando a própria, para julgarem a acção com processo especial de reforma de documentos por ela intentada contra B....., SA, com sede na Avenida....., ...... As autoridades em conflito não responderam, apesar de devidamente notificadas para o efeito. Facultado o processo para alegações nos termos do art.º 120º, n.º 1 do CPC, a requerente pronunciou-se pela competência do Tribunal Cível do Porto. Após, o processo foi com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, o qual emitiu parecer no sentido de o conflito ser solucionado atribuindo-se a competência ao Tribunal Cível da Comarca do Porto. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II. Fundamentação Os factos provados a ter em consideração na resolução do presente conflito são os seguintes: A) Em 27 de Maio de 2003, Maria..... instaurou acção com processo especial de reforma de documentos contra B....., SA, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, a qual foi distribuída ao 2º Juízo Cível. B) Nela, pediu a reforma de 21.500 acções ao portador que a requerente possui no capital social da requerida, alegando que desapareceram quando estavam em poder da sociedade, podendo ter sido destruídas, e que necessita de recuperá-las para as vender. C) Por despacho de 16 de Junho de 2003, foi indeferida liminarmente a petição por se ter entendido que aquele Juízo Cível era incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção e que esta era da competência do Tribunal de Comércio por respeitar ao “exercício de direitos sociais”. D) Em 18 de Julho de 2003, a Maria..... instaurou nova acção, em tudo idêntica à referida em A) e B), no Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia. E) Distribuída ao 2º Juízo, o respectivo Juiz, por despacho de 17/9/2003, declarou-se incompetente em razão da matéria e indeferiu liminarmente a petição inicial. F) Estes despachos transitaram em julgado. Não há dúvidas de que estamos perante um conflito negativo de competência, já que dois tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram incompetentes, por decisões transitadas em julgado, para conhecer da mesma questão (art.º 115º, n.º 2 do CPC). O conflito surgiu entre o 2º Juízo Cível do Porto e o 2º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia. Trata-se de dois tribunais judiciais de 1ª instância, o primeiro com competência específica e o segundo com competência especializada (art.ºs 62º, 64º, 65º, 78º e 96º, todos da Lei n.º 3/99, de 13/1 - Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais). Os factores determinantes da competência, na ordem interna, estão estabelecidos no art.º 62º do Código de Processo Civil, que preceitua: “1. A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código. 2. Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, a forma de processo aplicável e o território”. O art.º 67º do mesmo Código estabelece que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”. A LOFTJ também dispõe que “na ordem interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território” (art.º 17º, n.º 1) e que é ela que “determina a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica” (art.º 18º, n.º 2º, onde certamente se queria escrever “especializada”). Os Tribunais de Comércio são de competência especializada (art.º 78º, al. e) da LOFTJ). A sua competência está prevista no art.º 89º da LOFTJ. Segundo o seu n.º 1, compete-lhes preparar e julgar: a) Os processos especiais de recuperação da empresa e de falência; b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de dissolução e de liquidação judicial de sociedades; f) As acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial; g) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial; h) As acções de anulação de marca. O n.º 2 prevê a competência para julgar os recursos ali referenciados, que não importa agora considerar. E o n.º 3 acrescenta que a competência a que se refere o n.º 1 abrange os respectivos incidentes e apensos. Por outro lado, é sabido que, para a determinação do tribunal competente em razão da matéria, há que atender, em regra, à causa de pedir e ao pedido expressos na petição inicial (cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 5/2/2002, na CJ – STJ -, ano X, tomo I, pág. 68 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, págs. 91 e 95). No caso em apreço, a aqui requerente, nas acções que deram origem ao presente conflito, pediu a reforma de 21.500 acções que possui no capital social da requerida, por se terem extraviado. Trata-se de um processo especial que está previsto nos art.ºs 1069º a 1072º do CPC, integrado na Secção I (Reforma de documentos), Capítulo X, Título IV, Livro III do mesmo Código. Através dele, pretende-se apenas exercer o direito à reforma judicial dos títulos desaparecidos conferido pelos art.ºs 367º do Código Civil e 484º do Código Comercial. Tal como já ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “na acção de reforma não se trata de apreciar qual o valor e a eficácia do título a reformar; trata-se unicamente de reconstituir o título” (Processos Especiais, vol. II, reimpressão de 1982, pág. 58). O exercício deste direito nada tem a ver com o exercício de direitos sociais, regulamentado na Secção XVII, precisamente com essa designação, a qual está integrada no Capítulo XVIII dedicado aos processos de jurisdição voluntária, do título e livro, supra referidos. A referência a “tribunal de comércio” feita no § 1º do art.º 484.º do C. Comercial é irrelevante, visto que esta disposição há muito que se considera revogada, devendo a acção estar sujeita às regras gerais da competência (cfr. Alberto dos Reis, ob. cit., págs. 68 e 69). Percorrendo as várias alíneas do n.º 1 do citado art.º 89º, acima transcritas (o n.º 2 não vem ao caso, visto que se reporta a recursos de outras entidades), a única que apresenta alguma aproximação é a prevista na alínea c). Mas afigura-se-nos que a situação sub judice não pode incluir-se aí. O legislador presume-se “razoável, quer na escolha da substância legal quer na sua formulação técnica”, consagrando as soluções mais acertadas e exprimindo o seu pensamento em termos adequados (cfr. art.º 9º, n.º 3 do C. Civil e Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, 3ª ed., pág. 103). Por isso, não podia ignorar aquelas duas formas de processos. E também não podia confundir direito dos sócios com direitos sociais. Desenvolvendo este tema, Luís Brito Correia faz referência a uma multiplicidade de direitos que têm sido classificados na doutrina segundo vários critérios, de que faremos um breve resumo (cfr. Direito Comercial, Sociedades Comerciais, vol. II, págs. 305 e segs.). Ao referir-se aos direitos dos sócios perante a sociedade, aquele autor assinala que, em rigor, não pode falar-se dos direitos dos sócios perante os órgãos da sociedade, pois o que há são deveres da sociedade, para cujo cumprimento os órgãos são competentes, enquanto representantes da sociedade. Após, enumera um elenco de direitos, tais como direitos extra-sociais (estranhos à qualidade de sócio); e direitos sociais ou corporativos (direitos que os sócios têm enquanto sócios da sociedade e tendem à protecção dos seus interesses). Entre estes, distingue os direitos individuais (os que pertencem a cada sócio individualmente considerado) e os direitos gerais e comuns, entre os quais se contam os de participar nas deliberações, de impugnar deliberações sociais inválidas, o direito aos lucros e o direito de veto. E, segundo o conteúdo, distingue os direitos patrimoniais (como o direito aos lucros e à quota de liquidação) e os direitos não patrimoniais (como o direito de informação, de participação nas assembleias gerais, de voto, de eleger e de ser eleito para os cargos sociais). O caso em análise só por via indirecta ou reflexa tem a ver com os direitos sociais da requerente. O pedido de reforma dos títulos não respeita, seguramente, ao exercício de um dos aludidos direitos sociais. Como já dissemos, a acção de reforma destina-se apenas a reconstituir o título. Tal acção não exige conhecimentos específicos para atingir bons níveis de qualidade e de produtividade, visados pela especialização. Com esta não se pretendeu que todo e qualquer litígio relacionado com o direito comercial caísse na alçada dos tribunais de comércio. Note-se que, mesmo nas áreas de influência dos tribunais de comércio, não lhes compete preparar todas as questões que respeitem a direito comercial, mas tão somente as questões que a lei especificamente lhes atribui, sem recurso à analogia (cfr. Ac. desta Relação de 21/12/2000, CJ, ano XXV, tomo V, pág. 220). Deste modo, quer pela sua localização sistemática, quer porque não respeita ao exercício de direitos sociais, entendemos que o processo de reforma de documentos não é da competência material do Tribunal de Comércio. No sentido de que as acções relativas ao exercício de direitos sociais são apenas as previstas na Secção XVII, já referida, pronunciaram-se, pelo menos, os acórdãos desta Relação proferidos nos processos n.ºs 309/01, 860/02 e 157/01, todos da 2ª Secção, tendo este último decidido um conflito negativo de competência em tudo idêntico ao presente, onde se afirmou que a acção especial de reforma de documentos não se enquadra na previsão da alínea c) do n.º 1 do citado art.º 89, pelo que os tribunais de comércio não gozam de competência material para a preparação e julgamento de tal acção. Competentes para preparar e julgar as acções especiais de reforma de documentos são, originariamente, os juízos cíveis (art.º 99º da citada Lei n.º 3/99). Assim sendo, afigura-se-nos que o presente conflito deve ser dirimido atribuindo a competência ao 2º Juízo Cível do Porto para a preparação e o julgamento da acção a que o mesmo se refere. III. Decisão Por tudo o exposto, decide-se atribuir a competência para preparar e julgar a acção a que se reporta o presente conflito ao 2º Juízo Cível da Comarca do Porto, sem prejuízo de eventual alteração superveniente relevante decorrente da apresentação da contestação. * Sem custas.* Porto, 10 de Fevereiro de 2004 Fernando Augusto Samões Alziro Antunes Cardoso Albino de Lemos Jorge |