Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0726237
Nº Convencional: JTRP00040906
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
TRIBUNAL DE COMARCA
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
Nº do Documento: RP200712190726237
Data do Acordão: 12/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 260 - FLS 190.
Área Temática: .
Sumário: A acção em que é formulado pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, decorrentes da destituição das funções de gerente de sociedade sem justa causa, constitui uma típica acção de responsabilidade civil, não se traduzindo no exercício de direitos sociais; é, por isso, da competência do tribunal de comarca e não do tribunal do comércio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes nesta Relação:

O Autor B………., casado, residente na Estrada Nacional …, n.º ..º, ………., ………., Maia, vem interpor recurso do douto despacho proferido no tribunal judicial dessa comarca, nos autos de acção declarativa com processo ordinário, que aí correm termos contra os Réus “C………., Lda.”, com sede na R. ………., ………., Trofa, D………. e E………., residentes na Rua ………., n.º …, ………., ………., Trofa e F………., a citar na sede da empresa, intentando ver revogada tal decisão da 1.ª instância que declarou oficiosamente incompetente em razão da matéria o tribunal da comarca da Maia e competente o de comércio (com o fundamento aduzido no douto despacho de que “no presente caso é mais do que evidente que a questão a decidir diz respeito a uma relação comercial e que se baseia numa norma constante da legislação comercial”), alegando, para tanto e em síntese, que não concorda com essa conclusão a que chegou o Mm.º Juiz ‘a quo’ no despacho recorrido, pois que o presente caso se não enquadra na lista das situações previstas no art.º 89.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais __ que define a competência dos tribunais de comércio. É que, ao contrário do entendido, o recorrente, porque apesar de ser gerente, não era sócio, “não pode exercer nenhum direito social”, e “não pode pedir a anulação das deliberações sociais”, pelo que não têm qualquer aplicação as alíneas c) e d) do n.º 1 daquele preceito legal e “as restantes alíneas não são manifestamente aplicáveis ao caso concreto” (note-se que “o recorrente apenas e só invoca um direito previsto no Código Comercial, em relação às indemnizações a que um gerente demitido sem justa causa tem direito; só que tal direito não é um verdadeiro direito social no sentido de um verdadeiro direito comercial, antes é mais comparável a uma indemnização por ‘despedimento sem justa causa’, é como se estivéssemos em direito laboral”, mas não sendo “por isso que teremos de ir para o Tribunal de Trabalho, porque também se não configura tal a relação, porque não havia um verdadeiro contrato de trabalho” __ e, “de facto, é alegado um direito previsto no Código das Sociedades Comerciais mas tal não é o bastante para que desde logo se considere tal como uma relação comercial ou relativa ao exercício de direitos sociais”). São termos em que deve dar-se, então, provimento ao recurso e ser, em consequência, revogado o despacho recorrido, “substituindo-o por outro que declare o tribunal judicial da Maia competente em razão da matéria”.
Não foi apresentada qualquer resposta.
O Meritíssimo Juiz sustentou o decidido.
Nada obsta ao conhecimento deste recurso.
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Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) O recorrente B………. intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, no dia 31 de Dezembro de 2003, no tribunal judicial da comarca da Maia, contra os recorridos “C………., Lda.”, D………., E………. e F………., na qual formulou os seguintes pedidos: “ser declarado que o A foi destituído de gerente da sociedade pelos Réus sem justa causa”; serem os mesmos Réus “condenados a indemnizar o A. pelos danos patrimoniais sofridos, nos termos do disposto no artigo 258.º, n.º 7 CSC, no valor de 72.000,00 €”; e a “indemnizarem o A. pelos danos não patrimoniais causados, no valor de 50.000 €”; “todos os valores acrescidos dos juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento”, tudo nos termos e com os efeitos previstos na douta petição inicial de fls. 2 a 17 dos autos, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido, bem como a data de entrada que dela consta.
2) Na contestação, formulou a Ré sociedade “C………., Lda.” um pedido reconvencional de condenação do A. a pagar-lhe o valor das remunerações que a si próprio se havia atribuído (de 1.500,00 euros mensais), num montante global de 16.908,75 euros, acrescidos dos juros que se vencessem (vidé a douta contestação de fls. 60 a 69 dos autos, que aqui igualmente se dá por reproduzida na íntegra).
3) Mas por douto despacho do Mm.º Juiz do processo de 06 de Abril de 2005, foi o tribunal judicial da comarca da Maia julgado incompetente em razão da matéria para conhecer da acção e competente o tribunal de comércio, ainda nos seguintes termos: “Ora, in casu, não restam dúvidas que o objecto da acção, nos seus elementos objectivos e subjectivos, assume natureza exclusivamente comercial. Na verdade, o autor pretende exercer um direito não apenas previsto no Código das Sociedades Comerciais (art. 258.º, n.º 7), mas que se funda numa específica relação entre si e a sociedade e que, no seu entender, foi afectado por uma deliberação social da ré sociedade. (…) Todavia, no presente caso é mais do que evidente que a questão a decidir diz respeito a uma relação comercial e que se baseia numa norma constante da legislação comercial (…)” – (cfr. douta decisão de fls. 137 a 139 dos autos, aqui também considerada como reproduzida na íntegra).
4) O Autor era gerente da Ré “C………., Lda.”, mas não seu sócio.
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão deste Tribunal é a de saber se é competente para apreciar a matéria dos presentes autos o Tribunal de comércio __ como decidiu o Meritíssimo Juiz ‘a quo’ __, ou o Tribunal judicial da comarca da Maia, onde a acção se mostra instaurada __ como vem defendido pelo recorrente. É isso que, “hic et nunc”, tão só está em causa, como se vê das conclusões do recurso apresentado.
Vejamos, pois.
Nos termos do artigo 18.º, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. E, segundo o seu n.º 2, este diploma “determina a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica”.
Temos, assim, aqui prevista a competência residual dos tribunais judiciais de comarca, pelo que importará indagar se não haverá qualquer outra disposição legal que atribua a matéria a um outro tribunal de competência especializada ou de competência específica, designadamente a um tribunal de comércio (vidé a distinção enunciada no artigo 64.º, n.º 2 dessa Lei). Na verdade, se não houver disposição legal que atribua esta matéria a um desses tribunais de competência especializada ou de competência específica, então o tribunal competente será o de comarca (“in casu”, o tribunal judicial da comarca da Maia).
Ora, o tribunal de comércio é um tribunal de competência especializada, dos que foram criados na nossa orgânica judiciária (vidé o artigo 78.º, alínea e) da LOFTJ). E, segundo estatui o seu artigo 89.º, n.º 1, compete aos tribunais de comércio preparar e julgar: a) os processos especiais de recuperação da empresa e de falência; b) as acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) as acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) as acções de dissolução e de liquidação judicial de sociedades; f) as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial; g) as acções a que se refere o Código do Registo Comercial; e h) as acções de nulidade e anulação previstas no Código da Propriedade Industrial __ sendo, também, o competente para apreciar ainda “os respectivos incidentes e apensos” (vidé o seu n.º 3).
Importará, então, indagar se o nosso caso cabe nalgum destes itens.
O sr. Juiz ‘a quo’, para fundamentar a decisão, escreveu que “no presente caso é mais do que evidente que a questão a decidir diz respeito a uma relação comercial e que se baseia numa norma constante da legislação comercial”; que “não restam dúvidas que o objecto da acção, nos seus elementos objectivos e subjectivos, assume natureza exclusivamente comercial”, pois “o autor pretende exercer um direito não apenas previsto no Código das Sociedades Comerciais (artigo 258.º, n.º 7), mas que se funda numa específica relação entre si e a sociedade e que, no seu entender, foi afectado por uma deliberação social da ré sociedade”. Assim, atribuiu a competência ao tribunal de comércio.
O recorrente discorda, argumentando que o caso se não enquadra na lista das situações previstas naquele artigo 89.º da LOTJ, pois que o recorrente, não sendo sócio, apesar de ser gerente, “não pode exercer nenhum direito social” e “não pode pedir a anulação das deliberações sociais”, assim não tendo qualquer aplicação as alíneas c) e d) do n.º 1 daquele preceito legal e “as restantes alíneas não são manifestamente aplicáveis ao caso concreto” (“o recorrente apenas e só invoca um direito previsto no Código Comercial, em relação às indemnizações a que um gerente demitido sem justa causa tem direito; só que tal direito não é um verdadeiro direito social no sentido de um verdadeiro direito comercial, antes é mais comparável a uma indemnização por ‘despedimento sem justa causa”; e, na verdade, “é alegado um direito previsto no Código das Sociedades Comerciais mas tal não é o bastante para que desde logo se considere tal como uma relação comercial ou relativa ao exercício de direitos sociais”). Entende, assim, que o competente é o tribunal da comarca da Maia.
Ora, adiantando razões e salva melhor opinião, diremos que ao recorrente assiste razão na discordância que manifesta pela solução jurídica encontrada no douto despacho recorrido, pelo que o recurso irá proceder, sendo competente materialmente para apreciar da presente acção o tribunal judicial da comarca da Maia, onde ela foi instaurada. E é assim porque a lei como tal o quis, sendo esse o regime legal que nos rege nesta matéria.
É que, efectivamente, a situação subjacente aos autos __ e o que se diz no despacho recorrido a tal propósito está correcto: que a competência do tribunal deve ser aferida em função da pretensão formulada e da relação jurídica descrita na petição inicial (vidé o acórdão desta Relação de 5 de Janeiro de 1995, com a referência n.º 9450741, publicado pelo ITIJ, onde se escreveu no seu sumário precisamente isso: que “a determinação da competência em razão da matéria deve ser decidida em função da pretensão formulada e da relação jurídica descrita na petição inicial”) __, essa situação “sub judicio”, dizíamos, não se enquadra em qualquer das alíneas transcritas do n.º 1 do artigo 89.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais. E esse enquadramento é que é o critério estabelecido na lei para aferir da competência dos tribunais de comércio, e não qualquer outro, designadamente os que parecem ter sido usados na decisão sob recurso: o exercício de direitos previstos no Código das Sociedades Comerciais (se assim fosse o legislador tê-lo-ia dito, como o fez para os Códigos do Registo Comercial e da Propriedade Industrial nas alíneas f), g) e h)), quer a natureza de litígios comerciais, ou porque resultem de relações jurídicas dessa índole ou de actos da titularidade de sociedades ou de comerciantes (também seria fácil à lei, se o tivesse querido, estabelecer uma norma genérica que tal dissesse). Porém, não é isso que consta das referidas alíneas do seu normativo 89.º, n.º 1.
Deste artigo ficam facilmente afastadas, por aqui não terem aplicação, as suas alíneas a), b), e), f), g) e h), pois não estamos perante processos especiais de recuperação da empresa e de falência; acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; acções de dissolução e liquidação judicial de sociedades; acções em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, numa das modalidades do Código da Propriedade Industrial; acções a que se refere o Código do Registo Comercial; e acções de nulidade e anulação previstas no Código da Propriedade Industrial.
Restam as suas alíneas c) e d): as acções relativas ao exercício de direitos sociais e as acções de suspensão e anulação de deliberações sociais. Mas nem umas, nem outras têm aqui aplicação, pois o que vem formulado pelo autor na acção é um pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por si alegadamente sofridos e decorrentes da destituição de que foi alvo das funções de gerente da sociedade, a seu ver, sem justa causa. E isso é uma típica acção de responsabilidade civil e não se traduz no exercício de direitos sociais (não sendo o autor sequer sócio), tal como vêm estabelecidos nos artigos 1479.º a 1501.º do Código de Processo Civil: inquérito judicial à sociedade; nomeação e destituição de titulares de órgãos sociais; convocação de assembleia de sócios; redução do capital social; oposição à fusão e cisão de sociedades e ao contrato de subordinação; averbamento, conversão e depósito de acções e obrigações; regularização de sociedades unipessoais; liquidação de participações sociais e investidura em cargos sociais. Ou consubstancia sequer um qualquer exercício de direitos sociais, como vêm previstos por exemplo nos artigos 67.º, 72.º, 75.º, 77.º, 78.º ou 79.º do Código das Sociedades Comerciais (vidé o acórdão desta Relação de 23 de Janeiro de 2003, com a referência n.º 0231188 e publicado pelo ITIJ, onde se escreveu a tal propósito no seu sumário: “Não existem razões para circunscrever a competência do Tribunal de Comércio às acções relativas ao exercício de direitos sociais previstas no Código de Processo Civil”).
Por outra parte, é para notar que o autor não vem peticionar a suspensão ou a anulação da deliberação social que o destituiu das funções de gerente. Ele aceita já o facto, mas quer uma indemnização; ao fim e ao cabo, não peticiona ao tribunal que faça a sociedade voltar atrás na decisão de o destituir, quer é ser ressarcido dos alegados prejuízos que isso lhe acarretou.
[A propósito desta problemática da competência do tribunal de comércio versus tribunal da comarca, importa ler ainda os doutos acórdãos desta Relação, publicados pelo ITIJ, de 6 de Novembro de 2000, com a referência n.º 0050864; de 18 de Fevereiro de 2002, com a referência n.º 0250059; de 18 de Março de 2002, com a referência n.º 0250201; de 18 de Abril de 2002, com a referência n.º 0230629; de 06 de Junho de 2002, com a referência n.º 0230634; de 01 de Julho de 2002, com a referência n.º 0250779; de 08 de Julho de 2002, com a referência n.º 0250887; de 26 de Setembro de 2002, com a referência n.º 0231115; de 01 de Outubro de 2002, com a referência n.º 0220941; de 07 de Novembro de 2002, com a referência n.º 0231582; de 05 de Dezembro de 2002, com a referência n.º 0231133; de 11 de Março de 2003, com a referência n.º 0221583; de 29 de Abril de 2003, com a referência n.º 0320867; de 10 de Fevereiro de 2004, com a referência n.º 0325614; de 07 de Outubro de 2004, com a referência n.º 0431268; de 10 de Janeiro de 2005, com a referência n.º 0455711; de 07 de Março de 2005, com a referência n.º 0550385; de 27 de Setembro de 2005, com a referência n.º 0422202; de 06 de Outubro de 2005, com a referência n.º 0534264; de 18 de Setembro de 2006, com a referência n.º 0651969; de 02 de Outubro de 2006, com a referência n.º 0651306; de 26 de Fevereiro de 2007, com a referência n.º 0750241 e de 27 de Março de 2007, com a referência n.º 0622437.]
Como assim, num tal enquadramento fáctico e jurídico, e não cabendo o caso em apreço em qualquer das alíneas daquele referido artigo 89.º, n.º 1, tem o recorrente razão nas objecções que levanta ao trabalho do Meritíssimo Juiz “a quo”, sendo competente para apreciar a acção o tribunal judicial da comarca da Maia, tendo, por isso, que alterar-se agora o decidido e revogar-se o despacho da 1.ª instância que decidiu em contrário. É o que se decidirá.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em dar provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, por considerarem que o tribunal competente para a causa é o judicial da comarca da Maia.
Sem custas (artigo 2.º, n.º 1, al. g) do C.C.J.).
Registe e notifique.

Porto, 19 de Dezembro de 2007
Mário João Canelas Brás
António Luís Caldas Antas de Barros
Cândido Pelágio Castro de Lemos