Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0851165
Nº Convencional: JTRP00041266
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
EMBARGO DE OBRA NOVA
Nº do Documento: RP200804210851165
Data do Acordão: 04/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 336 - FLS. 53.
Área Temática: .
Sumário: É da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais o procedimento cautelar de embargo de obra nova interposto por um particular contra a Refer e um Município, por se sentir lesado com obra mandada executar por qualquer deles.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º1165/08-5

Agravante: B……………….

Agravados: C………………, S.A.
Rede Ferroviária Nacional- Refer, EP
Município de Marco de Canaveses

(Processo …../07.2TBMCN-A Tribunal Judicial de Marco de Canaveses)

Acordam neste Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

B…………….. instaurou procedimento cautelar de embargo de obra nova contra:
C………………., S.A.
REDE FERROVIÁRIA NACIONAL- REFER, EP
MUNICÍPIO DE MARCO DE CANAVESES

Alegou, em síntese, o seguinte:
▪ É titular do direito de propriedade dos prédios identificados no artigo 1º, do requerimento inicial, os quais formam uma quinta, denominada de D…………….;
▪ A requerida C…………., SA, sem sua autorização nem consentimento, iniciou a execução duma obra, com remoção de terras e derrube de videiras e outras árvores, no interior da mencionada quinta;
▪ Instada sobre esse assunto, a requerida C……………, SA, informou-o de que estava a executar a obra de supressão de passagens de nível, que lhe havia sido adjudicada pela REFER;
▪ A REFER indicou que essa adjudicação foi precedida de acordo com o requerido Município de Marco de Canaveses, com o qual chegou a celebrar um Protocolo, destituído, a seu ver, de efeitos jurídicos, entre o mais, por o ter denunciado.
Notificados os requeridos, deduziram oposição, tendo, entre outras excepções, invocado a incompetência do Tribunal, em razão da matéria, por considerarem competente o Tribunal Administrativo.

Realizado o julgamento, veio a ser proferida decisão na qual foi julgada procedente a referida excepção, declarando-se o Tribunal incompetente, em razão da matéria, para a apreciação do procedimento cautelar e absolveu os requeridos da instância.
É desta decisão que o requerente veio interpor recurso de agravo, concluindo, no essencial que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 668.º, 264.º, 412.º e 414.º do C.P.C., bem como no artigo 212.º n.º3 da Constituição da República Portuguesa.
Em contra – alegações, os apelados defenderam a confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II-OS FACTOS

Na 1.ª Instância foram dados como provados os seguintes factos:

A aquisição dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses sob os n.ºs 00026/230686, 00027/230685, 000352/310593 e 00354/310593 encontra-se registada a favor de B……………….
a) Dou como reproduzido o conteúdo de fls. 18 a 34 dos autos principais.
b) Desde que se tornou dono dos prédios referidos em a), o requerente avinhou-os; em parte deles tem cultivado kiwis, por si e respectivos serventuários; tem tratado das videiras e mais árvores de fruto aí existentes; tem feito seus os respectivos frutos, tal como tem consertado e conservado as porções urbanas.
c) Da mesma forma procedeu juntamente com a sua irmã.
d) Idênticos actos foram praticados pela antepossuidora, por si e respectivos caseiros ou serventuários, durante mais de 20 anos, sem interrupção.
e) Tais actos foram praticados perante toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de exercerem um direito próprio e de a ninguém lesarem.
f) O conjunto dos prédios referidos em a) são contíguos, formando uma Quinta, designada «do D…………», contendo, no seu interior, as porções urbanas.
g) Em data indeterminada de Janeiro de 2007, a requerida C…………., SA, entrou com máquinas e empregados na quinta do requerente, sem autorização deste.
h) E logo aí iniciou a remoção de terras e derrube de videiras e outras árvores.
i) O requerente foi informado pelo pessoal da C…………, SA, que esta ia proceder ali a diversas obras, visando a supressão de várias passagens de nível da linha do Douro.
j) Esclareceram que estavam a proceder a tais obras por as mesmas terem sido adjudicadas à C…………, SA, pela REFER.
k) Alegando a REFER que procedeu tal adjudicação após acordo com a Câmara Municipal do Marco de Canaveses.
l) A Câmara Municipal do Marco de Canaveses e o requerente subscreveram o documento que consta de fls. 71 a 74, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
m) O requerente comunicou à Câmara Municipal do Marco de Canaveses de que deveria considerar sem efeito o protocolo aludido na alínea anterior.
n) O requerente celebrou com a C……………, SA, o acordo que consta de fls. 75 a 78, dos autos principais, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
o) As obras levadas a cabo pela C…………., SA, visam a supressão das passagens de nível da Linha do Douro, dentre as quais se inclui a situada ao km 59+733.
p) Dou como reproduzido os documentos de fls. 114 a 124.

III - O DIREITO

A questão a decidir consiste em saber se é da jurisdição administrativa ou da jurisdição comum a apreciação do presente procedimento cautelar.

Estabelece o art.º 212.º n.º 3 da Constituição da República portuguesa que “compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
E de acordo com o vigente ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 14/2002, de 20 de Março e alterada pelo art.º 1.º da Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro e pelo art.º 1.º da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro), dispõe-se no art.º 4.º que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto:
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares dos órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos”.
Ora, comparando o ETAF vigente com o anterior, verifica-se que deixou de se aludir à distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada que constituía, no âmbito da legislação anterior, o critério de atribuição da competência.
Porém, não obstante essa alteração, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça[1] que “a atribuição da competência baseia-se essencialmente num critério material, assente na natureza das relações jurídicas em causa e não na dos respectivos titulares.” Ali se entendeu que a circunstância de não existir presentemente no ETAF norma igual à que constava do respectivo art.º 4.ºn.º1 f), onde se excluía da jurisdição administrativa as acções que tivessem por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa colectiva de direito público, não significa que a jurisdição administrativa passe a conhecer todas as questões de direito privado relacionadas com a actividade administrativa.
Mas será a questão sub judice um dos casos em que, não obstante uma tendência de alargamento da competência dos Tribunais Administrativos, se justifique o seu julgamento na jurisdição comum?
Afigura-se-nos que não.
Na verdade, o caso presente é um dos que mesmo no âmbito da legislação anterior, deveria ser enquadrado no âmbito dos actos de gestão pública. As obras que deram origem ao presente litígio visam a supressão de várias passagens de nível da linha do Douro e são da responsabilidade da REFER, E.P. Esta é uma empresa pública cujo “objecto consiste no serviço público de gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional, desenvolvendo as actividades pertinentes ao seu objecto de acordo com princípios de modernização e eficácia, de modo a assegurar o regular e contínuo fornecimento do serviço público (…)”[2] Ora, a obra em causa enquadra-se dentro dos fins de interesse público prosseguidos pela REFER e pelo Município de Marco de Canaveses que igualmente deu o seu acordo, conforme resulta da alínea l) dos factos provados. Assim, o litígio em apreço não poderia deixar de ser considerado como tendo a sua origem num acto de gestão pública e por isso, seria já à face da lei anterior da competência dos Tribunais Administrativos.
Por maioria de razão, sendo a actual lei mais abrangente, se deverá considerar o presente caso como sendo da competência da jurisdição administrativa.
De acordo com o art.º 1.º n.º 1 do vigente ETAF “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. E o que é uma relação jurídica administrativa? Define-a J.C. Vieira de Andrade[3] como “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.” Já vimos que a REFER adjudicou à C……….. as obras necessárias à supressão das passagens de nível na linha do Douro, no âmbito da prossecução dos fins de interesse público que lhe são próprios. E o próprio requerente está envolvido nesse processo de realização da obra, dado que chegou a assinar documentos com a C……….. e a Câmara Municipal de Marco de Canaveses, tendo por objecto o terreno onde essas obras iriam decorrer. A validade de tais documentos e declarações de vontade posteriores estão em discussão, mas não há dúvida de que terá de ser a jurisdição administrativa a apreciá-los.
Resta ainda referir que nos termos do art.º 113.º do CPTA, “o processo cautelar depende da causa que tem por objecto a decisão sobre o mérito, podendo ser intentado como preliminar ou como incidente do processo respectivo(1) O processo cautelar é um processo urgente e tem tramitação autónoma em relação ao processo principal, sendo apensado a este(2) Quando requerida a adopção de providências antes de proposta a causa principal, o processo é apensado aos autos logo que aquela seja intentada(3). Assim, atendendo a que, na acção principal de que a providência cautelar é dependência, poderá ser formulado pedido de condenação das pessoas colectivas de direito público, com base na respectiva responsabilidade civil extracontratual, tal determina a atribuição da respectiva competência em razão da matéria, à jurisdição administrativa, pelo menos por conexão legalmente imposta, terá de entender-se competente o Tribunal administrativo também para o procedimento cautelar.
Improcedem, assim, as conclusões do Agravante.

IV - DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso de agravo, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo Agravante.

Porto, 21 de Abril de 2008
Maria de Deus S. da C. Silva D. Correia
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
Baltazar Marques Peixoto
___________
[1] Acórdão de 31-12-2006, in www.dgsi.pt
[2] Art.º 2.º dos estatutos da REFER
[3] In “A Justiça Administrativa”- Lições, 3.º edição, 2000, p.79