Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0516344
Nº Convencional: JTRP00039079
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Nº do Documento: RP200604190516344
Data do Acordão: 04/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: ORDENADO O REENVIO.
Indicações Eventuais: LIVRO 438 - FLS 142.
Área Temática: .
Sumário: Constitui o vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, previsto no art. 410º, 2, al. a) do CPP, a inexistência, na decisão recorrida, de factos provados que permitam quantificar o montante máximo de uma coima, em função do “triplo da presumível receita global” de um determinado jogo ou concurso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Nos autos de recurso (contra-ordenação) que sob o nº …./05..TBMAI, correram termos pelo .º Juízo do Tribunal Judicial da Maia, o arguido B………. impugnou a decisão da SCML que lhe aplicou uma coima de 1.500 € pela prática da contra-ordenação p.p. pela al. j) do nº 1, do artº 3º, do anexo II do Dec. Lei nº 322/91, de 26/8, e com base no artº 23º do DL nº 84/85, de 28/3.

Após julgamento viria a ser proferida sentença que negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

Novamente inconformado, viria o recorrente a interpor o presente recurso que motivou, concluindo:

A. Não pode o Arguido, ora Recorrente, conformar-se com a decisão ora recorrida que rejeitou o recurso de impugnação judicial deduzido, confirmando totalmente a decisão administrativa recorrida e que, nessa sequência, condenou o arguido recorrente a pagar a coima de €: 1.500,00 (mil e quinhentos euros).

B. Assim, por referência ao art.º 410.º, n.º 2 do C.P.P., analisada atentamente a douta sentença recorrida, torna-se, desde logo, claro existir na mesma evidente escassez de meios de prova que sustentassem com insuficiência a matéria de facto dada como provada para configurar a prática da contra-ordenação p. e p. punida pelo Art.º 23.º do D.L. 84/85, de 28 de Março, por infracção ao art.º 1.º do mesmo diploma, e nessa medida sustentar a condenação do ora recorrente.

C. Ao invés, resulta do próprio texto da decisão recorrida, especificamente dos factos dados como provados, a absolvição do ora Recorrente, pois que, tais factos, que, na humilde visão do recorrente foram incorrectamente assim julgados, decorreram de simples conjecturas e juízos dedutivos.

D. Jamais se poderia pronunciar o Tribunal “a quo” no sentido de manter a decisão administrativa recorrida, mostrando-se, sim, pertinente, que o Digníssimo Tribunal aferisse em concreto da responsabilização do recorrente.

E. Para tanto, impunha-se que o Tribunal “a quo” tivesse apurado do concreto funcionamento da aludida máquina no referido estabelecimento, e mais, tivesse ordenado a realização de prova pericial,

G. Pois que, não tendo sido realizado qualquer exame pericial à máquina apreendida nos presentes autos, jamais se poderia concluir de forma segura pela qualificação da mesma como sendo de fortuna e azar ou sequer como modalidade afim, nem tão pouco que o talão extraído da mesma encontrasse alguma correspondência com o aludido plano de prémios.

G. Sendo certo que, a testemunha C………. não é perito da Inspecção Geral de Jogos ou da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, mas tão somente o agente policial (GNR/BF) que elaborou o auto de notícia que originou os presentes autos, pelo que em momento algum o seu depoimento sobre o funcionamento do jogo em questão poderia ser valorado enquanto tal, não tendo qualquer conhecimento técnico nos termos do art.º 151.º do CPPenal.

H. Donde, impunha-se que o tribunal “a quo”, assumindo o dever de descoberta da verdade material consagrado no Art.º 340.º do C.P.Penal, tivesse ido mais longe, investigando nos presentes autos os factos essenciais para a decisão da presente causa atrás referidos.

I. Mais que, ao ter considerado como provado o exposto em 4.º e 5.º da factualidade dada como provada, tendo por base uma simples conjectura, um juízo dedutivo, incorreu o digníssimo Tribunal “a quo” em violação do princípio “In Dubio Pro Reo”, corolário do principio constitucional da presunção da inocência.

J. Ainda no que concerne à violação desde princípio fundamental em direito penal diga-se que em momento algum, pode a “livre” valoração das provas, consagrada no art.º 127.º do C.P.Penal, conduzir ao livre arbítrio do juiz, mas sempre a uma actividade vinculada a todos os princípios inerentes ao denominado direito probatório.

K. O que não sucedeu in casu! Resultando, assim, do supra exposto a violação do Princípio constitucional da Presunção de Inocência consagrado no art.º 32.º da C.R.P., que a ser respeitado impunha a absolvição do ora Recorrente.

L. Acontece ainda que, sempre sem prescindir do supra exposto quanto à não responsabilização do ora Recorrente pela contra-ordenação em causa nos presentes autos, no que à sanção concerne, não se pode deixar de ter em conta que nos autos não se constatou qual o montante da receita apurada, nem presumível, pelo que não teria o Digníssimo Tribunal “a quo” qualquer índice dessa receita para calcular o valor da coima aplicar.

M. Quanto muito, poderia o Digníssimo Tribunal “a quo” tomar em linha de conta o valor encontrado por referência ao pequeno papel encontrado dentro da máquina de dinheiro e datas em que o mesmo foi retirado (19€ 10.09.04; 33€ 12.09.04) e do dinheiro dentro daquela máquina no montante de €: 4,00,

N. Assim, jamais o valor da coima poderia perfazer os referidos €: 1.500,00 (mil e quinhentos euros).

O. Ao que acresce, o facto do arguido ser primário em termos contra-ordenacionais.

P. Termos em que, atenta a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente, seria bastante a Admoestação a aplicar ao arguido nos termos do art.º 51.º do R.G.C.O., pelo que, não o tendo feito violou a decisão ora Recorrida tal preceito legal.

Q. Assim, pelo supra exposto, violou a douta sentença sob recurso o art.º 32.º da C.R.P., os artigos 127.º, 340.º, 343.º e 355.º do C.P.Penal, por referência ao artigo 410.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, bem como os Artigos 1.º, 23º, n.º 1 e 2, todos do DL n.º 84/85 de 28 de Março e, ainda, os Artigos 18.º, n.º 1 e 51º, do DL 433/82, de 27/10 na redacção do DL n.º244/95 de 14/09.

Nestes termos deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso, ser revogada a decisão ora recorrida,

Ou, se assim não se entender, o que não se concede, ser proferida decisão que condene o ora Recorrente em pena sensivelmente mais leve.

Respondeu o Dig.mo Magistrado do MP junto do Tribunal recorrido, concluindo pela manutenção da decisão recorrida.

No mesmo sentido se pronunciou o Ex.mo PGA, no seu douto parecer.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Factos assentes:

1.No dia 13 de Setembro de 2004, no interior do café D………., sito na Rua ………., n.º …, ………., Maia, de que o recorrente é titular, encontrava-se em exposição ao público, uma máquina intitulada “Horóscopo” (de cor rosa e com as dimensões aproximadas de 70 cm x 23 cm), ligada à corrente eléctrica e pronta a funcionar.

2.No referido estabelecimento encontravam-se ainda duas pequenas folhas (com dimensões de 4,5 cm x 10 cm) com o plano de prémios (com a informação, por exemplo, de quem acertasse em sete números tinha direito a receber um prémio no valor de 3.000,00), um pequeno papel que se encontrava no interior da máquina com apontamentos de dinheiro e datas em que o mesmo foi retirado (19€ 10.09.04; 33€ 12.09.04) e um pequeno cartão com a indicação dos números do totoloto, referente à semana n.º 37 de 11.09.2004, que se encontrava pendurado numa prateleira no interior do balcão.

3.A mecânica do jogo consistia em introduzir uma moeda (que podia ir de €0,50 a €2,00), retirar da máquina um talão composto por sete números e confrontar os números obtidos com os números extraídos, naquela semana, no Totoloto da SCML e finalmente consultar o plano de prémios colocado numa caixa expositora que se encontrava junto do papel com a indicação dos números do totoloto.

4.O arguido conhecia as características do jogo que divulgava no seu estabelecimento e mesmo assim quis proceder à sua comercialização e promoção, bem sabendo que a exploração dos jogos sociais do Estado, designadamente o Totoloto, constitui um exclusivo da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.

5.O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

6.Não são conhecidos ao recorrente quaisquer antecedentes criminais ou contra-ordenacionais.»

7.Actualmente encontra-se desempregado, não auferindo qualquer subsídio de desemprego; vive de biscates ocasionais que vai fazendo; proximamente irá trabalhar como vendedor, auferindo um salário apenas se efectuar vendas.

8.Tem como habilitações literárias o 9º ano.

DECIDINDO:

Porquanto a vinculação temática deste Tribunal de recurso é operada pelas conclusões das alegações da recorrente, iremos, na nossa análise, procurar seguir os temas por ela suscitados.

Dado que neste processo não há lugar à gravação da prova e à sua transcrição, o recurso há-de, necessariamente, limitar-se à apreciação da matéria de direito (artº 66º, ‘in fine’, do Regime Geral das Contra-Ordenações), funcionando, assim, esta Relação como tribunal de revista. Não obstante, pode o recurso, para além de questões de direito, ter ainda por fundamento qualquer dos vícios enumerados no artº 410º, 2, do CPP, «desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum».

Ora, analisadas as conclusões A. a J., logo se constata que o recorrente, de modo sistemático, põe em causa não só a factualidade assente como, também, o processo de formação da convicção do Tribunal, aludindo a factos que entende estarem indevidamente considerados assentes e bem assim à falta de provas pessoais e periciais. Mas, vimos já que lhe está vedado tal tipo de impugnação.

A única possibilidade de que dispõe é a concedida pelo artº 410º, 2 do CPP, a qual o recorrente aliás aflora incidentalmente, sem precisar, contudo, qual o concreto vício que aponta à decisão impugnada.

Como se diz na sentença recorrida, «a contra-ordenação praticada pelo recorrente é punida com coima não inferior a 24,94€ nem superior ao triplo da presumível receita global desses concursos, quando mais elevado do que aquele limite». (artº 23º, 2, DL 84/85).

Ou seja, o ilícito de mera ordenação social em causa está balizado por um limite mínimo de 24,95€, sendo o limite superior equivalente ao triplo da presumível receita global desses concursos.

Como facilmente se constata, esse limite máximo há-de resultar de uma actividade do tribunal baseada numa presunção de uma «receita global»; ou seja, a discricionariedade do Tribunal (já que se trata de uma verdadeira ‘presunção’) não é total, sendo antes ‘vigiada’, devendo a conclusão ser retirada através da análise de elementos objectivos disponíveis na factualidade assente. Se assim não for, não se torna compreensível ou cognoscível a actividade integrativa do Tribunal em termos de averiguar qual o limite máximo da moldura da coima, já que ele constitui um limite ‘aberto’ ou em ‘branco’. E assim sendo, a discricionariedade passaria a poder ser qualificável de actividade sem controlo, o que cabe aos Tribunais evitar num Estado de Direito, como verdadeiros órgãos de soberania que são. A actividade jurisdicional, mesmo nos casos em que se baseia numa discricionariedade de fonte legal, como é o caso, deve assentar em premissas claras e objectivas que tornem compreensível o raciocínio efectuado.

Ou seja, e concretizando, analisada a sentença recorrida, ficamos sem saber qual o limite máximo atendido para determinar, dentro da moldura, a coima de 1.500 euros. Os prémios referidos nos factos assentes (que podiam ir até aos 3.000 euros) não são factor a atender para o efeito, uma vez que o que está em causa é o valor dos benefícios que o infractor presumivelmente retiraria da sua actividade contra-ordenacional. E quanto a esses, não dispomos de factos assentes que possibilitem a sua concretização, de modo a permitir a extracção daquela referida presunção.

Tal constitui vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão (artº 410º, 2, a), do CPP), já que a omissão resulta do texto da decisão recorrida.

Termos em que, e ao abrigo do disposto no artº 75º, 2, b), do DL nº 433/82, se acorda em anular a sentença recorrida, ordenando a repetição do julgamento pelo tribunal recorrido, com o único objectivo de averiguação dos elementos de facto dos quais, por presunção, se há-de extrair o limite máximo da moldura da coima aplicável à apontada contra-ordenação, nos termos já referidos.

Sem tributação.
Porto, 19 de Abril de 2006
Manuel Jorge França Moreira
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
José Manuel Baião Papão