Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
867/09.7PRPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RICARDO COSTA E SILVA
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
PERIGO DE FUGA
Nº do Documento: RP20110511867/09.7prprt-A.P1
Data do Acordão: 05/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A avaliação do perigo de fuga não exige que o risco se adense até à iminência ou início da execução da fuga, i.é., não é necessário que haja indícios materiais de que a fuga está num horizonte factual próximo.
II – O juízo sobre a existência de perigo de fuga tem de basear-se na pessoa concreta, na sua personalidade, nas circunstâncias conhecidas da sua vida para, a partir daí, cotejando essa imagem com a experiência comum, averiguar da probabilidade de se verificar uma fuga.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 867/09.7PRPRT-A.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto,
I.
1. Por despacho judicial, proferido, em 2011/01/18, no processo comum n.º 867/09.7PRPRT-A.P1, foi decidido aplicar ao arguido B…, com os demais sinais dos autos, a medida de coacção de prisão preventiva.
«O teor do referido despacho é, na parte que ora interessa, o seguinte:
«Encontra-se o arguido B… acusado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21°, n° 1, do DL 15/93, de 22/01, por factos praticados em 01/07/2009, 26/08/2009 e 20/09/2009.
«Na sequência da detenção operada em 01/07/2009 e uma vez presente a 1° interrogatório judicial veio ao arguido a ser aplicado um estatuto coactivo, mediante o qual ficou o mesmo sujeito à obrigação de apresentações trissemanais nos dias de segunda, quartas e sextas, no posto policial da área da sua residência, cumulada com a obrigação de não frequentar o … ou outros locais conotados com o tráfico de droga, bem como com a obrigação de não contactar com pessoas ligadas ao consumo e tráfico de estupefacientes.
«Fazendo tábua rasa deste estatuto cautelar e conforme consta dos autos de fls. 61 e seguintes e 88 e seguintes veio o arguido a ser encontrado na área do … na posse de produtos estupefacientes, razão pela qual se encontra acusado, pela acusação recebida e com julgamento marcado para 15 e 22 de Março.
«Achando que tal não chegava, para além disso, o arguido sucessivamente violou a medida de coacção de apresentações periódicas, conforme se constata dos vários ofícios juntos a fls. 53, 58, 126, 146, 172, 175, 182, 240 e 262, não se apresentando nos termos que lhe foi ordenado no posto policial da área da sua residência.
«Por outro lado como se colhe do relatório social junto a fls. 266 e seguintes, cuja junção foi ordenada para proceder a interrogatório da tomada de posição quanto ao estatuto cautelar, consta do mesmo, para além do mais que o arguido se mantém inactivo há cerca de 3 anos, não tem meios de rendimentos lícitos, sendo que para além disso a sua inserção pessoal e familiar não é conseguida dada a actual divergência entre os seus progenitores e a sua pessoa, atento o modo de vida que o mesmo entendeu levar a cabo, sendo patente a desconformidade e as declarações pelo mesmo prestadas e pelos seu progenitores.
«Salienta a il. defensora do arguido como referência a ter em conta para a fixação do estatuto cautelar a data para a qual se encontra marcada a data de julgamento, assim se opondo ao requerido pela Digna Procuradora da República.
«Quanto a esse ponto apenas nos cabe dizer que os critérios fixados na lei para a imposição de medidas de coacção são como bem se salienta qualquer das ilustre Defensora e Digna Magistrada do Ministério Público os versados no artigo 191° e 193° do CPP e não já a circunstância de estar próxima ou longínqua a data para a feitura do julgamento, posto que desde que se verifiquem os pressupostos a que alude o artigo 204° do CPP e verificadas as condições de admissibilidade a que se alude no artigo 202° do mesmo diploma legal estaria o julgador a incorrer numa flagrante violação da lei se se estribasse nesse putativo critério para tomar qualquer decisão relativa ao estatuto coactivo.
«Versando saber a matéria dos autos importa concluir que em concreto o arguido B… em virtude da conduta que vem operando faz denunciar o manifesto perigo da actividade criminosa, dado que é desconhecido o seu actual modo de vida, não tem hábitos de trabalho certos, não estando inserido pessoal nem familiarmente, sendo que, também violando por completo todas as obrigações que lhe foram impostas em sede de 1° interrogatório faz temer pela ausência perante a justiça, como aliás já se verificou na anterior diligência que foi aprazada para tomada de declarações.
«Para obviar tais perigos não se mostra adequada uma qualquer medida não detentiva, até em face do total e manifesto desrespeito que o arguido vem demonstrando desde que foi imposto o estatuto coactivo no âmbito destes autos, sendo que, residindo o mesmo numa pensão e sem o apoio familiar que não o pagamento daquela estadia - a obrigação de permanência na habitação não se afigura possível em concreto.
«Assim sendo, e das conjugações das normas contidas nos artigos 191°, 193°, 196°, 202º, n° 1, al. a), 203°, n° 1 e 204. als. a) e c) do CPP determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a TIR e prisão preventiva.
«(…)
2. Inconformado com a decisão referida, dela recorreu o arguido destinatário da medida aplicada.
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
«a) O presente recurso visa a revogação do despacho que aplicou ao recorrente a medida coactiva de prisão preventiva e a consequente substituição pela obrigação de permanência na habitação com a utilização de meios técnicos de controlo à distância.
«b) Analisado o despacho ora em crise, constata-se que o Tribunal recorrido fundou a sua decisão no perigo de continuação da actividade criminosa e no receio de fuga.
«c) Da análise dos autos não resulta minimamente indiciado o perigo de fuga desde logo porque:
«– O arguido não dispõe de condições económicas nem do apoio de terceiros que lhe permitam empreender uma fuga e estabelecer-se noutro país;
«– A falta do arguido a anterior diligência processual é claramente insuficiente de, por si só, preencher o conceito de perigo de fuga;
«– A falta observância do estatuto coactivo por parte do arguido não pode determinar automaticamente a aplicação da prisão preventiva, tanto mais que outras medidas menos gravosas e restritivas, como a obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica, seriam admissíveis ao caso.
«d) No que toca ao perigo de continuação da actividade criminosa, é manifesto que a mera possibilidade de perigo de continuação da actividade perigosa não constitui motivo suficiente para caracterizar uma qualquer situação como consubstanciadora de perigo de continuação da actividade criminosa, tal como aliás defendido no Acórdão da Relação de Coimbra de 99.06.02 — Recurso n° 1668/99.
«e) Vale o exposto para defender a aplicação ao arguido de urna outra medida de coacção – obrigação de permanência na habitação, com aplicação dos meios técnicos de controlo à distância.
«f) O despacho recorrido violou os art.° 27°, n." 1 e 2, 98°, n.° 2, 32° da CRP; art.° 191', 193", 201°,202º, 203°, 204º e 212º, todos do CPP.»
Terminou a pedir a revogação do despacho ora em crise e a aplicação a si, recorrente, da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.
4. Notificado do recurso, o Ministério Público (MP) apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento.
5. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto (PGA) juntou aos autos parecer em que se pronunciou por que o recurso não merece provimento.
6. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu.
7. Realizado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência. Realizada esta, dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
II.
1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, a única questão posta no recurso é a da não existência de perigo de fuga e de continuação da actividade criminosa, e de não dever ser aplicada ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva.
* * *
2. Consabidamente, a aplicação de medidas de coacção em processo penal respeita os princípios da legalidade (art.os 29.º, n.º 1, da CRP e 191.º do CPP), excepcionalidade e necessidade (art.os 27.º, n.º 3 e 28.º, n.º 2, da CRP e 193.º, do CPP), adequação e proporcionalidade (art.º 193.º do CPP), como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32.°, n.° 2, da Constituição.
Esta natureza significa que a aplicabilidade da prisão preventiva se restringe aos casos em que, verificados qualquer dos requisitos gerais do artigo 204.° e o requisito especial do artigo 202.°, ambos do CPP, as restantes medidas de coacção se mostram inadequadas ou insuficientes [1].
As medidas de coacção só devem manter-se enquanto necessárias para a realização dos fins processuais que, observados os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, legitimam a sua aplicação ao arguido e, por isso, devem ser revogadas ou substituídas por outras menos graves sempre que se verifique a insubsistência das circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação (artigo 212.° do CPP).
Não pondo o recurso em causa o cabimento da mediada aplicada na previsão abstracta do art.º 202.º do CP, centra-se ele na contestação da verificação, em concreto, dos requisito do art.º 204.º e no desrespeito dos princípios da necessidade e proporcionalidade na aplicação da medida.
Densificando um pouco a referência ao art.º 204.º do CPP, diz este artigo que:
« Artigo 204.º
« Requisitos gerais
« Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
« a) Fuga ou perigo de fuga;
« b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
« c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. »
O recorrente funda a sua discordância do despacho recorrido em que não há perigo de continuação da actividade criminosa, nem perigo de fuga.
Não tem razão.
Antes de mais, o perigo de continuação da actividade criminosa tinha já sido declarado no despacho que aplicou ao recorrente as medidas de coação a que ele foi primitivamente sujeito e que o despacho recorrido veio agravar (cfr. fls. 33).
E não tendo o ora recorrente recorrido desse despacho, ficou claro que a circunstância “perigo de continuação da actividade criminosa” ficou, ela mesma, a coberto da cláusula rebus sic stantibus, enquanto único fundamento da aplicação da medida de coacção de apresentações periódicas a autoridade policial, medida essa que, como se sabe, está também sujeita à verificação dos pressupostos do art.º 204.º do CPP. Assim, enquanto não houver – e não houve – alteração dos factos que determinaram a declaração de existência de perigo de continuação da actividade criminosa, esse é um dado adquirido no processo, que não pode ser discutido. Ora, o recorrente não questionou a matéria de facto posta em evidência no despacho recorrido, que dá conta de um agravamento, em função da acção do arguido, do “perigo de continuação da actividade criminosa” além do aparecimento de um novo pressuposto de aplicação de medida de coacção, o “perigo de fuga”.
E a realidade é, quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa, insofismável. Aliás não se trata já de mero perigo, mas da verificação da concretização do perigo em acontecimento, uma vez que está fortemente indiciado nos autos que o arguido, ora recorrente, depois da aplicação da primeira medida de coacção, prosseguiu, impávido, com a mesma actividade que lhe valeu aplicação dessa medida.
Quanto ao perigo de fuga, diz o recorrente que ele não se verifica, porque ele não tem meios económicos para fugir para o estrangeiro e aí se estabelecer.
Este argumento radica num equívoco, geralmente acarinhado, aliás: o de que só os ricos têm meios para fugir à justiça. Em primeiro lugar, fugir não significa escapar de forma estável ou mesmo permanente. Há fugas e fugas! Mas a lei não distingue entre fugas longas e bem sucedidas e fugas breves e patéticas. Toda a fuga é um entrave à realização da justiça que importa evitar. Por outro lado, os pobres também alcançam o estrangeiro – às vezes bem longínquo – e nele se estabelecem, como demonstram as imemoriais e cíclicas correntes migratórias.
Estamos com o recorrente quando diz que o perigo de fuga deve ser avaliado em concreto, aliás, a ideia é pacificamente aceite. Mas isso não significa que o perigo tenha que se adensar até à iminência ou ao início de execução da fuga. Ou seja, não é necessário que haja indícios materiais de que a fuga está num horizonte factual próximo, para que se possa afirmar que há perigo de fuga. Um juízo sobre a existência de perigo de fuga, tem de basear-se na pessoa concreta que está em causa, com a sua personalidade e as circunstâncias conhecidas da sua vida e daí partir, cotejando essa imagem com a experiência comum para se averiguar da probabilidade de se verificar uma fuga.
A experiência diz-nos que aqueles que estão dispostos a sofrer uma pena em nome dos princípios serão muito raros e que, existindo, se encontrarão esmagadoramente entre aqueles que não cometem crimes.
Assim, a realidade é que a aproximação da ameaça de condenação – sobretudo de condenação em possível pena de prisão efectiva –, exerce uma pressão psicológica sobre o arguido que o incentiva a furtar-se à pena e, entrevendo ele uma possibilidade de fuga, é normal que fuja.
No caso, temos uma arguido que não tem quaisquer espécie de vínculos que o possam induzir a uma conduta normativa, mesmo que passando pelo sacrifício de uma condenação. Não trabalha, não tem relações familiares estáveis, nem apresenta qualquer forma de entrosamento que socialmente o prenda e sustente.
Está indiciado por uma conduta renitente de tráfico de estupefacientes e reagiu com manifesta indiferença às medidas de coacção menos gravosas que lhe foram aplicadas. Não cumpriu as injunções contidas nas medidas em todos os planos em que elas se decompõem. Não procedeu às apresentações à autoridade policial, não justificou as faltas, continuou a frequentar os meios e locais onde se trafica droga e continuou a deter estupefacientes.
Para cúmulo, quando se quis ouvi-lo, quanto à sua atitude, com vista a eventual alteração da medida de coacção a que estava sujeito, arrogou-se o direito de não prestar declarações, numa manifesta confusão, entre o silêncio a que os arguidos têm direito quanto às imputações penais a ele feitas e o dever a que os mesmos arguidos também estão sujeitos, de prestar contas da seu conduta relativamente às obrigações que lhe lhes são processualmente impostas. É claro que, ninguém pode obrigar um arguido a explicar porque é que não cumpre com, v. g., a obrigação de se apresentar num posto de polícia a certas horas de certos dias. Mas se ele, como foi o caso do, aqui, recorrente, simplesmente se negar a dar qualquer satisfação sobre o assunto, essa atitude não poderá deixar de ser desfavoravelmente valorada pelo decisor, como indício de uma personalidade hostil a determinar-se por normas de qualquer ordem.
Isto leva-nos directamente à questão da necessidade e da proporcionalidade da medida. A medida que é necessária, desde que seja legal, é proporcional. Só haverá desproporcionalidade quando a medida seja, pelo menos, relativamente desnecessária, ou seja, quando havendo duas medidas legalmente aplicáveis e que ambas satisfaçam os fins que se visa alcançar, se opte pela aplicação da mais gravosa. Neste caso sempre haverá uma relativa desnecessidade de aplicação da medida escolhida, na medida que medeia entre a menos grave, já satisfatória, e aquela.
No caso, o recorrente propugna, como medida suficiente, a de obrigação de permanência na habitação, prevista no art.º 201.º do CPP.
Porém, tal não foi convicção do Ex.mo Juiz prolator do despacho recorrido, como também não é a nossa.
O tipo de personalidade que o arguido revelou não se compadece com a disciplina que ele teria de manter para um cumprimento da medida sem meios de controlo à distância. Por outro lado, vivendo o arguido numa pensão, a logística de instalação dos meios de controlo à distância ficaria seriamente comprometida. A medida e a sua execução foram pensadas para funcionar numa habitação ou numa instituição e não num estabelecimento comercial, ainda que de natureza hospedal.
A isto acresce que a medida do art.º 201.º, do CPP não se adequa bem à esconjuração do perigo de continuação da actividade criminosa em caso de crime de tráfico de estupefacientes, uma vez que este tipo de crime pode cometer-se – e muitas vezes se comete – no domicílio.
Acresce, finalmente, que a medida do art.º 201.º do CPP não tem aptidão para neutralizar eficazmente o perigo de fuga.
Termos em que o recurso deve improceder.
III.
Atento todo o exposto,
Acordamos em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente no pagamento de 3 UC de taxa de justiça.

Porto, 2011/05/11
Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
______________
[1] Excepcionada a medida de coacção de prestação de termo de identidade e residência, cuja aplicação respeita, tão só, o princípio da legalidade, sendo como é aplicável a todos os arguidos.