Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0831093
Nº Convencional: JTRP00041156
Relator: COELHO DA ROCHA
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO MOBILIÁRIO GERAL
CRÉDITOS HIPOTECÁRIOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RP200802280831093
Data do Acordão: 02/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 751 - FLS. 27.
Área Temática: .
Sumário: Conflituando os direitos de crédito garantidos pelos privilégios imobiliários gerais – consubstanciados, no caso, nos créditos laborais reclamados pelos trabalhadores, provenientes de contratos individuais de trabalho, sua violação ou cessação… – cedem, são preteridos na sua ordem de graduação, perante os créditos garantidos por hipoteca, por aplicação do disposto nos arts. 686º e 749º e inaplicabilidade do estatuído no art. 751º, do CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


No …..º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, nos autos de reclamação de créditos que correm termos por apenso ao proc. nº ……./03.3.TYVNG, em que foi declarada a falência de B…………….., L.da, foi proferida sentença que fixou a data da falência em 10.11.2003, e procedeu à verificação e graduação dos créditos reclamados, em 24.11.2006 (fls. 254-262), em que, em relação aos bens móveis e imóvel da falida, e consequentemente do produto da sua liquidação, se graduaram os créditos reconhecidos e devidamente discriminados – que aqui temos por inteiramente identificados e integrados:

- os reclamados pelos trabalhadores – 2 a 12 e 19 – emergentes de contrato individual de trabalho, com indemnização e juros, ao abrigo da Lei nº 17/86, de 14.6, art. 12º- 1 e 3 e da Lei nº 96/2001, de 20.8, art. 4º, que gozam de privilégio mobiliário e imobiliário gerais, e resultantes de despedimento, em 13.9.2003;
- o crédito hipotecário do Banco C…………….., SA – 17 – a título de opera-ções bancárias, no valor de € 146.857,81, garantido por hipoteca sobre o imóvel apreendido para a massa falida, com preferência sobre s demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art. 686º, CC); e
- demais credores, tidos por comuns.

Então, diz a instância recorrida que do produto da liquidação dos bens da massa falida serão pagos:
dos bens móveis
1º.-do remanescente, os créditos dos trabalhadores
2º.- “ “ , os créditos comuns.
do imóvel
1º.-do remanescente, os créditos privilegiados dos trabalhadores
2º.- “ “ , o crédito hipotecário do C……………., SA
3º.- “ “ , os créditos comuns.

Assim, como créditos privilegiados destaca a sentença recorrida os dos trabalhadores (2 a 12 e 19) e o hipotecário do C…………, SA de € 146.857,81.

Sobre este fez prevalecer aqueles dos trabalhadores da falida. Isto é, graduou o crédito hipotecário do C………….., SA após os créditos laborais reconhecidos.

Inconformado, o reclamante Banco, credor hipotecário do imóvel apreendido para a massa falida apelou; e, alegando, concluiu:
- não está comprovado que os trabalhadores, titulares dos créditos laborais reconhecidos prestassem a sua actividade no imóvel sobre que impende a hipoteca constituída e registada a favor do apelante (escritura e registo juntos);
- o art. 377º, do actual Código de Trabalho é inaplicável ao caso;
- o crédito do apelante beneficia de hipoteca, o que documentou;
- tem preferência sobre os demais credores – art. 686º, CC: tem privilégio imobiliário especial e prioridade de registo;
- aos créditos laborais reconhecidos aplica-se o regime do art. 749º-1, CC (privi-légio imobiliário geral que cede ao privilégio imobiliário especial do apelante);
- Nesta medida, deve revogar-se a sentença, na parte em que gradua o crédito hipotecário do apelante atrás dos créditos reconhecidos aos trabalhadores, para serem pagos pelo produto da venda do imóvel hipotecado, devendo, em conformidade, o crédito do apelante Banco passar a ser declarado como crédito preferencial, à frente dos créditos laborais, independentemente da sua natureza.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Conhecendo.

Atender-se-á à temática recursiva – art.s 684º-3 e 690º-1,CPrC.

Os pressupostos de facto que lhe são subjacentes ressaltam dos autos e do relatório precedente, estando documentados, para eles ora se remete e aqui se integram, não vindo “ad quem” questionados,
à excepção da afirmação feita na sentença recorrida de que o imóvel apreendido e registado a favor do Banco apelante, era aquele onde laboravam as credoras reclamantes dos créditos laborais (fls. 261), pois não tem qualquer suporte documental demonstrativo de que claramente assim fosse, radicando-se na sua não alegação explícita na petição das respectivas reclamações apresentadas (fls. 9-15 e 134 confrontadas com a escritura e registo do imóvel hipotecado, fls. 117-124); além de que, para a aplicação que, de seguida, faremos do Direito, ao caso, tal facto será irrelevante,
pelo que aqueles ora os temos como certos e seguros.

Será que o direito de crédito hipotecário do Banco reclamante C…………., SA, deve preceder o das trabalhadoras, devendo ser graduado antes e à frente, prioritariamente a este ?

Eis a questão a resolver.

A resposta terá de ser afirmativa.

O actual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Dec. Lei nº 57/2004, de 19.3, entrado em vigor em 15.9.2004, não é o aplicável ao concurso de credores em análise (seu art. 12º-1).
Por isso, sê-lo-á, então, o CPEREF, aprovado pelo Dec. Lei nº 132/93, de 23.4.

O Código de Trabalho que contém o novo regime dos privilégios mobiliários que servem de garantia dos direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores, entrou em vigor, em 28.8.2004, 30 dias após a publicação da Lei nº 35/2004, de 29.7, que regulamentou a Lei nº 99/2003, de 27.8 [art.s 3º e 21º-2 e)].
O art. 377º desse Código, que se reporta aos mencionados privilégios, é aplicável a todos os direitos de crédito dos trabalhadores constituídos desde o dia 28.8.2004, independentemente de derivarem de relações jurídicas laborais ou de instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados, conforme os casos, antes ou depois daquela data.
Apenas se exceptuam do mencionado regime, com a consequência de dever aplicar-se o pertinente regime anterior, os direitos de crédito laborais que se tenham constituído antes de 28.8.2004, no âmbito de contratos de trabalho que se tenham extinguido anteriormente.
Assim, não é aplicável aos direitos de crédito laborais constituídos antes de 28.8. 2004, por via de contratos de trabalho que anteriormente se tenham extinguido.

Como no caso vertente os direitos de crédito reclamados pelos trabalhadores se constituíram antes de 28.8.2004, por via dos contratos de trabalho que se extinguiram, por virtude da declaração de falência, antes da mencionada data, certo é que o regime legal aplicável nesta matéria é do pretérito; ou seja, o previsto nos artigos 737º-1 d), CC, 12º, da Lei 17/86, de 14.6 e 4º, da Lei nº 96/2001, de 20.8 (art. 12º-1, CC).

Resulta do contexto que os mencionados direitos de crédito laborais se venceram antes de 15.9.2003, data em que começou a vigorar a alteração dos artigos 735º-3, 749º e 751º, CC, implementada pelo art. 5º, do Dec. Lei nº 38/2003, de 8.3 (art. 23º).
Todavia, essa circunstância não assume qualquer relevo no quadro da aplicação do art. 749º, CC no âmbito da sucessão das leis no tempo, porque o nº 1 mantém a redacção anterior do mesmo artigo e o nº 2 não tem aplicação no caso vertente.
Ademais, a alteração do disposto no nº 3, do art. 735º e do art. 751º, CC dada a sua estrutura normativa, visou o esclarecimento de dúvidas que se suscitavam no âmbito da aplicação daqueles normativos.
Trata-se, por isso, de normas interpretativas que, “ut” art. 13º-1, CC, se integrem nos normativos que visaram esclarecer, sem que se verifique a restrição a que alude a 2ª parte daquele normativo.

Já antes, porém, em 8.1.1998, por escritura pública, a sociedade falida constituíra a favor do Banco reclamante (então, C……….., SA) a hipoteca sobre o imóvel aqui apreendido para a massa falida, para garantia do pagamento de todas as responsabilidades que assumira, então e entretanto, perante ele.
Hipoteca essa definitivamente registada a favor do Banco reclamante pela inscrição C-1 e Ap. 3/2000600 (fls. 125), da CRP de Espinho, Paramos (art. 687º, CC).
Tais direitos da hipoteca, tendo sido objecto de registo, eles produzem efeitos em relação à massa falida e a terceiros, designadamente no confronto dos outros credores reclamantes que com o recorrente Banco concorram sobre o mencionado imóvel (citado artigo 687º, CC).

A hipoteca consubstancia-se em garantia real de cumprimento de obrigações presentes ou futuras, condicionais ou incondicionais, conferindo ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem do privilégio especial ou de prioridade de registo (art. 686º, CC).
É, pois, de salientar que, em geral, o direito de crédito do credor hipotecário relativamente a determinado imóvel só cede perante o direito de crédito dos credores que disponham de algum privilégio imobiliário especial ou de prioridade de registo.

Assim, diremos que o crédito do recorrente e reclamante Banco, garantido por hipoteca prevalece sobre tais outros créditos garantidos pelos privilégios imobiliários gerais.

No que concerne aos créditos dos trabalhadores, as leis avulsas especiais nºs 17/86 de 14.6 e 96/2001, de 20.8, instituíram tais privilégios imobiliários gerais.

Contudo, os privilégios creditórios imobiliários, “ut” art. 735º-3, CC vigente desde 1.6.1967, são sempre privilégios especiais, envolvidos em sequela e que se traduzem em garantia real e cumprimento de obrigações.
Assim, não previu este diploma substantivo – CC – privilégios imobiliários gerais.

Aquelas leis avulsas especiais nada estabeleceram expressamente quanto ao concurso dos privilégios imobiliários gerais que criaram com outras garantias reais, como no caso a hipoteca nem regularam a sua relação com os direitos de terceiros.

Em concreto, nos termos de aplicação da Lei, diremos, então, que a questão “hic et nunc” consiste em saber se aos privilégios imobiliários gerais – nomeadamente os instituídos por tais leis especiais avulsas – deve ser aplicado o regime decorrente do art. 751º, CC
[ (privilégio imobiliário e direitos de terceiros) - «os privilégios imobiliários (sem-pre especiais – art. 735º-3) são oponíveis a terceiros que adquirem o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à ... hipoteca ... ainda que estas garantias sejam anteriores»] que, afinal, se reporta aos privilégios imobiliários especiais,
ou o regime resultante do art. 749º, CC [ (privilégio geral e direitos de terceiro) - «o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente»] que, afinal, se refere aos privilégios mobiliários gerais.

Lembrar-se-á que a constituição dos privilégios gerais é independente da existência de qualquer relação entre o crédito e o bem que o garante; ao contrário do que sucede com o privilégio especial que se baseia sempre numa relação entre o crédito garantido e a coisa que o garante (Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, II; 500/1).

De foram sintética mas exacta, diremos que os privilégios imobiliários gerais - afinal, aqueles de que beneficiam os créditos laborais,
- nem sequer são verdadeiros direitos subjectivos, mas tão só preferências gerais anómalas,
- são de natureza absolutamente excepcional,
- não incidem sobre coisas corpóreas, bens imóveis certos e determinados; não se consubstanciam em garantias reais, com direito de sequela, de cumprimento de obrigações; derrogando o princípio geral estabelecido no art. 735º-3, CC,
- nem sequer existiam na realidade jurídica, à data da entrada em vigor daquele diploma legal,
- afectam gravemente os legítimos direitos de terceiros, designadamente os do credor cuja hipoteca se encontra devidamente registada, em virtude de não estarem sujeitos a registo (art. 733º, CC),
é-lhes inaplicável o princípio previsto no art. 751º, CC (que tem o seu campo de aplicação limitado aos privilégios imobiliários especiais, nos quais se radica o direito de sequela, próprio dos direitos reais de garantia).

Antes,
pelo facto de serem privilégios imobiliários gerais, lhes deve ser aplicado o regime previsto nos artigos 749º e 686º, CC, constituindo tais referidos privilégios meras preferências legais de pagamento, só prevalecendo relativamente aos créditos comuns.

Deste modo, conflituando, os direitos de crédito garantidos pelos privilégios imobiliários gerais – consubstanciados no caso nos créditos laborais reclamados pelos trabalhadores, provenientes de contratos individuais de trabalho, sua violação ou cessação ... – cedem, são preteridos na sua ordem de graduação, perante os créditos garantidos por hipoteca, por aplicação do disposto nos artigos 686º e 749º e inaplicabilidade do estatuído no art. 751º, CC.

Com sentido mais pormenorizado, reflectido e enriquecedor, neste mesmo sentido, temos as indicações que seguem e para que remetemos:

- Acórdãos do STJ
. de 5.2.2 002 (Reis Figueira), proc. 3 613/01, CJSTJ, X, 1º, pág. 71-74
. de 12.6.2 003, (Santos Bernardino), proc. nº 03 B 1 550
. de 25.10.2 005 (Silva Salazar), proc. nº 2 606/2 004, CJSTJ, III, pág. 86-91
. de 31.1.2 007 (Silva Salazar), proc. nº 07 A 111
. de 22.3.2 007 (João Camilo), proc. nº 07 A 580
. de 17.5.2 007 (Salvador da Costa), proc. nº 07 B 1 309
. de 4.5.2006, revistas nºs 332/06, 2ª secção e 1 408/05

- acórdão do TC nº 284/07, de 8.5.2 007, proc. nº891/04, 1ª secção, publicado no DR, II, nº 122, de 27.6, pág. 18 153 ss.

- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, Coimbra, 1994, pág. 850
- A. Luís Gonçalves, Privilégios Creditórios ... BFDUC, LXVII, Coimbra, 1991, pág. 7
- Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 2ª edição, Almedina, pág. 249
- A. João Leal Amado, A Protecção do Salário, Coimbra, 1993, pág. 154/5
- Menezes Cordeiro, Salários em Atraso e Privilégios Creditórios, ROA, ano 58, Julho de 1998, II, pág. 665
- Luís Miguel Lucas Pires, Os privilégios Creditóros dos Créditos Laborais, in Questões Laborais, ano IX, nº 20, 2002, pág. 173 e
. António Nunes de Carvalho, Reflexos Laborais do CPEREF, pág. 73.

Na sentença deve o Juiz proceder à verificação e graduação dos créditos, sendo que esta é geral para os bens da massa falida e especial para os bens a que respeitam direitos reais de garantia (art. 200º, 1 e 2, CPEREF).

Por isso, no caso, quanto ao bem imóvel com hipoteca, o direito de crédito por esta garantido prevalece na graduação em causa em relação ao produto do prédio apreendido para a massa falida sobre o direito de crédito dos trabalhadores garantido por privilégio imobiliário geral.

Procedem na íntegra as conclusões da alegação do recurso.

Termos em que se decide,
. julgar procedente a apelação e, em consequência,
. se revoga a sentença na parte impugnada e, em conformidade, com o que exposto fica, se reformula,
. por forma a que o crédito do credor apelante Banco C………….., SA, garantido por hipoteca sobre o imóvel apreendido para massa falida seja graduado preferencialmente e à frente dos créditos dos trabalhadores, provenientes dos contra-tos individuais de trabalho (laborais), garantidos por privilégio imobiliário geral.

Custas devidas nas instâncias pela massa falida.

Porto, 28 de Fevereiro de 2008
António Domingos R. Coelho da Rocha
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo