Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0735524
Nº Convencional: JTRP00040786
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
IDENTIDADE DO PEDIDO
Nº do Documento: RP200711080735524
Data do Acordão: 11/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 736 - FLS 38.
Área Temática: .
Sumário: I – No que toca à identidade do pedido, imprescindível à ocorrência de caso julgado material, há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem. Assim:
II – Em primeiro lugar, a liberdade de, em nova acção pedir aquilo que não se pediu na primeira, não se verifica quando o tipo de acção proposta tem uma função de carácter limitativo, quando o pedido se reporta a uma parte não individualizada do objecto do direito e a sentença é absolutória ou condena em quantidade menor do que o pedido e quando, não tendo a acção função limitativa, o A. haja pedido uma parte individualizada daquilo a que teria direito ou, tendo pedido uma parte não individualizada do objecto do direito, haja tido inteiro vencimento.
III – Em segundo lugar, a decisão exclui as situações contraditórias com a que por ela é definida, ou seja, pela decisão em si, não pelos fundamentos.
IV – Em terceiro lugar, embora o caso julgado não se estenda aos fundamentos da decisão, com ele precludem, em caso de condenação no pedido, as excepções invocadas ou invocáveis contra o pedido deduzido, e o caso julgado há-de poder ser invocado quando a sua não extensão aos fundamentos possa gerar contradição entre os fundamentos de duas decisões que seja susceptível de inutilizar praticamente o direito que a primeira decisão haja salvaguardado, de impor praticamente um duplo dever, onde apenas um existe.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Relatório
No .º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de Paredes, B………., C………., D………. e E………. intentaram contra Companhia de Seguros F………., SA acção declarativa de condenação pedindo a condenação desta na quantia de € 151.122,76, a título de violação do direito à vida de G………. (€ 60.000,00), de danos não patrimoniais sofridos pela vítima (€ 15.000,00), de danos não patrimoniais sofridos pela A. B………. (€ 30.000,00), de danos não patrimoniais sofridos pelos restantes AA. (€ 45.000,00, ou seja, € 15.000,00 para cada um) e, ainda, despesas com o funeral e cerimónias fúnebres (€ 1.227,76), fundando a pretensão nos danos que se dizem sofridos em virtude de um acidente de viação ocorrido no dia 2 de Outubro de 2000, pelas 14h30m, na estrada nacional que liga ………. a ………., na R. ………., no ………., freguesia de ………., Paredes, que culminou no atropelamento mortal de G………. pelo veículo pesado de passageiros de matrícula QQ-..-.. .
A Ré invocou a excepção dilatória de litispendência dizendo que os AA. intentaram a acção ordinária a que foi atribuído o n° …/2000 e corre termos no .° Juízo Cível deste Tribunal, no qual há identidade de pedido, de causa de pedir e de partes em relação ao presente. Juntaram cópia certificada da petição inicial e da contestação deduzida nos autos a que aludem.
Replicaram os AA alegando que não existir essa identidade do pedido, da causa de pedir nem das partes em relação a estes autos.
No despacho saneador o Tribunal a quo julgou verificada a excepção de caso julgado e, em consequência, determinou a absolvição da R. Companhia de Seguros F………., SA da instância.
Desta decisão interpuseram os Autores recurso de Agravo concluindo que:
Pelas razões que se deixaram aduzidas, não existe qualquer identidade entre a causa de pedir e o pedido formulado nos presentes autos e o pedido formulado nos autos com processo ordinário que, sob o n° …/200, correram temos no .° Juízo Cível de Paredes;
2°-Não se verifica, assim, a excepção do caso julgado.
3º-Decidindo em contrário, violou a decisão recorrida, por erro de interpretação, o disposto nos arts 493 n.°s 1 e 2, 494° al. i) e 495, todos do C.P.Civil.
Pelo que, deve ser revogada e substituída por outra que, julgando improcedente a invocada excepção do caso julgado, ordene o prosseguimento dos autos.
Os recorridos alegaram sustentando o acerto da decisão recorrida.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Fundamentação
O Tribunal de primeira instância considerou provado que:
1) Em 21/12/2000, os aqui AA., B………., C………., D………. e E………. intentaram uma acção ordinária contra Companhia de Seguros H………., SA, a qual
veio a ser distribuída ao .° Juízo Cível deste Tribunal, com o n° …/2000.
2) Em tal acção, peticionavam os AA. a condenação da aí R. a pagar-lhes a quantia de 24.341.000$00, a título de violação do direito à vida de G………. (10.000.000$00), de danos não patrimoniais sofridos pela vítima (1.000.000$00), de danos patrimoniais sofridos pela A. B………. (2.000.000$00), de danos não patrimoniais sofridos pela mesma (5.000.000$00), de danos não patrimoniais sofridos pelos restantes AA. (6.000.000$00, ou seja, 2.000.000$00 para cada um), despesas com o funeral e cerimónias fúnebres (246.000$00) e, ainda, danos na roupa do falecido (95.000$00).
3) A pretensão dos AA. funda-se nos danos sofridos em virtude de um acidente de viação ocorrido no dia 2 de Outubro de 2000, pelas 14h30m, na estrada nacional que liga ………. a ………., na R. ………., no ………., freguesia de ………., Paredes, que culminou no atropelamento mortal de G………. pelo veículo pesado de passageiros de matrícula QQ-..-.. .
4) Tal processo mostra-se decidido, por decisão já transitada em julgado (cfr. certidão de fls. 170 e ss.).
5) Em 21/9/2005, B………., C………., D………. e E………. intentaram a presente acção contra Companhia de Seguros F………., SA, na qual peticionam a condenação da R. a pagar-lhes a quantia de € 151.122,76, a título de violação do direito à vida de G………. (€ 60.000,00), de danos não patrimoniais sofridos pela vítima (€ 15.000,00), de danos não patrimoniais sofridos pela A. B………. (€ 30.000,00), de danos não patrimoniais sofridos pelos restantes AA. (€ 45.000,00, ou seja, € 15.000,00 para cada um) e, ainda, despesas com o funeral e cerimónias fúnebres (€ 1.227,76).
6) A pretensão dos AA., nestes autos, funda-se nos danos sofridos em virtude de um acidente de viação ocorrido no dia 2 de Outubro de 2000, pelas 14h30m, na estrada nacional que liga ………. a ………., na R. ………., no ………., freguesia de ………., Paredes, que culminou no
atropelamento mortal de G………. pelo veículo pesado de passageiros de matrícula QQ-..-.. .
7) Através da apresentação 34/……, a Companhia de Seguros H………., SA alterou a sua firma social na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa para Companhia de Seguros F………., SA, em face da fusão ocorrida, por incorporação, da primeira com a Companhia de Seguros I………., SA e Companhia de Seguros J………., SA (cfr. certidão de fls. 189 e ss.).
… …
Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), que neles se apreciam questões e não razões e que não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, a questão suscitada é a de saber se estamos perante a repetição de uma causa, integrante da excepção dilatória de caso julgado, por ocorrência da tríplice identidade a que se refere o artº 498º, nº 1, do Código de Processo Civil (identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir), entre a presente acção e a acção que no .° Juízo Cível do Tribunal de Paredes correu termos com o n° …/2000 questão a que o Tribunal recorrido respondeu afirmativamente.
A excepção da litispendência, feita valer quando duas acções estão pendentes, assim como a excepção do caso julgado, feita valer quando uma delas foi já definitivamente julgada, por decisão transitada em julgado, têm na sua base a ideia de repetição - artºs 497º, nº 1, e 498º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (diploma a que pertencerão os demais preceitos legais a citar, sem outra indicação de origem) -, que surge quando os elementos definidores das duas acções são os mesmos.
A primeira das referidas excepções, que é a que interessa agora apreciar, é feita valer na acção que, por via da litispendência, não deva prosseguir, ou seja, naquela para a qual o réu tenha sido citado posteriormente (artº 499º, nº 1) ou, excepcionalmente, naquela que primeiro tenha sido proposta (artº 499º, nº 2).
Além dum objectivo manifesto de economia processual, a excepção da litispendência visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, isto é, que a causa seja julgada mais do que uma vez, o que brigaria com a força do caso julgado.
Face ao estipulado no artº 498º, nº 1, repete-se uma causa quando, entre as mesmas partes, há uma nova acção com o mesmo objecto, isto é, com o mesmo pedido fundado na mesma causa de pedir.
Ao conceito de repetição é indiferente que seja ou não a mesma a posição das partes no segundo processo, podendo ser autor na segunda acção o réu da primeira e vice-versa - cfr. Ac. RC de 9/12/1981, CJ, Tomo V, pág. 76, e artº 481º, al. c), nos termos do qual a citação, entre outros efeitos, inibe o réu de propor contra o autor acção destinada à apreciação da mesma situação jurídica; assim, é irrelevante que, na segunda acção, se peça o mesmo que na primeira ou o inverso do que nela se pediu (v.g., numa acção é pedida a declaração de validade de um contrato e noutra a da sua nulidade), pelo que, basta a identidade de sujeitos e a identidade do pedido, independentemente de quem é autor e réu e de quem afirma a situação jurídica ou a situação de facto e requer a consequente providência judicial.
Na definição de identidade das partes há que atender, como resulta no nº 2 do citado artº 498º, à qualidade jurídica em que autor e réu actuem, e daí que, transmitida a terceiro a situação substantiva da parte, depois de transitada a sentença de mérito, se deva considerar que o adquirente tem a mesma qualidade jurídica do transmitente.
Igualmente há que atender à extensão subjectiva do caso julgado, pois a identidade de sujeitos estende-se àqueles que, não sendo partes, são - hão de ser - abrangidos pela força do caso julgado na primeira acção, não sendo repetível perante o substituído o objecto da acção pendente ou já definitivamente julgada perante o substituto processual.
Quanto à identidade do pedido, há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem.
Assim, em primeiro lugar, a liberdade de, em nova acção pedir aquilo que não se pediu na primeira, não se verifica quando o tipo de acção proposta tem uma função de carácter limitativo, quando o pedido se reporta a uma parte não individualizada do objecto do direito e a sentença é absolutória ou condena em quantidade menor do que o pedido e quando, não tendo a acção função limitativa, o autor haja pedido uma parte individualizada daquilo a que teria direito ou, tendo pedido uma parte não individualizada do objecto do direito, haja tido inteiro vencimento.
Em segundo lugar, a decisão exclui as situações contraditórias com a que por ela é definida, ou seja, pela decisão em si, não pelos fundamentos.
Em terceiro lugar, embora o caso julgado não se estenda aos fundamentos da decisão, com ele precludem, em caso de condenação no pedido, as excepções invocadas ou invocáveis contra o pedido deduzido, e o caso julgado há-de poder ser invocado quando a sua não extensão aos fundamentos possa gerar contradição entre os fundamentos de duas decisões que seja susceptível de inutilizar praticamente o direito que a primeira decisão haja salvaguardado, de impor praticamente um duplo dever, onde apenas um existe.
Através da identidade de causa de pedir, como conjunto dos factos que integram o núcleo essencial de previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido, é excluída a admissibilidade de acção posterior em que o mesmo pedido se baseie em causa de pedir concorrente não cumulável com a invocada na primeira acção, ou com ela cumulável, mas nada acrescentando ao seu efeito, quando na primeira acção o autor tenha obtido vencimento, mas tal já é possível se o réu tiver sido, na primeira acção, absolvido do pedido.
O Tribunal a quo entendeu existir identidade de sujeitos, de pedidos e de causa de pedir nas duas acções e julgou procedente a excepção mas os recorrentes defendem não existir identidade nem de pedidos nem de causas de pedir.
Tendo presente as considerações normativas expostas deveremos centrar-nos, simplesmente, na indagação sobre se no caso concreto existirá essa identidade de pedidos e de causas de pedir, porquanto a identidade de sujeitos é manifesta.
Nesta acção, ora em recurso, em que a Ré foi absolvida do pedido, os Autores pediam a condenação da Ré no pagamento de:
- 15.000,00 € a título de danos morais devidos ao falecido G………. relativamente ao período em que depois do embate se manteve com vida;
- 60.000,00 € a título de danos morais pela perda do direito à vida;
- 30.000,00 € a título de danos morais sofridos pela Autora B………. com as dores sofridas pela morte do marido;
- 15.000,00 € a título de danos morais para cada um dos autores, filho do falecido, pelos danos sofridos com a morte do pai;
- 1.227,76 € a título de danos patrimoniais relativos a despesas de funeral;
Na acção que termos .° Juízo Cível do Tribunal de Paredes com o n° …/2000 os Autores pediam:
- 10.000$00 a título de danos morais pela perda do direito à vida;
- 2.000.000$00 a título de danos patrimoniais referentes à perda de rendimentos pela Autora B………. com a morte do seu marido;
- 5.000.000$000 a título de danos morais sofridos pela Autora B………. com as dores sofridas pela morte do marido;
- 6.000.000$00 a título de danos morais para os autores, filhos do falecido, pelos danos sofridos com a morte do pai;
- 246.000$00 a título de despesas de funeral;
- 95.000$00 pela perda das calças, blusão, camisa, sapatos e dos óculos que a vítima usava.
Relativamente a causa de pedir observamos que na presente acção, em recurso, os Autores descrevem os factos que terão provocado a morte de G………. referindo que o condutor do veículo QQ conduzia a determinada velocidade (25 Kms/h); que seguia desatento e não viu que o G………. levantar o braço e mandar parar o veículo enquanto dava dois passos para dentro da faixa de rodagem, momento em que foi embatido pelo canto esquerdo do veículo, caiu no chão e foi passado por cima pela viatura.
Na acção que correu termos no .° Juízo Cível do Tribunal de Paredes com o …/2000 os autores apresentaram como causa de pedir referindo que o veículo seguiria à velocidade de 50Kms/h e que após efectuar uma curva obliquou para a esquerda até atingir o local onde circulava a pé o falecido G………., atingindo-o pelas costas com a parte dianteira esquerda, projectando-o para frente e embatendo-o depois de novo, concluindo que tal manobra do condutor se ficou a dever a desatenção.
Ora, tomando as expressões do Ac. do STJ de 17/5/2004 no proc. 04B948 relativamente a esta matéria nas acções de indemnização por acidente de viação - como é o caso das duas acções em confronto - a causa de pedir é complexa, integrada não só pelo acidente e pela culpa (ou pelo risco), mas também pelos prejuízos, alegados e peticionados (vd. (cfr., entre outros, Vaz Serra, RLJ, 103º-311 e acórdão do STJ, de 14/5/1971, BMJ 207º-155).
“Por conseguinte, constituindo os danos uma vertente integradora da causa de pedir nesta espécie de acções, se não houver coincidência, (…) entre os prejuízos alegados e peticionados numa e noutra acção, falha a referida tríplice identidade, pressuposto legalmente exigido para a procedência da excepção dilatória do caso julgado.”
E esclarece-se nesse acórdão que a força (reflexa) do caso julgado de uma acção se pode impor a outra (em caso de não existir aquela tríplice identidade) porque “ a chamada força ou autoridade reflexa do caso julgado também pressupõe, tal como a excepção do caso julgado, a tríplice identidade prevista no artigo 498 do Código de Processo Civil.
Já ensinava o Professor Alberto dos Reis, CPC Anotado, III-92/93, que não é possível criar duas figuras distintas - o caso julgado excepção e a autoridade do caso julgado -, pelo que está errado quem entenda que «o caso julgado pode impor a sua força e autoridade, independentemente das três identidades mencionadas no art.502º» (actual 498).
O que acontece, segundo a lição do eminente civilista, é que «o caso julgado exerce duas funções: - a) uma função positiva; e b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade...a função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado. Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades».”.
Aplicando estas considerações ao caso vertente e tomando apenas por referência a comparação do que se pedia nas duas acções e naquilo que nelas constituía a causa de pedir, a dificuldade resumir-se-ia em saber se existiria identidade de causas de pedir pois, na afirmativa, a acção deveria apenas prosseguir para se apreciar da indemnização devida a título de danos sofridos pela vítima durante o tempo que se manteve vivo depois da colisão, uma vez que todos os outros itens indemnizatórios estavam já presentes na primeira acção decidida e, como se viu anteriormente, nessa acção, o pedido (no confronto com a nova acção interposta) reportava-se a uma parte que não foi individualizada do objecto do direito (parte essa que por nada ter sido dito se julgou como totalidade) e a sentença foi absolutória.
Porém, a não existir identidade de causas de pedir, o pedido formulado nesta acção deveria ser apreciado por inteiro uma vez que é apenas a tríplice identidade afirmada que tem a virtualidade de obstar ao conhecimento do mérito por existência de caso julgado.
Os Autores em ambas as acções demandam a Ré por culpa efectiva do condutor do veículo QQ por ele ir desatento e essa atenção ter dado causa ao atropelamento mas enquanto na primeira acção se diz que ele seguia a 50 Kms/h na outra refere-se que ele circulava a 25 Kms/h e, também, na primeira alega-se que foi o veículo a sair da estrada e a colidir com o peão na berma por onde seguia e, na outra, já se afirma que foi a vítima a entrar na estrada e fazer sinal de paragem ao condutor que o não viu.
A causa de pedir é formada pelos factos jurídicos de onde procede a pretensão deduzida (vd. arts.498 nº4 do CPC) e esta expressão “factos jurídicos” não equivale a factos materiais mas sim ao conjunto daquelas ocorrências da vida e sufragadas na realidade espacio-temporal que fundam o pedido e nos acidentes de viação a causa de pedir remete sempre para aquilo que os factos expostos deixam concluir juridicamente.
Deste modo tudo o que de concreto se diz a propósito do lugar, do tempo, das condições da via ou dos comportamentos de condução, formam a causa de pedir no sentido deles resultar a exposição da culpa ou do risco.
E é precisamente no domínio da causa de pedir em presença nas duas acções que cremos que se encontra a solução da questão que nos ocupa.
Temos por certo que quando se afirma que a culpa de determinado acidente deve ser atribuída a um condutor porque ele conduzia desatento e a determinada velocidade não se pode dizer que a causa de pedir tenha mudado quando noutra acção se vem alegar que o veículo ia a velocidade diferente (menor). Porém, cremos que a circunstância de se afirmar numa outra acção um comportamento diferente e não alegado anteriormente, quer da vitima quer do condutor já altera a causa de pedir, por esta resumir uma complexidade que integra as condições alegadas do acidente, a culpa (ou o risco), mas também os prejuízos alegados e peticionados.
Mas isto não responde à nossa questão porque sobre a causa de pedir incide um juízo jurisdicional que declara, ou não, a responsabilidade pelo acidente, em termos de culpa ou risco.
Se na acção o tribunal absolve por não ter declarado a responsabilidade pelo acidente, por ela se não ter apurado, a existência de causas de pedir diversas pode de facto permitir a propositura de outra acção mas se a culpa foi declarada já não se trata de apenas de poder ou não repetir a acção com diferentes pedidos ou causas de pedir mas de saber que autoridade tem o decidido na primeira acção sobre a segunda.
Verificamos que (vd. fls. 75 a 80 dos autos) o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão na acção anteriormente intentada pelos ora recorrentes, transitado em julgado, alterando a sentença da primeira instância e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, decidiu absolver a Ré Seguradora do pedido por entender e declarar que o acidente havia ocorrido por culpa exclusiva do lesado.
Assim, no caso em estudo, temos uma situação em que através de uma decisão judicial transitada em julgado já se declarou que a culpa efectiva na ocorrência de determinado acidente pertenceu a lesado e esta questão faz, de novo, questionar a autoridade que deve merecer este caso julgado pois que desconsiderá-lo poderá ter como consequência permitir que um outro tribunal venha sobre o mesmo acidente a determinar uma diferente responsabilidade quanto á culpa.
Na sequência do ensinado pelo Prof. Alberto dos Reis e anteriormente transcrito, também Lebre de Freitas [CPC Anotado, Vol 2º, 325], refere que pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito enquanto a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.
Sabendo-se pela exposição realizada que a excepção do caso julgado improcederia por falta da chamada tríplice identidade, a questão que agora pode e deve pôr-se, nessa outra perspectiva da autoridade do caso julgado, é a de saber se, e em que medida, a anterior decisão se impõe neste processo.
Trata-se de determinar os limites objectivos do caso julgado.
Com relevo para esta questão, o art. 660º nº 2 do CPC impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido á sua apreciação e nos termos do art. 673º, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.
Como se decidiu no ac. desta Ralação de 12/12/2002 relatado pelo Sr. Des. Pinto de Almeida e publicado em dgsi.pt “Boa parte da doutrina defende que os limites objectivos do caso julgado se confinam à parte injuntiva da decisão, não constituindo caso julgado os fundamentos da mesma [Cfr. Castro Mendes, DPC, III (1980), 282 e 283 (incide sobre a decisão final referente ao pedido e não mais); Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 695 (decisão contida na parte final da sentença, ou seja, a resposta injuntiva à pretensão do autor ou do réu; a força do caso julgado não se estende aos fundamentos da decisão); cfr também Manuel de Andrade, Noções Elementares (1976), 334 e Anselmo de Castro, Lições de processo Civil, I (1970), 363 e segs].
Refere, porém, Teixeira de Sousa [Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 578] que reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.
Rodrigues Bastos [Notas ao CPC, III, 3ª ed., 200 e 201] afirma, também, que a posição predominante actual é favorável a uma mitigação do referido conceito restritivo de caso julgado, no sentido de, considerando embora o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada.
Acrescenta este Autor que, ponderadas as vantagens e os inconvenientes das duas teses em presença, afigura-se que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.
É este, pensamos, o entendimento mais consistente da na nossa jurisprudência [Cfr. os Acs. do STJ de 1.3.79, BMJ 292-190 e RLJ 112-278, com anotação do Prof. Vaz Serra, de 9.6.89, BMJ 388-377, de 12.1.90, BMJ 393-563, de 6.2.96, BMJ 454-599 e de 30.4.96, CJ STJ IV, 2, 48 e Ac. STJ de 5/5/05 in dgsi.pt. Também o Ac. da Rel. de Coimbra de 21.1.97, CJ XXII, 1, 22, em que estava em causa, precisamente, a questão da culpa em acidente de viação], que se adopta pelas razões apontadas, constituindo um critério moderador do rígido princípio restritivo dos limites objectivos do caso julgado.
Como se afirma no citado Ac. do STJ de 12.1.90, as razões essenciais da decisão tornam-se indissociáveis da sua parte dispositiva, nela se consubstanciando. Por isso, constituiria grave incongruência de julgados dar à questão fundamental e necessariamente comum para a definição dos pedidos que representam o objecto de diversas acções entre os mesmos sujeitos processuais, solução divergente da que foi estabelecida em decisão anterior transitada em julgado.”
Regressando ao caso dos autos, estamos perante causa de pedir complexa, constituída pelo acidente e pelos danos sofridos.
Estes elementos da causa de pedir são substancialmente idênticos aos da anterior acção com a s únicas diferenças dos montantes do pedidos e de uma alínea desse mesmo pedido e bem assim com alteração dos factos referentes à velocidade do veículo e ao modo como, dentro da estrada teria ocorrido o acidente.
O acidente de viação é o mesmo, tendo o tribunal apreciado e decidido na anterior acção a forma como o mesmo ocorreu e declarado expressamente a quem é culposamente imputável.
Cremos, assim, que não tem cabimento discutir-se, de novo, essa questão (a da culpa na produção do acidente), tendo a decisão anterior de se repercutir necessariamente neste procedimento, entre as mesmas partes, considerando-se assente esse fundamento, essencial aos pedidos formulados, sob pena de afrontamento aos princípios da segurança do direito, da coerência das decisões e do prestígio dos tribunais.
Como se afirma no citado acórdão do STJ de 12.1.90, seria clamorosamente aberrante e intolerável que, relativamente aos mesmos sujeitos da relação quer processual quer jurídica e ao mesmo facto se produzissem decisões contraditórias.
Do que fica dito, decorre que a decisão anteriormente proferida, transitada em julgado, se deve impor também neste procedimento, no que respeita ao aludido elemento da causa de pedir, gerador da responsabilidade civil imputada ao segurado da Requerida.
Daí derivando a improcedência do recurso.
… …
Decisão
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao Agravo e, em consequência, pelas razões expostas mantém-se a decisão de não fazer prosseguir a acção.
Custas pelos Agravados.

Porto, 8 de Novembro de 2007.
Manuel José Pires Capelo
Ana Paula Fonseca Lobo
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão