Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
171/11.0TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
GARANTIA BANCÁRIA
ON FIRST DEMAND
CONTRATO DE FACTORING
Nº do Documento: RP20110428171/11.0TVPRT.P1
Data do Acordão: 04/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não obstante a autonomia do contrato de garantia bancária on first demand relativamente à obrigação garantida, em situações excepcionais, o devedor pode recorrer ao procedimento cautelar comum, onde deverá alegar e demonstrar os factos que fundamentam o pedido de paralisação daquela garantia.
II - São de admitir como integrantes daquelas situações factos relacionados com o cumprimento do contrato-base, designadamente a excepção de não cumprimento, o incumprimento definitivo por parte do beneficiário da garantia ou a extinção da obrigação garantida, desde que a situação seja manifesta, evidente, concludente ou inequívoca.
III - Todavia, nesses casos excepcionais, serão insuficientes a summaria cognitio e o fumus boni iuris, normalmente ligados à fixação dos factos relativos à existência do direito do requerente e ao periculum in mora, sob pena de violação do princípio da autonomia da garantia bancária, reforçado nas situações em que é fixada a cláusula “à primeira solicitação”.
IV - No contrato de factoring com recurso, os créditos cedidos ao factor devem considerar-se retransmitidos ao cedente quando, nos termos desse contrato, vencidos e não pagos pelo devedor, o factor os debita ao cedente e os mantém apenas a título de caução, ainda que também os possa cobrar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 171/11.0TVPRT.P1 – 3ª Secção (apelação)
Varas Cíveis do Porto

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Teresa Santos
Adj. Desemb. Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, S.A., NIPC ………, com sede no …, freguesia de … ou …, comarca de Vila Verde (….-… …), instaurou procedimento cautelar comum contra
1- C…, S.A., NIPC ………, com sede na Rua …, …, ….-… Porto; e
2- D…, S.A., NIPC …, com sede na Rua …, nº .., ….-… Lisboa, alegando essencialmente o seguinte:
Em 14.1.2008 requerente e 1ª requerida acordaram que, no exercício das suas actividades, aquela executaria para esta uma determinada obra mediante o preço de € 13.170.000,00, a pagar em prestações mensais com base em autos de medição dos trabalhos realizados, a facturar e com vencimento a 90 dias.
A obra foi executada, com as alterações solicitadas pela 1ª requerida encontrando-se em falta o pagamento de várias facturas e respectivos juros de mora, no total de € 2.258.951,72, a que a crescem ainda outros valores que discriminou e que elevam o referido crédito para a quantia de € 2.450.000,00, sem que a 1ª requerida tenha qualquer crédito sobre a requerente.
Em 23.8.2010 a 1ª requerida já se encontrava em mora no pagamento de valores --- ainda hoje por pagar ---, o que justificava a invocação da excepção de não pagamento. E nada mais tendo pago a partir daí, poderia a requerente ter resolvido o contrato de empreitada desde 11.9.2010. Contudo, continuou a executar a obra e a reparar desconformidades.
Para além da requerente ter ainda prestado outros serviços em obra que a 1ª requerida não pagava, esta ainda dizia que só pagaria o crédito da requerente em função das vendas que viesse a realizar.
Depois de ter violado o exercício do direito de retenção que a requerente exerceu sobre as fracções construídas, em 4.2.2011 a 1ª requerida comunicou à requerente a proibição de entrada no condomínio/obra e no dia seguinte fez expulsar dali um funcionário da requerente.
No dia 8.2.2011 a requerente deduziu procedimento cautelar de restituição provisória da posse e a 1ª requerida declarou resolvido o contrato de empreitada, invocando, além do mais, atrasos na conclusão dos trabalhos e deficiências de construção não reparadas; o que a requerente considera falso.
Desde data anterior a 23.8.2010, em que se confirmou a conclusão dos trabalhos, a C…, S.A. já estava em incumprimento com o pagamento de € 1.074.396,70 que, entretanto, se avolumou para a referida quantia de € 2.179.275,07, mais juros.
Para além de poder basear-se no esbulho das fracções retidas, é à requerente que cabe o direito de resolver o contrato por atraso superior a 60 dias no pagamento da importância de € 2.179.275,07 correspondente ao preço facturado desde 14.4.2010, o que a requerente declarou (resolução da empreitada) junto da 1ª requerida por carta enviada a 14.2.2011.
Acontece que, com a assinatura do contrato, a requerente entregou à 1ª requerida uma garantia bancária no valor de 5% do preço global fixado ou seja de € 658.500,00, para caução da boa execução da obra. Seria accionada pela última na medida em que se constituísse credora da requerente por multas e preço relativo a obras que efectuasse em substituição da requerente.
Não há qualquer fundamento para o accionamento daquela garantia bancária, sendo aquela requerida que deve à requerente cerca de 4 vezes o valor dela (cerca de € 2.450.000,00). E ainda que existisse aquele fundamento, o contrato prevê a possibilidade do exercício de compensação de créditos entre as partes pelos valores facturados ou a facturar.
Não havendo justificação para a resolução do contrato e para o accionamento da garantia por parte da 1ª requerida, e estando fundamentada a resolução do contrato declarada pela requerente, a garantia bancária de boa execução da obra caducou.
Tal garantia é autónoma, “à primeira solicitação”, em que o 2° requerido “renuncia expressamente e sem reservas à faculdade de contestar a validade do pagamento” e se obriga a pagar “sem apreciar a justiça da reclamação”.
E, agora, após a declaração da resolução do contrato, ainda que injustificada, pela 1ª requerida, receia-se seriamente que esta accione a garantia bancária pelo seu valor total de € 658.500,00, sem qualquer preocupação de justificar o seu accionamento pela medida de qualquer pretenso crédito por multas ou por custos de reparações em substituição.
Conhecedor do conflito --- que, de facto, só à 1ª requerida é imputável --- o próprio Banco já receia o accionamento da garantia prestada, a muito curto prazo, pelo seu valor total.
Nesta situação, somando o seu crédito de cerca de € 2.450.000,00 não pago ao valor da garantia bancária cujo reembolso será exigido pelo Banco logo que efectue o respectivo pagamento, receia-se a própria insolvência da requerente, actualmente já com extremas dificuldades em se financiar.
É a 1ª requerida que, com o seu manifesto incumprimento, pelo seu débito protelado de € 2.450.000,00 e determinante da justa resolução do contrato, que faz caducar a própria garantia.
Nestas condições, a utilização da garantia constitui manifesta fraude e abuso de direito na utilização da garantia bancária.
Por isso estão reunidos os pressupostos determinantes da decretação do procedimento cautelar imprescindível à tutela do invocado direito da requerente e adequado a assegurar a efectividade do mesmo obstando ao risco de lesão que se encontra demonstrado. E a requerida não fica sujeita a qualquer prejuízo já que é assegurada a manutenção da garantia, à custa da requerente, até à decisão definitiva.
Com efeito, pedindo a dispensa de audiência prévia dos requeridos, a requerente concluiu o seu requerimento com o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente procedimento ser julgado procedente e, em consequência, ser decretada:
● A suspensão do pagamento à 1ª Rqda da quantia de 658.500,00€, correspondente à garantia bancária referida no art.º 53 supra e copiadas no Doc. 19, ou de parte substancial dela, até ao trânsito em julgado da acção definitiva de que a providência cautelar é incidente preliminar e que a Rqte vai instaurar;
● A intimação do Rqdo Banco para que se abstenha de, por efeito daquela garantia, pagar à 1ª Rqda ou a quem esta ceda a sua posição contratual a mencionada importância ou de parte substancial dela, até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo à mencionada acção definitiva a propor pela Rqte, procedendo, então, em conformidade com essa decisão transitada.» (sic)
Foram juntos diversos documentos.
Dispensada a audiência prévia dos requeridos, foi designada e teve lugar a audiência de inquirição das testemunhas arroladas, em cujo âmbito se ordenou a junção de um contrato de factoring celebrado entre a requerente e o M…, a que aludem documentos juntos aos autos e a que, alegadamente, se referiu uma das testemunhas inquiridas.
Em cumprimento do ordenado, a requerente juntou cópia daquele contrato e outros documentos (fl.s 106 a 145).
Foi depois proferida sentença que julgou improcedente o procedimento cautelar, condenando a requerente como litigante de má fé no pagamento de multa pelo valor equivalente a € 15 UC.

Inconformada, a requerente apelou da sentença formulando as seguintes CONCLUSÕES, ipsis verbis:
«OS REQUISITOS DA RECUSA DE ENTREGA DA GARANTIA PELO GARANTE VERSUS A SUSPENSÃO OU O IMPEDIMENTO JUDICIAL DA SUA EXECUÇÃO

1ª- Conforme D1 supra, não é correcta a ideia de que, em providência cautelar comum o Tribunal só possa ordenar o não pagamento de garantia bancária autónoma first demand verificados que sejam os pressupostos em que é legítimo ao garante recusar tal pagamento, ou seja em face de prova “inequívoca, pronta e líquida” da lesão do direito do devedor, pois o regime aplicável ao Tribunal é o dos art.ºs 381° e ss. do Código de Processo Civil, sem as limitações impostas à entidade garante.

2ª- O tribunal deve julgar de acordo com os arts. 381° e ss. do Código de Processo Civil, decretando a mesma quando concluir pela existência de fundado receio de lesão grave, dificilmente reparável, do direito invocado pelo requerente, tendo em conta, naturalmente, a especial natureza do negócio jurídico em causa e a necessidade de não subverter o mecanismo de protecção criado pelas partes para proteger os interesses do credor/beneficiário.

3ª- Conforme D.2 supra, a sentença restringe indevidamente que a Rqte baseou a sua pretensão cautelar na existência de fraude manifesta com base nos factos invocados no art. 55° da petição inicial, pois nos art°s 74 a 76 da PI, a Rqte, dizendo pretender acautelar a fraude manifesta, invoca expressamente a verificação do abuso do direito e a violação das regras da boa fé – conforme o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 14-10-2004 citado na decisão recorrida, alegando aí: Tal actuação da Rqda é qualificável como abuso de direito, em conformidade com o disposto n o art. 334° do Código Civil, contrário à boa-fé que deve impor-se na regras de comércio e constituindo fraude manifesta

AINDA A RECUSA DE ENTREGA DA GARANTIA PELO GARANTE VERSUS A SUSPENSÃO OU O IMPEDIMENTO JUDICIAL DA SUA EXECUÇÃO, bem como:
● A AUTONOMIA DA GARANTIA
● E O CUMPRIMENTO DO CONTRATO DE EMPREITADA

4ª- Conforme D.3 supra, também se repara a sentença na parte em que invoca o carácter autónomo da garantia como impeditiva da apreciação das questões relacionadas com a execução do contrato de empreitada.
É que a autonomia invocável perante o Banco garante não pode obstar a que o Tribunal aprecie a actuação das partes no cumprimento do contrato base, para poder pronunciar-se sobre a violação das regras das regras da boa fé (art. 762°, nº 2, do C.Civil) e sobre a verificação do procedimento abusivo do beneficiário (art. 334° do mesmo diploma).

5ª- Igualmente se discorda da douta sentença, na parte em que refere que se apresenta como controvertida a questão de saber quem incumpriu o contrato de empreitada em face das cartas resolutivas de ambas as partes juntas a fis. 80 e ss. e 82 e ss, por ser manifesto que essa carta de fls. 80 e ss. é contrariada por factos julgados provados (FP) e por documentos emitidos pela própria Rqda, também incorporados nos autos, que, também em D.3 supra, se discriminaram.

● CRÉDITO INCLUÍDO E NÃO INCLUÍDO NO FACTORING
● SE A RQTE É CREDORA DA RQDA QUANTO AO VALOR INCLUÍDO NO FACTORING
● SE A PERTENÇA À RQTE DO DIREITO DE RECEBER É RELEVANTE PARA A CONCESSÃO DA PROVIDÊNCIA

6ª- Conforme demonstrado em D.4.1 supra, face aos factos que julgou provados, é falsa a conclusão da douta sentença de que a Rqda não seja devedora de quaisquer quantias à aqui Rqte, já que esta cedeu tais créditos ao factor e notificou-a da cessão, pois se evidencia que a Rqte mantinha um crédito directo, por dívida da Rqda, não recebida pela Rqte nem pelo Factor, e também não antecipado por este, de cerca de 400.000€.

7ª- Conforme demonstrado em D.4.2 supra, tendo em conta o tipo de factoring (impróprio), a RQTE, à data da dedução da providência cautelar, ERA EFECTIVAMENTE CREDORA DIRECTA DA RQDA do valor incluído no factoring, pois nuclear no Factoring é o acordo de cobrança de dívidas, e o contrato de factoring com recurso e antecipação assume a natureza “de um mútuo e de um mandato comerciais”, de modo que a detenção dos créditos como garantia de adiantamentos, é compatível com a mera existência duma relação de mandato, conforme com o previsto no art° 247°.1 do Cód. Comercial, no regime do mandato comercial.

8ª- De facto, a relativa ou imprópria “cedência” de créditos no factoring com recurso (direito de regresso) comunga mais da natureza do mandato, em que o FACTOR detém os créditos tal como o Banco detém a letra endossada em regime de cobrança, não no seu interesse e para si, mas por mandato e no interesse do ADERENTE, de modo que essa afasta-se do regime nuclear da cedência de créditos dos art°s 577° e ss. do CCivil, em especial do art° 587° do CCivil, pois o Factor além de não assumir o risco da insolvência do devedor nem sequer assume promover o pagamento coercivo, não tendo legitimidade para o accionamento judicial do devedor.
Com isso não é incompatível a notificação que havia sido feita à Rqda para, no vencimento, pagar voluntariamente ao Factor: o mandato comercial permite-o e a Rqte também tinha interesse no pagamento que a Rqda devia ter feito ao Factor.

9ª – E. ainda conforme D.4.2 supra no caso, da CL. XII.2 e 3 do contrato, a fls. 103 dos autos, resulta que, não pagando a Rqda voluntariamente, no vencimento das facturas ou o mais tardar até 90 dias após, o Factor, no uso do direito de regresso, debitaria os créditos ao ADERENTE, os quais, então, permaneceriam em regime de cobrança, podendo ser utilizados como CAUÇÃO dos fundos antecipados ao ADERENTE, ou seja, pelo menos desde então o Factor não era titular/possuidor em nome próprio, detinha-os como créditos ADERENTE, - não sendo concebível que fosse prestada CAUÇÃO ao Factor com direitos próprios deste mesmo – portanto, face àquela Cláusula e ao Doc. de fls. 138, à data da providência a Rqte era, em pleno, credora da Rqda – o que também é coerente com o que fora o comportamento das partes – que também releva, conforme o art° 236°. 1 do CCivil – na “cedência”/prorrogação de finais de Outubro de 2010 (fls. 128 a 134 aos autos)

Sem prescindir
10ª- Mas, de facto, conforme demonstrado em D.4.3, a pertença à Rqte do direito de receber os cerca de 2.450.000€ devidos pela Rqda como preço da obra realizada por aquela não é relevante para a concessão da providência cautelar, uma vez que, para o êxito desta, o que importa é a provável a existência de um direito da Rqte, o fundado receio de que sofra lesão grave e de difícil reparação, caso a garantia bancária seja executada antes de ser proferida decisão de mérito em acção judicial a intentar – art°s 381° e ss. do CPC

11ª- Ora, a Rqte tinha e tem sobre a Rqda O DIREITO de exigir o pagamento do preço da empreitada, seja a si, seja ao Factor – e esse direito, se não é UM CRÉDITO ou, PELO MENOS UM DIREITO DE CRÉDITO, sendo indiferente que a Rqda pague ao Factor (ao qual a Rqte se encontra em débito) ou à própria Rqte, pois qualquer das vias satisfaz o interesse e o direito da Rqte, não havendo qualquer diferendo entre a Rqte e o Factor sobre a legitimidade para receber – como é do conhecimento da Rqda.

12ª- O que releva é só a dívida da Rqda e o seu intolerável agravamento com a execução da garantia, em manifesta defraudação dos fins para os quais esta foi prestada, com manifesta má fé, sem motivo, sem interpelação e às ocultas da Rqte e, por tudo isso, em abuso de direito.

13ª- Ainda conforme D.43 supra, os FP 11 a 27, 41, 42 e 45 demonstram que:
● a Rqda deve cerca de 2.450.000€ da obra que para ela fez a Rqte;
● a Rqte, para caução de boa execução dessa obra prestou à Rqda a garantia bancária de 658.500€;
● a própria Rqda confirmou que a obra foi concluída, em condições de ser recebida;
● à data dessa confirmação a Rqda já estava, como, desde então sempre esteve, em mora justificativa da excepção de não cumprimento;
● essa mora veio a justificar a resolução declarada em 2011-02-14; e
● apesar da mora da Rqda, até à resolução, a Rqte sempre cooperou na execução do contrato, sem que a Rqda a tivesse substituído e sem que lhe tivessem sido aplicadas quaisquer multas por incumprimento;
E, na conjugação daqueles factos com os FP 44 a 47, também se demonstrou que:
● a execução da garantia bancária de 658.500€, para mais integralmente e de uma só vez, sem pré-aviso, além de infundada, ocorre em manifesta violação dos fins para os quais foi prestada
● e em agravamento do intolerável débito da Rqda, que constitui um dano grave e de difícil reparação, que põe em causa a capacidade e viabilidade do necessário financiamento da Rqte, bem como põe em causa a sobrevivência empresarial desta ou, pelo menos, é fundado o receio dessa lesão grave e de difícil reparação,
Pelo que a intimação dos Rqdos no sentido da não execução da sobredita garantia constitui a providência judicial adequada ao restabelecimento da ordem jurídica.

Por isso, estão preenchidos os requisitos dos artºs 381°.1 e 387°. 1, dentro dos limites de proporcionalidade do nº 2 deste último normativo.

14ª- A Rqte apenas não conseguiu pagar ao Factor os valores antecipados – pondo, por isso, em causa, aos olhos da decisão impugnada, o êxito da providência solicitada – porque a sua situação financeira é grave, exactamente devido ao incumprimento da Rqda perante o Factor, pelo que não seria sensata a decisão judicial que se conformasse com esse círculo vicioso gerado pela própria Rqda que, depauperando a Rqte, a impede de lhe exigir a justiça devida, ou seja, a decisão judicial impugnada ocorre em manifesto ABUSO DO DIREITO, porque consubstancia manifesto prémio da Rqda infractora, ao prestar-se a servi-la nos seus propósitos iníquos.

15ª- Apesar do sensato procedimento do 2° Rqdo referido no final de D-3 supra, que considerando existir prova líquida e inequívoca de prática abusiva, está a recusar o pagamento solicitado pela Rqda, o fundado receio é actual, pois existe o risco de a Rqda conseguir a execução judicial da garantia em processo autónomo em que a Rqte não é parte e em que os requisitos judiciais da defesa do aqui 2° Requerido são mais exigentes que os previstos para a aqui Rqte.

DA LITIGANCIA DE MÁ-FÉ

16ª- Como demonstrado em D. 5 supra, a condenação como litigante de má-fé exige a alegação de facto relevante, não verdadeiro e com dolo ou negligência grave; e, concluindo nesse sentido, a sentença impugnada entendeu que, ao ter alegado, nos art°s 55-e) e 59 da PI que a Rqda lhe devia cerca de €2.450.000,00 a Rqte invocara facto relevante que sabia ser falso, por todo o crédito se encontrar cedido pelo contrato de factoring.

17ª- Mas, como demonstrado em D.4.1, desde logo, nem todo o crédito da Rqte sobre a Rqda fora “cedido” pelo factoring, restando, não incluídos, cerca de 400.000€; como demonstrado em D.4.2, o factoring em apreço, pelo seu tipo, não constituiu verdadeira “cedência” de crédito, mas, antes, um mandato caucionado, que deixou o crédito na esfera jurídica da Rqte; e, nos termos do contrato celebrado, o Factor reconhece expressamente a detenção do crédito como bem da Rqte confiado àquele como mera caução.

18ª- Como demonstrado em D.4.2, o entendimento da Rqte, no sentido de que o crédito lhe pertence tem apoio em doutrina universitária pelo que corresponde a questão de direito – o que, desde logo, afasta o qualificativo de facto dolosamente inverídico, bem como o de alegação feita com negligência grave; de facto é alegação tributária daquele entendimento de que a “cedência” de créditos imprópria, em factoring impróprio, é mero instrumento do mandato comercial, mantendo a Rqte como credora ou como credora principal;

19ª- Ainda no sentido do afastamento da má fé, a Rqte não ocultou a existência do contrato de factoring, nem escondeu que o débito da Rqda estava incluído naquele contrato e de que, por ele, colhera financiamento – pois alegou tais factos nos art°s 38, 39 e 64 da PI de modo suficientemente expresso e inteligível para o Tribunal; e, por outro lado, logo que o Tribunal pretendeu maior esclarecimento de tais factos a Rqte foi pronta e a todos os títulos cooperante na informação e junção de todos os elementos aos autos.» (sic)

Terminou pedindo a revogação da decisão recorrida, intimando-se a recorrida a abster-se de accionar a garantia bancária, mais devendo ser revogada a condenação da requerente como litigante de má fé.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*

II.
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil[1], na redacção que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável).
O Tribunal deve apreciar todas as questões decorrentes da lide, mas, embora o possa fazer, não tem que discutir todos os argumentos ou raciocínios das partes; apenas deve considerar o que for necessário e suficiente para resolver cada questão[2].

Importa saber:
1- Se a requerente, empreiteira, tem o direito de obter, através do presente procedimento (judicial) cautelar, a suspensão da eficácia da execução de uma garantia bancária on first demand que prestou a favor da requerida C…, S.A., dona da obra, para “assegurar o pagamento de quaisquer quantias que venham a ser devidas pela Ordenante à Beneficiária por força da uma eventual mora ou um eventual incumprimento do Contrato, de quaisquer danos decorrentes desse incumprimento ou dessa mora ou da violação de qualquer outra obrigação que para a Ordenante emerge do Contrato”.
2- Se a requerente agiu como litigante de má fé.
*
III.
São os seguintes os factos suficientemente indiciados e considerados atendíveis pela 1ª instância:

1- A Rqte é uma sociedade comercial que, de forma regular, com fim lucrativo e por conta própria se dedica ao exercício, além do mais, da actividade de construção civil, executando obras, mediante o pagamento do respectivo preço;

2- A 1ª Rqda é uma sociedade comercial que, de forma regular, com fim lucrativo e por conta própria se dedica ao exercício, além do mais, das actividades de construção e de compra e venda de imóveis;

3- Em 2008-01-14, no exercício das correspectivas actividades, a Rqte, na qualidade de empreiteira, e a 1ª Rqda, na de dona da obra, celebraram um contrato, nos termos do qual aquela se obrigou a executar a obra de construção de um edifício, com 21.422m2, para habitação e equipamento no prédio sito na Rua …, freguesia de …, desta cidade e comarca, descrito na CRP sob os nºs 472 e 578 (ora anexados no nº 1804), mediante o preço de 13.170.000,00€, acrescido de IVA à taxa aplicável;

4- Na Cl. 2ª -c) do dito Contrato, acordou-se, além do mais, que as partes se vinculavam aos direitos e obrigações constantes do Caderno de Encargos incluindo as respectivas condições jurídicas – documento que, além doutros, era perfilhado como fazendo parte integrante do mesmo Contrato;

5- A 1ª Rqda obrigou-se a pagar o preço em prestações mensais, com base em Auto de Medição dos trabalhos realizados, apresentado pela Rqte, até ao dia 25 da cada mês, e verificado pela Fiscalização, nos 5 dias úteis subsequentes, valendo o silêncio desta como aprovação tácita;

6- Emitindo-se, então, a factura de liquidação da prestação mensal com vencimento a 90 dias da data do auto;

7- A Rqte procedeu à execução da obra, no respeito pelos projectos mandados elaborar pela 1ª Rqda e por esta apresentados;

8- Com as alterações que esta última solicitou;

9- Os autos de medição dos trabalhos, incluídos os de trabalhos a mais, com o cômputo dos trabalhos a menos, foram oportunamente apresentados à Fiscalização;

10- E, em conformidade com a aprovação de cada auto, foi emitida a respectiva factura, remetida à 1ª Rqda na data da emissão e por esta recebida sem reclamação, por verificada aquela conformidade e nada mais haver a opor;

11- Das facturas emitidas, cujos originais a 1ª Rqda tem em seu poder e não reclamou, estão por pagar as seguintes:
12- O crédito correspondente ao preço liquidado pelas facturas emitidas, ainda não pago, é, pois, de 2.179.275,07€, e os juros de mora importam em 79.676,65€ - o que tudo soma 2.258.951,72€.

13- A cargo da 1ª Rqda estão ainda os seguintes créditos emergentes do contrato supra referido:
-O valor do Auto de medição nº 32 de trabalhos contratuais, respeitante:
● aos trabalhos previstos no Contrato que, após a conclusão dos demais, ficaram pendentes dos abastecimentos definitivos de água e electricidade e
● ao fecho dos valores dos demais trabalhos considerados no preço fixado no Contrato, já remetido à Fiscalização e tacitamente aprovado, no valor de 43.561,78€+IVA;

14- O valor do Auto de medição nº 5 dos trabalhos a mais, também já remetido à Fiscalização e tacitamente aprovado, no valor de 129.228,34€+IVA;

15- O valor da água e da electricidade fornecida, através dos contadores da obra, por atraso dos respectivos abastecimentos definitivos, a cargo da 1ª Rqda, aos clientes, subempreiteiros e fornecedores desta, que o solicitou;

16- Os custos suportados pela Rqte, por solicitação da 1ª Rqda, com a instalação e funcionamento do sistema de bombagem provisório das águas residuais e pluviais, por atraso das respectivas ligações definitivas, a cargo da 1ª Rqda ou condicionadas pelo abastecimento definitivo de electricidade, a cargo da 1ª Rqda;

17- O valor da comparticipação da 1ª Rqda na reparação da central técnica da piscina, danificada por inundação consequente do atraso no abastecimento definitivo de electricidade, a cargo da 1ª Rqda;

18- O valor da comparticipação da 1ª Rqda nos custos do polimento dos pavimentos das entradas das caixas de escadas, enquanto danificadas pela passagem dos colaboradores, clientes, subempreiteiros e fornecedores da 1ª Rqda, por consequência da errada concepção dos passeios de acesso (em saibro);

19- No decorrer da empreitada não foram aplicadas à Rqte quaisquer multas contratuais ou encargos contratuais;

20- Em 2010-08-23, com a presença, por parte da 1ª Rqda, do seu Administrador vogal Arqtº E…, da Fiscalização (Engºs F… e G…) e, por parte da Rqte, do Director de Produção (Engº H…), também Técnico Responsável pela Direcção Técnica da Obra, do Director de Produção de Zona (Engº I…) e Director de Obra (Engº J…), na sequência da vistoria de todos os trabalhos da obra, foi verificado e confirmado em auto, que os participantes subscreveram, que se encontravam concluídos, com excepção dos dependentes dos abastecimentos definitivos de electricidade e água;

21- Mais foi verificado nessa vistoria e confirmado no respectivo auto que os trabalhos concluídos estavam em condições de ser recebidos, com excepção dos identificados na 2ª parte duma folha que se anexou e integrou o dito auto:
● uns por se tratar de partes da construção dependentes da conclusão de alterações solicitados pela 1ª Rqda, em alteração do plano dos trabalhos,
● outros por terem sido verificadas anomalias que deveriam ser reparadas em regime da garantia subsequente à conclusão ou, apenas, por se pretender submetê-los a vistorias mais minuciosas;

22- Desde 2010-08-23 a Rqte continuou a executar os trabalhos solicitados pela 1ª Rqda, nomeadamente, os trabalhos a mais de alterações de decoração das fracções e também as reparações de anomalias ou meras afinações por aquelas reclamadas;

23- E, para satisfação dos clientes da 1ª Rqda (promitentes compradores ou já compradores na posse das fracções), a Rqte até reparou situações que não eram da sua responsabilidade e cooperou na reparação de erros de projecto, que, apesar das suas advertências, inquinaram a execução de alguns trabalhos, por insistência do projectista;

24- Nunca a Rqte recusou qualquer reparação de desconformidades;

25- Até Dezembro passado de 2010, foi a Rqte que, pelo seu contador de obras, assegurou o abastecimento de electricidade, nomeadamente às habitações dos clientes da 1ª Rqda e aos subempreiteiros e fornecedores desta;

26- Pois só nesse mês a 1ª Rqda obteve o abastecimento definitivo da electricidade ao empreendimento, como era da sua responsabilidade;

27- Relativamente ao abastecimento de água, também da responsabilidade da 1ª Rqda, ainda hoje é a Rqte que o assegura, através do seu contador de obras, para não deixar as habitações dos clientes da Rqda sem água;

28- Mas, em contrapartida, a 1ª Rqda nada pagava do débito constituído;

29- E desprezava as insistentes solicitações da Rqte e da Factoring, com direito de recurso ou de regresso;

30- A Rqte fez saber á Requerida que passaria a exercer o direito de retenção sobre as fracções ainda não entregues e

31- Por carta de 2011-01-21, em que enumerou as fracções cuja retenção exercia, a Rqte solicitou uma reunião entre administrações e advogados de ambas as empresas, tentando evitar a degradação das relações;

32- Essa reunião sugerida na carta de 2011-01-21, teve lugar em 2011-02-01, no escritório do mandatário da Rqte, em Braga, mas sem que tivesse comparecido qualquer dos administradores da 1ª Rqda, por cuja posição, por isso, se ficou a aguardar;

33- Inopinadamente, em 2011-02-03, com violação da fechadura, foi assaltada a arrecadação onde a Rqte guardava as chaves das fracções que retinha,

34- A Rqte, de imediato, providenciou pela participação do furto na PSP da zona e pela substituição dos canhões e chaves de entrada das fracções de cuja detenção havia acabado de ser desapossada, com excepção de algumas cuja recuperação obrigava a danos desproporcionados;

35- Então, às 14H37 do mesmo dia 2011-02-03, o Administrador da 1ª Rqda, Arqt. E…, remeteu um e-mail ao Director da Obra Adjunto (ao serviço da Rqte), com conhecimento à Fiscalização (Engº F…) e ao ilustre advogado na Rqda (Dr. K…), comunicando que as chaves de que a Rqda se apropriara, se encontravam, por duplicado, no escritório desta, na obra, e também no escritório do Ilustre Advogado;

36- No dia 2011-02-04, de manhã, o sobredito Administrador da 1ª Rqda, telefonicamente, comunicou à Direcção de obra da Rqte que se opunha a que esta entrasse no condomínio/obra;

37- Ainda nesse dia 2011-02-04, a Rqte remeteu uma carta à Rqda, logo adiantada por e-mail para a mesma e para os seus sobreditos Administrador e Fiscalização,
a) solicitando confirmação da proibição de acesso à obra;
b) interpelando a Rqda para que, até às 12H00, de 2011-02-07, lhe devolvesse as chaves das fracções que a Rqte não conseguira retomar;
c) anunciando que, por razões de urgência, no dia imediato (2011-02-05), um colaborador da Rqte efectuaria a rega de manutenção possível dos espaços ajardinados da obra, que, por ordem da Rqda, havia concluído sem estar assegurado o abastecimento definitivo de água, e
d) que daria sequência aos trabalhos complementares que, no próprio dia 2011-02-04, haviam sido solicitados pela Concessionária da Rede Pública de Abastecimento de Água, condicionantes da ligação definitiva a essa rede;

38- No dia 2011-02-05, pelas 9H30/10H00, o Director de Obra Adjunto da Rqte, que se encontrava na obra para proceder aos trabalhos supra referidos em, foi dali expulso, por ordem da Rqda, por um agente duma empresa de segurança;

39- Na terça-feira imediata, 2011-02-08, a Rqte deduziu Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse;

40- Nesse mesmo dia 2011-02-08, a Rqte veio a receber da 1ª Rqda, adiantada por correio electrónico, uma carta pela qual esta declarava a resolução do contrato de empreitada e confirmava que impedia aquela de entrar na obra, invocando como fundamentos da resolução alegados atrasos na conclusão dos trabalhos e deficiências de construção não reparadas;

41- Em 2011-02-14, a Rqte respondeu nos termos constantes da carta junta a fls. 82 e ss, mediante a qual rejeitou, as justificações aduzidas pela C… para resolver o contrato e além do mais, declara a resolução do contrato, por atraso superior a 60 dias no pagamento da importância de 2.179.275,07€ correspondente ao preço facturado desde 2010-04-1;

42- Em cumprimento do disposto nos artºs 3º, 22º.1 e 28º.4 do CE, com a assinatura do Contrato, a Rqte entregou à 1ª Rqda garantia bancária, no valor de 5% do preço global fixado no contrato, ou seja de 658.500,00€, para caução da boa execução da obra;

43- A garantia que foi exigida e prestada pela Rqte à Rqda é “autónoma”, “à primeira solicitação”, em que o 2º Rqdo “renuncia expressamente e sem reservas à faculdade de contestar a validade do pagamento” e se obriga a pagar “sem apreciar a justiça da reclamação”;

44- A requerente mediante carta accionou a garantia bancária pelo seu valor total de 658.500,00€;

45- No quadro actual das dificuldades do sector da construção civil, em geral, e da Rqte, em particular, o receado accionamento desta garantia pelo seu valor total de 658.500,00€, somado aos cerca de 2.450.000,00€ de trabalhos feitos para a Rqda e não pagos é susceptível de pôr em risco a sobrevivência da Rqte;

46- Logo que pague o valor da garantia accionada, o 1º Rqdo vai exigir o reembolso à Rqte;

47- E esta, no momento, debate-se com extremas dificuldades de financiamento, por esgotamento da sua capacidade de crédito.
*
Consignou-se na sentença recorrida:
«Não se provaram outros factos porque quanto a eles não foi feita prova cabal e suficiente, esclarecendo-se que a prova dos factos alegados na p.i. em 18 e 55 e) ficou prejudicada pela existência de um contrato de factoring celebrado entre a aqui requerente e a L…, SA, actualmente M…, o contrato junto por cópia a fls. 100 e ss, no qual foram incluídos os créditos da aqui requerente sobre a requerida originados no contrato de empreitada supra referido celebrado entre as aqui requerente e requerida.»
*
IV.
A.
Dispõe o art.º 381º, nº 1, relativamente ao âmbito das providências cautelares não especificadas, que aqui importa considerar, que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.
Conforme resulta do preâmbulo do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, instituiu-se «uma verdadeira acção cautelar geral para a tutela provisória de quaisquer situações não especialmente previstas e disciplinadas, comportando o decretamento das providências conservatórias ou antecipatórias adequadas a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado --- que tanto pode ser um direito já efectivamente existente, como uma situação jurídica emergente de sentença constitutiva, porventura ainda não proferida».
Assim, conjugando o artigo com o dispositivo do subsequente art.º 387º, nºs 1 e 2, o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos:
- a existência provável, o denominado fumus boni juris (grau de probabilidade séria) do direito tido por ameaçado --- objecto de acção declarativa ---, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor;
- que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora);
- que ao caso não convenha nenhuma das providências (especificadas) tipificadas nos art.ºs 393º a 427º do Código de Processo Civil;
- que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora, ou seja, o risco do perecimento do direito em virtude do decurso do tempo, concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; e
- que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
A aparência do direito supõe a formulação de um juízo positivo quanto ao resultado do processo principal, o que, porém, não deve conduzir a que só seja adoptada uma medida cautelar quando se adquira a convicção absoluta de que a pretensão do autor irá proceder.
Por outro lado, a proporcionalidade entre as medidas a adoptar e os interesses que se visam acautelar é um dos principais factores a que o juiz deve atender na decisão. A medida requerida deve ser adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado, daqui derivando, em termos que nos parecem claros, que mesmo que o requerido tenha actuado ou pretenda actuar de forma ilegítima ou censurável, a resposta cautelar deve ser proporcionada. Os tribunais não podem consentir que contra uma determinada conduta activa ou passiva se reaja de forma abusiva, com isso provocando danos sensivelmente superiores aos que se pretendem prevenir[3].
Uma das características das providências cautelares é a provisoriedade ou interinidade. Constituem um meio conducente à emissão de um juízo provisório de composição da relação material controvertida, eventualmente invertível na decisão final (art.º 383°, nº 4). A tutela fornecida pelas providências cautelares é qualitativamente diversa daquela que é alcançada através da acção principal --- da qual são formalmente dependentes ---, na medida em que o que se procura acautelar é a sobrevivência de um bem ou direito até à decisão final, não a definição final do Direito aplicável à situação controvertida. Não se confunde com a tutela definitiva que se projecta a partir do reconhecimento do direito na acção principal. Nelas o juízo a formular quanto ao direito não passa pela afirmação segura da sua existência, sob pena de se confundir a tutela definitiva, mais segura e mais solene, com a tutela cautelar que se pretende sumária e célere, e de, assim, se perder numa tramitação processual mais morosa e complexa a oportunidade para uma intervenção eficaz. Com a procedência da providência evita-se que a situação de facto se altere de modo a que a sentença que venha a ser proferida na acção principal perca toda ou parte da sua eficácia.
No caso em apreciação insurge-se a requerente contra a possibilidade de, a todo o tempo, a 1ª requerida accionar a garantia bancária constituída a seu favor pela requerente junto do D…, S.A., o 2º requerido.
Na base da garantia bancária está um contrato de empreitada celebrado entre a requerente e a 1ª requerida, pelo qual aquela se obrigou a construir uma obra, um edifício de habitações e equipamentos, mediante um preço fixado em € 13.170.000,00 (art.ºs 1207º e seg.s do Código Civil; itens 1º a 4º dos factos provados).
Aquela garantia foi prevista no contrato de empreitada, designadamente nos respectivos art.ºs 3º, 22º, nº 1 e 28º, nº 4, pelo valor de 5% do preço global ali estabelecido, ou seja, pelo montante de € 658.500,00, para caução de boa execução da obra. Deveria produzir efeito “à primeira solicitação”, não podendo o 2º requerido contestar a validade do pagamento e obrigando-se a pagá-la sem apreciar a justiça da reclamação (cf. item 43 dos factos provados).
Usando da terminologia corrente no comércio internacional, o referido art.º 3º do contrato de empreitada refere-se expressamente à constituição de “uma garantia bancária first demand”.
A garantia bancária foi, efectivamente, constituída nos termos ali previstos, como emerge do documento nº 20, junto com a petição inicial (fl.s 85 a 87 dos autos), destacando-se dos respectivos pontos 1, 3, 4 e 5 que:
a) «…destina-se a assegurar o pagamento de quaisquer quantias que venham a ser devidas pela Ordenante à Beneficiária por força da uma eventual mora ou um eventual Incumprimento do Contrato, de quaisquer danos decorrentes desse incumprimento ou dessa mora ou da violação de qualquer outra obrigação que para a Ordenante emerge do Contrato.»;
b) «O Banco garante à Beneficiária que lhe pagará quaisquer importâncias até ao limite máximo de € 658.500,00 …, à sua primeira solicitação[4], por escrito, feita a partir da presente data e até ao termo da vigência desta garantia, em que se declare apenas que a Ordenante não cumpriu uma obrigação a que estava obrigada no âmbito do Contrato ou que se encontra em mora no cumprimento da mesma, sem apreciar da justiça ou direito da reclamação da Beneficiária, nem terá, em caso algum, que averiguar dos motivos da reclamação ou considerar os fundamentos da mesma.»;
c) «O Banco mais declara que não poderá, em caso algum, averiguar o motivo da reclamação da Beneficiária ou os fundamentos da mesma, nem opor a esta a falta de pagamento do serviço de dívida correspondente à emissão e/ou manutenção desta garantia.».
Trata-se de uma garantia fortíssima, assumida pelo Banco com autonomia relativamente à obrigação garantida. Ao contrário da fiança, o Banco, perante o beneficiário credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma dívida alheia (do garantido); não se trata tanto de garantir o cumprimento da obrigação do devedor, mas antes de assegurar o interesse económico do credor beneficiário da garantia.[5] Por contrato, o garante constitui-se devedor de uma obrigação própria, ainda que relacionada com a dívida do garantido.
Com o pagamento que o garante faça ao credor beneficiário, extingue-se, nessa medida, a obrigação do devedor garantido para com o credor (art.º 767º do Código Civil), ficando o garante sub-rogado nos direitos do credor beneficiário (art.º 592º do Código Civil).
A questão que se coloca é saber se, assim constituída uma garantia bancária autónoma e “on first demand”, o requerente pode desencadear junto do tribunal procedimento cautelar com vista à paralisação da garantia e se estão reunidas as condições necessárias para o efeito.
Pese embora a sua autonomia, no sentido de que a visa uma função de garantia independente do contrato base, não acessória deste e inteiramente desligada da relação entre o beneficiário e o dador da ordem e que passa até pela impossibilidade do garante fazer valer-se da invalidade formal da obrigação garantida, a garantia bancária não deixa de ser um negócio jurídico causal: a função de garantia relativamente à obrigação garantida e ao vínculo constituído entre o devedor e o garante. Por essa razão, a doutrina e a jurisprudência esforçam-se continuamente por estabelecer limites à autonomia baseados nos princípios gerais de Direito, entre os quais os princípios do abuso de direito e da boa fé.
Como referem Pedro Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte[6], “o Direito português baseia-se em determinados postulados que tornam inadmissível estabelecer-se que o pagamento da garantia é devido em qualquer circunstância; há limites à autonomia privada e ao exercício de direitos dela decorrentes”. Admitem estes autores que “o garante possa recusar o pagamento exigido quando é notória a inexistência dessa obrigação; ou seja, se tal pretensão se apresenta como manifestamente inadmissível”.
Mesmo nos casos de garantia “on first demand”, automática ou à primeira solicitação, como ocorre com a perfomance bond constituída no caso, haverá que aceitar um limite cuja violação implica desrespeito pelos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa.
De entre outras causas, quer relacionadas com o contrato de garantia, quer respeitantes ao âmbito do contrato base, são dados vários exemplos de recusa legítima de pagamento, como a inexistência do direito do beneficiário da garantia relativamente ao devedor principal, a excepção de não cumprimento pontual do contrato sinalagmático garantido, a existência de fundamento de resolução do contrato base por incumprimento do beneficiário da garantia, a existência de manobras tendentes a enganar o garante ou ainda em situações em que o negócio garantido seja contrário à lei, à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes (art.º 280º do Código Civil), contanto que, em qualquer dessas situações, o Banco garante disponha de uma prova concludente, inequívoca, segura, relativamente a qualquer desses fundamentos[7].
Os referidos professores sustentam e sintetizam assim tal solução:
«Há, pois, limites máximos, do ponto de vista jurídico, que a garantia autónoma, mesmo quando é acordada com cláusula «à primeira interpelação», não pode ultrapassar, sob pena de colidir com os princípios que enformam a ordem jurídica portuguesa. Imagine-se que se trata de uma garantia «on first demand» para o caso de uma obra não ser realizada, de um prédio não ser construído. Se o garante sabe e não há qualquer dúvida quanto ao facto de o prédio ter ficado bem construído, caso o dono da obra venha exigir o pagamento da garantia, seria manifestamente clamorosa a admissibilidade de tal pedido de pagamento, justificando-se que o garante o recuse».
Nesta perspectiva, de ampla admissibilidade de recusa de pagamento, mesmo nas situações de garantia à primeira interpelação, o Banco pode recusar o pagamento em caso de prova inequívoca de fraude ou de abuso manifesto por parte do beneficiário, quer o fundamento resulte da relação de garantia, quer do contrato base.
Para Almeida Costa e Pinto Monteiro[8], em princípio está também vedado ao Banco garante a utilização dos meios de defesa do devedor. Ainda segundo este estudo, para que a recusa do Banco seja legítima, não basta a suspeita de fraude ou de abuso para impedir a entrega da garantia, logo que solicitada, exigindo a jurisprudência a prova líquida («liquide Beweismittel»), líquida e inequívoca («liquide und eindeutige»), da má fé patente, da fraude evidente, clara, sem contestação, a tal ponto que o abuso do beneficiário fere a vista («crève lês yeux»). Tal seria o caso, por exemplo, se um beneficiário/importador solicitasse a garantia de execução do contrato, tendo o Banco em seu poder, no entanto, certificado de desalfandegamento da mercadoria no país de destino. Se a atitude do beneficiário, ao solicitar a garantia, constituir um abuso evidente, uma fraude manifesta, inequívoca, nos termos que acabados de referir, o Banco deve opor-se à pretensão deduzida pelo beneficiário, não pagando a garantia.
Ora, nas especiais exigências impostas ao Banco garante na fundamentação de uma eventual recusa de pagamento da garantia, não está em causa apenas a natureza da garantia bancária, as características da sua autonomia relativamente à obrigação casual. Releva ali também o facto do Banco recusar directa e imediatamente o pagamento ao beneficiário, sem prévia intervenção judicial. Ou seja, o Banco recusa um pagamento que, em princípio deve ser efectuado, e só pode ser recusado por motivos muito excepcionais, estabelecendo-se, para isso, um grau de exigência particularmente elevado, para um nível de segurança quase absoluto, de evidência factual inequívoca, porque ocorre sem prévia análise, produção de prova e decisão judicial e se pretende que o comércio bancário funcione bem, sem perturbação dos contratos a que está ligado.
Com efeito, só este grau de exigência permite conduzir o garante ao pagamento automático a que está adstrito nas situações, como a dos autos, de fixação da cláusula “on first demand” e o adequado funcionamento do contrato.
Mas não é de recusa de pagamento da garantia pelo Banco que versa o caso sub judice; é de uma acção do devedor principal, do empreiteiro requerente, com vista à suspensão ou paralisação da eficácia da perfomance bond constituída “on first demand” em benefício da dona da obra. Acção esta desenvolvida por meio judicial.
As mais das vezes o Banco não tem interesse em envolver-se nas questões travadas entre o devedor e o beneficiário da garantia, preferindo pagar sem qualquer contestação. Esta solução é também do seu interesse comercial. Presta a garantia logo que lhe é solicitada.
Para fazer face a este inconveniente, de que é vítima o devedor, vem-se entendendo facultar-lhe a possibilidade de lançar mão de medidas destinadas a impedir o beneficiário de receber a garantia.
Devendo respeitar a autonomia da obrigação do Banco relativamente à obrigação do devedor no contrato-base (no caso, de empreitada), tem-se defendido que o devedor pode tentar impedir o pagamento ou execução da garantia através de medidas instauradas em sede judiciária ou arbitral, de natureza cautelar[9].
Invocará objecções suas e não do Banco.
A recorrente lançou mão, e bem, do procedimento cautelar comum, dirigindo-o, em litisconsórcio voluntário contra a beneficiária e o garante.
A avaliação probatória das situações excepcionais de recusa de pagamento pelo garante, invocadas pelo devedor, é, desta feita, transferida para o Julgador, sendo de considerar que foi atendido o referido grau de exigência na verificação e demonstração da matéria de facto dada como provada na 1ª instância, obviamente, sem descurar as características da celeridade, da summaria cognitio e do fumus boni juris, próprias do procedimento cautelar. Resulta, pois, da estrutura do procedimento cautelar que ele não serve para se criar ou definir direitos, mas apenas para se acautelarem ou protegerem provisoriamente os que, mesmo aparentemente, se acharem definidos.
Aqui chegados, a questão é saber se o accionamento da garantia por parte da beneficiária poderia, nas circunstâncias actuais, constituir um abuso manifesto da sua parte[10] e se há viabilidade para a realização da pretensão da requerente através do procedimento cautelar.
Já vimos que até na doutrina menos recente há situações excepcionais em que é admissível obstar à garantia, mesmo por razões ligadas ao contrato garantido.
Como observámos, a doutrina mais recente dá novos exemplos de como o referido conceito pode ser preenchido com factos relacionados com vicissitudes próprias do contrato garantido, para além daqueles que são inerentes ao contrato de garantia. Entre eles:
a) Prova da excepção de cumprimento pontual do contrato garantido;
b) Extinção da obrigação garantida;
c) Existência de fundamento para resolução do contrato com base em incumprimento das obrigações contratuais por parte do beneficiário da garantia na relação estabelecida com o devedor garantido; desde que, ultrapassando os princípios que enformam a ordem jurídica portuguesa, designadamente a boa fé contratual e o abuso de direito, se verifique que a exigência do pagamento da garantia pelo dono da obra se revele manifestamente clamorosa.
Entendemos, contudo, que controlo jurisdicional inerente ao procedimento cautelar da iniciativa do devedor (a ora requerente) não atenua o grau de exigência necessária à recusa do accionamento da garantia pelo beneficiário (ora 1ª requerida); garantia essa que é, em princípio, incondicional.
Como refere também Mónica Jardim[11], na senda da maioria da doutrina e jurisprudência estrangeiras, só a prova pronta e líquida da fraude do beneficiário ou uma solicitação do pagamento da garantia de forma manifestamente abusiva permite impedir o seu funcionamento, uma vez que está em causa o cumprimento de um contrato de garantia cuja característica dominante é a autonomia.
Mas acrescenta aquela autora[12] que aquela autonomia ião se coaduna com o deferimento de providências, senão em situações excepcionais e que, seria excessivamente relativizada, caso nos bastássemos com uma prova meramente sumária ou indiciatória, com base na qual o juiz pudesse fazer um simples juízo de probabilidade, parecendo-lhe que deve ser considerado insuficiente um simples fumus bonus iuris pois, só assim se negará ao exportador a possibilidade de obter, por via cautelar, o que o garante não pode obter por via da contestação à solicitação.
Assim, pese embora seja de reconhecer ao empreiteiro a possibilidade de intentar um procedimento cautelar contra o credor, destinado a prevenir o perigo da demora inevitável no processamento normal da acção declarativa, procedimento esse que antecipe a decisão definitiva e que impeça o beneficiário de se comportar como se fosse, face a si, titular de um direito decorrente do contrato base (que o impeça de solicitar a soma objecto da garantia ou que o impeça de receber a dita soma), a prova não pode deixar de ser pronta e líquida nas situações em que se vise a demonstração de um aproveitamento abusivo da posição do beneficiário. Estas situações não se bastam com a “prova sumária” do direito ameaçado, a justificar o “receio de lesão”, com decretamento da providência perante “a probabilidade séria da existência do direito” (art.ºs 381º, nº 1 e 387º, nº 1).
É esta também a posição sufragada por Mónica Jardim[13].

Está assente que a requerente executou a obra, tendo sido fixado a seu favor o respectivo preço como contrapartida dessa sua prestação contratual.
O crédito correspondente ao preço liquidado pelas facturas emitidas e entregues à requerida, com base em autos de medição por ela própria aprovados e que ainda não pagou é de € 2.179.275,07, sendo que os juros de mora importam em € 79.676,65, num total de € 2.258.951,72.
A requerente suportou despesas e prestou outros serviços, referidos sob os itens 13 a 18 dos factos, a pedido da 1ª requerida, a que se seguiu, em 23.8.2010, uma vistoria de todos os trabalhos da obra com a participação de representantes de ambas as empresas, tendo-se confirmado em auto que os participantes subscreveram que todos os trabalhos da obra se encontravam concluídos, com excepção dos dependentes dos abastecimentos definitivos de electricidade e água, e que os trabalhos estavam em condições de ser recebidos, com excepção dos identificados na 2ª parte duma folha que se anexou e integrou o dito auto:
- uns por se tratar de partes da construção dependentes da conclusão de alterações solicitados pela 1ª requerida, em alteração do plano dos trabalhos;
- outros por terem sido verificadas anomalias que deveriam ser reparadas em regime da garantia subsequente à conclusão ou, apenas, por se pretender submetê-los a vistorias mais minuciosas.
A partir daí a requerente continuou a executar trabalhos a pedido da 1ª requerida e até reparou situações que não eram da sua responsabilidade, e ainda cooperou na correcção de erros de projecto. Nunca a requerente recusou a reparação de desconformidades, cumprindo com o que lhe era reclamado. Continuou a assegurar o abastecimento de electricidade e de água sem que a 1ª requerida pagasse o débito assim constituído, desprezando, esta, as insistentes solicitações para pagamento. Ainda hoje assegura o abastecimento de água às habitações dos clientes da 1ª requerida através do seu contador de obras.
Apesar desta situação, a 1ª requerida mantém em dívida o pagamento de trabalhos realizados pela requerente ao longo do tempo no valor de cerca de € 2.450.00,00, em que se incluem os valores facturados atrás referidos, no total de € 2.179.275,07 já vencidos entre 13.7.2010 e 29.11.2010.
E pese embora se pudesse justificar o exercício do direito de retenção sobre algumas fracções por parte da requerente em face da situação de mora no cumprimento por parte da 1ª requerida, foi esta que se opôs a que a requerente prosseguisse na execução da sua prestação, declarando a resolução do contrato.
Foi nestas circunstâncias de impedimento de entrada na obra para cumprir a sua prestação e de mora da 1ª requerida por atraso superior a 60 dias no pagamento da importância de € 2.179.275,07 correspondente ao preço facturado desde 1.4.2010, que a requerente respondeu por carta dirigida à 1ª requerida declarando também resolvido o contrato.
No decorrer da empreitada não foram, tão-pouco, aplicadas quaisquer multas contratuais ou encargos contratuais à requerente.
Parece-nos, em face dos factos considerados provados, que faltando fundamento válido para a resolução do contrato por parte da 1ª requerida, assiste à requerente, no mínimo[14], a excepção de não cumprimento do contrato (art.ºs 428º e seg.s do Código Civil); assim, o direito de recusar a sua prestação enquanto a requerida não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Todavia, resulta do texto da sentença recorrida e dos elementos que os autos disponibilizam, que a prova foi obtida sumariamente, com base no fumus boni juris emergente dos documentos e, em larga medida, da prova testemunhal produzida, sem exclusão da normal possibilidade da 1ª requerida, na acção principal, vir a demonstrar o fundamento que a levou a declarar a resolução do contrato, por escrito, perante a empreiteira[15], ainda que a aparência revelada neste procedimento (também sem contraditório) aponte para um adequado exercício da excepção de não cumprimento do contrato por parte da requerente, ou mesmo para a existência de fundamento de resolução contratual por incumprimento da 1ª requerida.
Nestas condições, é seguro afirmar a inexistência da indispensável prova praticamente irrefutável, pronta, líquida, sem a menor dúvida ou concludente, no sentido da 1ª requerida se ter aproveitado ou poder vir a aproveitar-se abusivamente da sua posição contratual; razão pela qual tanto basta para que a providência requerida tivesse sido bem indeferida na sentença recorrida e se desse agora por finda a apreciação da questão.

Embora já sem interesse para a decisão do caso, passamos a tecer breve consideração sobre o factoring, pois que a ser procedente a argumentação da sentença, sai reforçada a decisão do indeferimento, além da relevância tem na questão da suscitada litigância de má fé, como se verá.
Resulta da sentença recorrida que o crédito que a requerente invoca não lhe pertence, mas à empresa de factoring a quem o cedeu --- a L…, S.A. --- nos termos do contrato documentado a fl.s 106 e seg.s dos autos. Daí que a providência requerida não possa proceder.
A questão não é simples.
O contrato de factoring não tem uma disciplina própria na legislação portuguesa, permanecendo indefinido e indeterminada a sua configuração e regime jurídicos, pese embora nos termos do art.º 2°, nº 1, do Decreto-lei nº 171/95, de 18/7, a actividade de factoring ou cessão financeira consista na aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços, nos mercados interno e externo.
Tem sido entendido que se trata do contrato pelo qual uma parte (o aderente) se obriga a ceder a outra parte (o factor), que se obriga a adquirir a globalidade dos créditos, de curto prazo, presentes e futuros, derivados da actividade habitual da primeira, de fornecimento de bens ou prestação de serviços, incumbindo-se esta última (o factor) da gestão e cobrança dos créditos, podendo assumir o risco de insolvência dos devedores cedidos e antecipar, total ou parcialmente, o valor dos créditos cedidos, tudo mediante o pagamento pela primeira de uma retribuição.[16]
Sempre presente nos contratos de factoring está a obrigação do aderente ceder ao factor todos os créditos (de curto prazo) de que seja ou venha a ser titular em virtude da sua actividade de fornecimento de bens ou prestação de serviços, enquanto durar o contrato.
Para que o pagamento seja liberatório os devedores cedidos, desde que notificados da cessão de créditos para o factor --- como efectivamente aconteceu junto da C…, S.A. ---, é a este que os devem pagar para que o pagamento seja liberatório.[17] Na verdade o factor (actualmente o M…) passou a ser o credor das prestações a realizar pela 1ª requerida no âmbito da empreitada.
O contrato de factoring é celebrado pelas partes para obtenção de uma cobrança eficiente dos créditos, garantia do risco dos mesmos créditos e um financiamento pelo factor. É, essencialmente, um contrato atípico misto de conteúdo e causa variável, complexa e unitária, actuado mediante uma cessão de créditos futuros ou por singulares cessões de crédito periodicamente realizadas.
O factoring pode ser celebrado na modalidade “com recurso” ou direito de regresso (impróprio), ou “sem recurso” (próprio).
Nos termos da cláusula XII do contrato junto aos autos, dispõe expressamente o nº 1 que o factor “não assume o risco de crédito por incumprimento dos devedores, assistindo-lhe o direito de regresso sobre o aderente relativamente à totalidade dos créditos tomados”. E, segundo o nº 2, “no uso do direito de regresso sobre o aderente a L… debitará ao aderente os créditos que não sejam pagos pelos devedores, o mais tardar quando os mesmos atinjam 90 dias de vencido, contados da data de vencimento inscrita nas respectivas facturas…”. Acrescenta o nº 3 da mesma cláusula contratual que “os créditos debitados ao aderente, nos termos do número anterior, permanecerão na L… em regime de cobrança, podendo ser utilizados como caução dos fundos antecipados ao aderente”.
Com efeito, o contrato celebrado não teve por função a assunção dos riscos de cobrança dos créditos, pelo que terá o cliente de reembolsar o factor em caso de não pagamento pelo devedor. A aceitação dos créditos por parte do factor foi realizada com recurso ou direito de regresso. Daí que, se o devedor não cumpre na data de vencimento do crédito ou dentro de um prazo extra posteriormente concedido pelo factor, este retransmite o crédito ao facturizado e, se lhe tiver atribuído antecipações sobre o valor nominal desse crédito, debitá-las-á, de imediato, na conta corrente do outro contraente.[18]
Ensina Pestana de Vasconcelos[19] que o facturizado garante, não a capacidade financeira do devedor cedido, mas antes o cumprimento da prestação debitória deste último, na data estipulada para o vencimento. É uma forma de garantia de “bom fim” ou “salvo cobrança”, mais exigente do que a mera garantia de solvência. Ao ente financeiro para exercer o seu direito face ao facturizado, basta-lhe que o devedor entre em mora, não precisando de recorrer às vias judiciais para provar a falta de meios do devedor para cumprir. “…se o devedor não cumprir na data de vencimento do crédito ou dentro de um prazo extra posteriormente concedido pelo factor, este retransmitirá o crédito ao facturizado e, se lhe tiver atribuído antecipações sobre o valor nominal desse crédito, debitá-las-á, de imediato[20], na conta corrente do outro contraente”. E, mais adiante, acrescenta que “as cessões «com recurso» não se identificam, no que toca à extensão da garantia assumida, nem com as cessões de crédito com garantia da solvência do devedor (art. 587.°, n.º 2), nem com as cessões pro solvendo.
O mesmo autor refere que “a cessão com recurso abrange, igualmente, aquelas situações, …, em que o crédito é cedido ao factor unicamente para ser gerido e cobrado pelo ente financeiro”. O que subjaz a semelhante transmissão do crédito é a intenção de o facturizado transferir para o factor os seus serviços administrativos. Nessas situações este conjunto de funções poderia ser actuado através da atribuição ao ente financeiro de poderes administrativos e de cobrança, no âmbito de um contrato de mandato com ele celebrado, não tendo o facturizado de se despojar da titularidade do direito, concluindo com o factor um autêntico negócio fiduciário.[21]
Face ao contratado, designadamente o estabelecimento do regime de caução, parece-nos correcta a asserção da recorrente no sentido de que, uma vez debitados os créditos ao aderente nas condições ali referidas, o factor deixa de ser titular/possuidor em nome próprio dos créditos vencidos e não cobrados, porque passa a detê-los como se contratualmente confiados pelo aderente em regime de cobrança, como caução. Seria uma incoerência jurídica e incompreensível a prestação de uma caução ao factor com direitos próprios dele mesmo. Pela verificação da situação de débito e fixação da caução prevista pelas partes no contrato de factoring (cláusula XII), operou-se a retransmissão.
Embora detidos pelo factor em regime de cobrança, mas como caução, os créditos debitados, voltam a pertencer ao aderente pelo menos em 11.2.2011, data da carta enviada à requerente e junta a fl.s 138, através da qual se constata o débito.
A isso não obsta a eventualidade da nova situação não ter sido notificada à 1º requerida, não sendo essa notificação mais do que uma condição de eficácia. Aliás, a requerida sempre poderia continuar a pagar os créditos ao factor porquanto ali permaneceram em regime de cobrança (cláusula XII, nº 3), sendo, deles, titular, a requerente.
Por conseguinte, é de admitir que a requerente seja titular de um direito de crédito sobre a 1ª requerida pelo valor das facturas vencidas, não pagas e que lhe foram debitadas. Mas essa retransmissão tem um valor muito inferior à indiciada quantia de € 2.450.000,00 correspondente aos trabalhos realizados e ainda não pagos pela 1ª requerida, faltando qualquer elemento que nos permita afirmar que esta diferença de capital, face à vigência do factoring, seja um crédito da requerente. Pelo contrário, tudo indica que é um crédito do factor já que, nessa parte, se desconhecem vicissitudes que justifiquem a respectiva retransmissão para o aderente, abrangendo factoring, em princípio toda a actividade relacionada com a empreitada.
Sendo assim, não há que somar o montante da perfomance bond à quantia de € 2.450.000,00 dos trabalhos realizados e não pagos, mas apenas aquele valor à quantia debitada à requerente pelo Banco, de cerca de € 1.500.000,00, faltando a prova do risco de sobrevivência da requerente que, nos termos do item 45 resulta exclusivamente da soma daqueles dois primeiro montantes (€ 658.500,00 + € 2.450.000,00).
Nesta decorrência, em face do conjunto dos factos, é nossa convicção que a sentença recorrida deve ser confirmada nesta matéria
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B.
A litigância de má fé da requerente
A condenação da requerente como litigante de má fé na 1ª instância ficou ligada à improcedência da providência requerida. E entendeu-se ali que, por força do contrato de factoring, não lhe assistia o direito de crédito que invocava como primeiro fundamento do procedimento cautelar, tendo disso, a requerente, perfeito conhecimento. Teria, assim, recorrido a Juízo com consciência da inveracidade de factos relevantes e omitindo que o crédito invocado fora transmitido a terceiro.
Ora, reconhecendo-se agora à requerente a titularidade de um crédito, com base nos mesmos factos que a 1ª instância deu como provados, impõe-se o afastamento da sua condenação como litigante de má fé. Aliás, a requerente fez referência ao factoring logo na petição inicial da providência e a prudência sempre recomendaria, em face da complexidade da situação, a aceitação dos argumentos invocados e a sua discussão dentro de limites tolerados pela ordem jurídica, como é o caso, sob pena de fazer recear a qualquer interessado o direito de recorrer livremente aos tribunais para fazer valer os seus direitos; ou melhor, os direitos de que, fundadamente, se julga titular e dos quais pretende ser convencido e convencer terceiros.
Não se manifesta da parte da requerente conduta dolosa ou gravemente negligente que, nos termos do art.º 456º, justifique a sua condenação como litigante de má fé.
Revoga-se a decisão em matéria de litigância de má fé.
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SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Pese embora exista autonomia do contrato de garantia bancária on first demand relativamente à obrigação garantida, há situações excepcionais em que, pelo funcionamento dos princípios que enformam a ordem jurídica portuguesa, designadamente pela violação do princípio da boa fé, fraude ou abuso manifesto por parte do beneficiário, se justifica a suspensão da eficácia dessa garantia, quer por iniciativa do Banco garante, quer por iniciativa do devedor principal.
2. Neste último caso, o devedor pode recorrer ao procedimento cautelar comum, onde alegará e demonstrará os factos que fundamentam o pedido de paralisação da garantia bancária.
3. Pelo menos quando a situação excepcional paralisante da garantia é invocada pelo devedor através de meio cautelar, até porque há um controlo judicial dos fundamentos e da decisão, é de admitir que tenha por base factos relacionados com o cumprimento do contrato-base, designadamente a excepção de não cumprimento, o incumprimento definitivo do contrato por parte do beneficiário da garantia ou a extinção da obrigação garantida, contanto que a situação seja manifesta, evidente, concludente ou inequívoca à luz do Direito.
4. Nesses casos excepcionais, são insuficientes a summaria cognitio e o juízo de verosimilhança, o fumus boni juris normalmente ligados à fixação dos factos relativos à existência do direito do requerente e ao periculum in mora, sob pena de violação do princípio da autonomia da garantia bancária, reforçado nas situações em que é fixada a cláusula “à primeira solicitação”.
5. No contrato de factoring com recurso, os créditos cedidos ao factor devem considerar-se retransmitidos ao cedente quando, nos termos desse contrato, vencidos e não pagos pelo devedor, o factor os debita ao cedente e os mantém apenas a título de caução, ainda que também os possa cobrar.
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
1- Mantém-se a sentença na parte em que indeferiu a providência cautelar; e
2- Revoga-se a condenação da requerente como litigante de má fé.
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Custa do recurso pela requerente.
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Porto, 28 de Abril de 2011
Filipe Manuel Nunes Caroço
Teresa Santos
Maria Amália Pereira dos Santos Rocha
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[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Cf. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, 4ª edição, p.s 54, 103 e 113 e seg.s.
[3] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, 4ª edição, vol. III, pág.s 245 e 246.
[4] Sublinhado nosso
[5] Pedro Romano Marinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de Cumprimento, 4ª edição, Almedina, pág. 119, citando, MARTORANO, Lineamenti Generali dei Titoli di Credito e Titoli Cambiari, Nápoles, 1979, pág. 343.
[6] Ob. cit. pág.s 123 e 124.
[7] cf. ainda o citados autores, in Garantias de Cumprimento (Estudo teórico-prático), 1994, Almedina, pág. 55.
[8] Parecer, Garantias Bancárias, O Contrato de Garantia à Primeira Solicitação, in Colectânea de Jurisprudência 1986, T. 5, pág.s 15 e seg.s.
[9] Cf. citado Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, pág. 21.
[10] Já que de “fraude” não há que falar.
[11] A Garantia Autónoma, Almedina, 2002, pág. 328 e seg.s.
[12] A fl.s 337
[13] Ob cit, pág.s 351 e 352.
[14] Admite-se mesmo uma situação de resolução do contrato com base no impedimento da prossecução dos trabalhos determinado pela 1ª requerida.
[15] Conforme documento junto aos autos.
[16] Mafalda Oliveira Monteiro, O Contrato de Factoring em Portugal, Elcla Editora, 1996, pág. 14.
[17] Mafalda Monteiro, ob. cit., pág. 44.
[18] Acórdão da Relação do Porto de 18.6.2007 (Pinto de Almeida), JTRP00040455, citando L. Pestana de Vasconcelos, in www.dgsi.pt,
[19] Dos Contratos de Cessão Financeira (factoring), BFD, Coimbra Editora, 1999, pág. s 334 e 335.
[20] Sublinhado nosso. cf. também fl.s 123.
[21] Ob. cit., pág. 335.