Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0416298
Nº Convencional: JTRP00038757
Relator: ÂNGELO MORAIS
Descritores: RECURSO PENAL
MINISTÉRIO PÚBLICO
EXTEMPORANEIDADE
Nº do Documento: RP200601250416298
Data do Acordão: 01/25/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Área Temática: .
Sumário: Apesar de estar dispensado do pagamento da multa a que se refere o art. 145º do CPC (aplicável por força do art. 107º, n.º 5 do CPP), para poder beneficiar do regime aí previsto e, nessa medida, apresentar o articulado em qualquer dos três dias úteis seguintes ao termo final do prazo, deve o M.P. fazer uma declaração expressa nesse sentido (de que pretende praticar o acto nos três dias posteriores ao termo do prazo), sob pena de se considerar o recurso extemporâneo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Nos autos de instrução n°../O3..GBLMG, que correm termos na comarca de Lamego, foi proferida a seguinte decisão instrutória:

“O arguido suscita, em primeiro lugar, a questão da qualificação do crime de ofensa à integridade física operada pela Digna Magistrada do Ministério Público, porquanto, em seu entender, dos autos não resultam quaisquer indícios que permitam concluir ter o arguido utilizado qualquer arma para ofender corporalmente o assistente; por outro lado, ainda que assim se entendesse, entende que não se poderia subsumir a conduta daquele ao artº146°, por referência ao artº 132°, do C.P., por além de utilizar arma, necessário se torna que resultem indiciados factos dos quais se possa concluir ser a conduta do infractor passível de um juízo de censurabilidade, não se bastando o preenchimento do tipo com o preenchimento objectivo da qualificativa em questão.
Compulsados os autos, verifica-se que o assistente menciona ter sido esfaqueado no pescoço, não sendo o golpe profundo por o colarinho da camisa e camisola que usava terem funcionado como força de bloqueio da conduta do arguido, sendo certo que aquelas duas peças de roupa ficaram completamente rasgadas. Também a testemunha B.......... refere ter o arguido utilizado faca ou navalha.
Temos assim que, pelo menos, duas das pessoas inquiridas em sede de inquérito referem ter o arguido agredido o assistente através de uma utilização da faca ou navalha; se a mesma não aparece, não é suficiente, só por si, para afastar, neste momento, o facto de ter sido utilizada faca ou navalha no cometimento do crime.
Não podemos olvidar que estamos numa fase meramente indiciária, em que a finalidade última é a confirmação, ou não, da existência de indícios suficientes, que sustentem a decisão de deduzir acusação ou o arquivamento, entendendo-se por estes aqueles que conjugados entre si permitem concluir pela existência de probabilidade séria de em sede de julgamento, a confirmarem-se, por força deles, ser aplicada ao arguido uma pena ou medida de segurança (artº283°). Por outro lado, a prova produzida é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artº127°, do C.P.P.). Atentos os princípios ora referidos e os indícios carreados para os autos em sede de inquérito, entendemos existirem indícios suficientes que permitam concluir que, a confirmarem-se em sede de julgamento ao arguido será aplicada uma pena ou medida de segurança, pois não só é o próprio assistente que refere ter sido esfaqueado, como também a testemunha C.........., secundados nas suas declarações pelos elementos clínicos de fls. 8, dos quais resulta que na data mencionada nos autos o arguido se apresentou no Serviço de Urgência do Hospital .......... com ferida cortante.
Porém, aqui chegados, importa agora indagar da procedência dos argumentos aduzidos pelo arguido no que se refere à insusceptibilidade de qualificação do tipo p. no artº143°, do C. P..
Em nosso entender, é de proceder a pretensão do arguido, nesta questão que se impõe destrinçar se coloca num momento anterior ao da formulação de um juízo de censura ético jurídico “agravado”. Na verdade, antes de saber se a utilização de uma faca é passível de revelar especial censurabilidade da conduta do agente, impõe-se indagar se a mesma, objectivamente, integra, ou não, o conceito de meio particularmente perigoso. Entendemos que não. Vejamos.
Para se aferir da particular perigosidade do meio utilizado para efeitos de agravamento do tipo, e como refere Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 37, deve ponderar-se que a generalidade dos meios usados, in casu para agredir, são perigosos e mesmo muito perigosos, exigindo a lei que eles tenham ínsitos em si uma especial perigosidade, que acresce em relação àqueles que normalmente são utilizados no cometimento do tipo. Ter-se-á, ainda, indagar se da natureza do meio utilizado resulta uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
No caso vertente, considerando que resultem indícios suficientes de o arguido ter utilizado uma faca como meio de agredir o assistente, entendemos que objectivamente não é possível subsumir tal utilização na al. g), do preceito mencionado, por o meio utilizado constituir um dos normais para o cometimento do tipo em questão, assim apenas devendo ser imputado ao arguido a prática do tipo simples.
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No que se refere ao crime de dano com violência, reportado aos estragos produzidos na camisa e camisola que o arguido vestia em virtude da agressão com a mencionada faca, entendemos também aqui assistir razão ao arguido.
Não foram carreados quaisquer elementos probatórios para os autos, em sede de inquérito, que permitam concluir estar indiciada a intenção de o arguido provocar estragos, inutilizar, aqueles objectos.
Não o refere o assistente nem qualquer uma das demais testemunhas inquiridas ou o arguido. Aqueles estragos são mencionados como consequência da agressão que o arguido voluntariamente terá perpetrado, e, porque o crime de dano apenas é punível quando passível de imputação ao agente a título de dolo, pois que o legislador entendeu não ser punível o dano negligente (artº13° e 212°, do C.P.), impondo-se, em consequência, a não pronúncia do arguido quanto a este ilícito.
Ainda que assim não se entendesse, sempre o dano perdia autonomia, por se encontrar com o crime de ofensa à integridade física numa relação de concurso aparente, pois que o estrago ou inutilização sobrevindas às peças de roupa utilizadas pelo assistente no momento da agressão, terem sido um meio de atingir o fim visado pelo arguido, e, porque o núcleo de protecção da norma do artº143º do C.P. é mais amplo que o do artº212°, ou 214°, do C.P..
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Indaguemos, agora, da existência, ou não, de indícios suficientes que permitissem ao assistente deduzir acusação contra o arguido pela prática de um crime de injúrias, p. e p. pelo artº 181º do C.P..
Quanto a este, o assistente refere que no dia 06/04/2003, o arguido, lhe dirigiu as seguintes expressões: “Nada devo a filha da puta nenhum”, aquando da apresentação da queixa; o arguido usou da faculdade de não prestar declarações dos factos que lhe eram imputados; a testemunha B.........., pese embora apresentar uma versão mais ampla, na essência revelou-se idêntica à do assistente, corroborando as palavras citadas na douta acusação particular.
Assim, temos a versão do assistente e de uma testemunha, consentâneas e não abaladas por qualquer outro meio de prova. Dos seus depoimentos e atenta a noção de indícios suficientes já referida, entendemos que resulta uma probabilidade séria de, a confirmarem-se em sede de audiência de discussão e julgamento, vir a ser aplicada ao arguido uma pena pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artº181°, do C.P..
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Pelo exposto, decido não pronunciar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artº143°, 146° e 132°, n°1, al. g), em concurso real com um crime de dano com violência, p. e p. pelo artº214°, nº1, al. a), do C.P. e pronunciar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artº143°, nº1, em concurso real com um crime de injúrias, p.e p. pelo artº181°, do C.P.
Porquanto:
Pelas 20 h.s do dia 6 de Abril de 2003, no .........., .........., nesta comarca, o arguido dirigindo-se ao assistente, proferiu as seguintes expressões “Não devo nada a filha da puta nenhum da freguesia…” “Vem aí a canalhada e já vai haver merda…” “Põe-te fino, porque tenho a tua família debaixo de vista e não devo nada a nenhum filho da puta de ..........”.
Acto contínuo, o arguido dirigiu-se à sua carrinha de onde tirou uma faca, com ela desferindo no assistente um golpe junto à face do lado direito do pescoço, por cima da camisola e do colarinho da camisa, atingindo de raspão o lado esquerdo da face.
Em consequência, provocou no assistente, ferida cortante na hemiface esquerda e escoriação superficial e linear na face posterior direita do pescoço, as quais demandaram 9 dias de doença para curar com incapacidade para o trabalho, tendo resultado da primeira cicatriz ligeiramente perceptível na face esquerda, por via disso, cortou-lhe ainda o colarinho da camisa e a camisola, inutilizando-os completamente.
O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito, conseguido, ofender na honra e consideração o assistente e de lhe provocar ferimentos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Incorreu, assim, na autoria material de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181°, do C.P., em concurso real com um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artº143 n°1 do C. Penal.
PROVA:
1° - Declarações do assistente;
2° - D..........; e
3° - B..........;
Documental a constante nos autos”.

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Inconformado com a decisão instrutória que não pronunciou o arguido pelos crimes de ofensa a integridade física qualificado e dano com violência porque se encontrava acusado, interpõe o Ministério Público o presente recurso, que remata com as seguintes conclusões:

«1. A M.ma juíza na decisão instrutória não pronunciou o arguido pela prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificado e dano com violência porque se encontrava acusado, entendendo que os factos descritos na acusação não eram susceptíveis de integrar tais ilícitos.
2. Porém, tal apenas ocorreu por ter feito uma incorrecta interpretação das previsões legais respectivas, ou seja art.°s146°, com referência aos art°s132°, n°2, al. g) e 143°, n°1, 214°, n°1, al. a), com referência ao artº212°, todos do C.P..
3. Os quais violou, o que ocorreu também com o artº308°, com referência ao artº283°, n°2, ambos do C.P.P..
4. Devendo ser revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido pela prática daqueles crimes».
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Tão só respondeu o arguido E.........., o qual suscita a questão prévia da extemporaneidade do recurso e conclui pelo seu não provimento.
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Subindo os autos, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer de não provimento do recurso.

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Observado o disposto no artº417º nº2 do CPP, não houve resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Conhecendo da questão prévia, suscitada pelo arguido, da extemporaneidade do recurso:

Nos termos do artº411º nº1 do Cód. Proc. Penal, «O prazo para interposição do recurso é de 15 dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou, tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria».

Ora da recensão dos autos (fls.02 e 20) resulta:

«O despacho recorrido foi exarado nos autos em 30/04/2004, sendo notificado ao Magistrado do Ministério Publico (recorrente) e aos sujeitos processuais no acto da leitura da decisão do debate instrutório.
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O requerimento de interposição do recurso e respectiva motivação deu entrada em 20/05/2004».

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Em conformidade com o citado normativo, o presente recurso só foi interposto no terceiro dia útil, após o prazo legal de 15 dias, sem que a digna recorrente usasse da faculdade prevista no artº145º do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do disposto no artº107º nº5 do Código de Processo Penal.

Se bem que se entenda estar dispensado do pagamento de qualquer multa, não está porém dispensado o Ministério Público de manifestar expressamente, nos autos, a vontade de praticar, em qualquer daqueles dias, o acto de recorrer, tal como vertido, designadamente, no Ac. do TC n.°355/01, de 11/7/01 (DR. IIª Série, 238), e Ac. do STJ de 2/10/03 (CJ., T3, 202) – “uma declaração no sentido de pretender praticar o acto nos três dias posteriores ao termo do prazo”, “exigência que equivalerá num plano simbólico, ao pagamento da multa e será um modo suficiente e adequado controlo institucional do cumprimento dos deveres relativos a prazos processuais pelo M°Pº”.

Não o tendo feito, é o presente recurso manifestamente extemporâneo e como tal deve ser rejeitado, com o que fica prejudicado o seu conhecimento, nos termos ainda das disposições conjugadas dos artºs420º nº1 e 414º nº2 do Cód. Proc. Penal.

Decisão:

Acordam os Juízes nesta Relação em rejeitar o presente recurso, por ser manifestamente extemporâneo e em não tomar conhecimento do mesmo.

Sem tributação.

Porto, 25 de Janeiro de 2006
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins
João Inácio Monteiro