Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0735722
Nº Convencional: JTRP00041093
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RP200802140735722
Data do Acordão: 02/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 748 - FLS 111.
Área Temática: .
Sumário: A força probatória plena do documento particular não impede que as declarações dele constantes sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem, podendo o declarante – sobre quem impende o correspondente ónus de prova – recorrer a qualquer meio, incluindo a prova testemunhal, para provar que as declarações não correspondem à vontade ou que esta foi afectada por qualquer vício do consentimento (erro, dolo, coacção, simulação, etc.).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………. instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra C………. e mulher D………. .
Pediu que réus fossem condenados a reconhecer o direito de propriedade da autora aos prédios identificados sob os artigos 1º, 4º, 7º, 17º e 18º da petição inicial, mediante a outorga da escritura de compra e venda e cessão da posição contratual prevista nos contratos de promessa de compra e venda e de cessão da posição contratual referidos no mesmo articulado;
Ou, caso assim não se entenda, serem os réus condenados a restituir à autora a quantia de 35.500.000$00, acrescida de juros vencidos à taxa acordada, que na data da propositura da acção ascendiam já a 13.312.000$00, e os vincendos à mesma taxa até efectivo e integral pagamento.
Como fundamento, alegou, em síntese, que, através de contrato promessa de compra e venda, celebrado em 09.03.93, a sociedade E………. prometeu vender a F………., que por sua vez lhe prometeu comprar, mediante pagamento da quantia de 40.500.000$00, duas habitações T2 e uma T3. Pelo mesmo contrato, o aludido F………. indicou como beneficiário do mesmo o igualmente outorgante C………., aqui réu, ou outrem por ele indicado. Por escrito, em 30.04.93, aquele réu cedeu a sua posição contratual à aqui autora, relativamente à habitação T3, designada pela fracção nº 18, pelo preço de 15.500.000$00, que declarou já ter recebido daquela, tendo, mais tarde, em 30.11.93, cedido também à autora, relativamente às duas outras fracções T2, a sua posição contratual no referido contrato, agora por 20.000.000$00. Em Dezembro de 1993, a E………., Lda, avisada pelo réu da dita cessão, entregou à autora as chaves das referidas fracções, tendo esta de imediato passado a habitar a fracção nº 16, e dado de arrendamento as restantes. Mais tarde, a autora recebeu uma carta da E………., Lda, onde dizia não se poder outorgar a escritura definitiva objecto daquele contrato promessa, pois os réus haviam dado sem efeito a sua indicação como beneficiária do mesmo.
Os réus contestaram, invocando a simulação dos contratos referidos na petição inicial e a falsidade da assinatura atribuída ao réu no contrato datado de 30.11.93.
Deduziram também reconvenção, formulando os seguintes pedidos:
A) Ser a autora condenada a reconhecer que as casas objecto do contrato promessa em causa pertencem aos réus, procedendo à sua entrega imediata;
B) Ser a autora condenada a reconhecer que os móveis identificados no artº 98º da contestação pertencem aos réus, procedendo à sua entrega imediata;
C) Ser a autora condenada a reconhecer que os veículos RA e XF eram pertença dos réus, que as declarações de venda assinadas por autora e réu foram simuladas, condenando-se a autora a proceder ao pagamento do valor comercial à data da sua alienação, no montante global de 5.500.000$00;
D) Ser declarado, para efeitos de registo automóvel, a favor do réu, que o veículo Nissan ……….., de matrícula ..-..-BR, pertence ao réu, apesar de se encontrar averbado em nome da autora, ordenando-se o registo do mesmo a favor do réu;
E) Ser a autora condenada a restituir aos réus a quantia de 3.550.000$00, que já recebeu até à data da formulação do pedido reconvencional, a título de rendas cobradas aos inquilinos das vivendas, bem como todas as que se vencerem até à data da entrega das casas;
F) Ser a autora condenada a pagar aos réus a quantia de 1.120.000$00, referente ao valor locativo pela utilização do T3 e dos móveis que constituem o respectivo recheio, bem como a importância que se vencer desde essa data até à entrega efectiva da casa e dos móveis, à razão de 80.000$00 por mês;
G) Ser a autora condenada a pagar aos réus a quantia de 261.128$00, referente aos registos provisórios de aquisição e hipoteca que caducaram em virtude da instauração pela autora da providência cautelar apensa;
H) Ser a autora condenada a pagar aos réus a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, referente aos danos patrimoniais e morais que lhes advieram pelo facto de terem sido impedidos de celebrar as escrituras, de mutuo com hipoteca com o G………., e de compra e venda com H………., cujo valor não é ainda possível liquidar.
Como fundamento da reconvenção, alegaram, em síntese, que o réu e a autora viveram maritalmente. Quando foi viver com a autora, o réu comprou diversos bens móveis, que a autora se encontra a usufruir, bem como do T3 para onde foram inicialmente viver, e que o réu exigiu a entrega, após a separação, ao que a autora se recusou, ocupando assim, sem qualquer título que o justifique, a dita fracção. O réu entregou à autora vários carros, de forma a subtrai-los à acção de divórcio e subsequente partilha. A autora encontra-se a receber rendas pelos apartamentos T2.
Na réplica, a autora impugnou os factos alegados pelos autores como fundamento da reconvencão.
Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que:
A) Julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os réus dos pedidos formulados;
B) Julgou parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenou a autora a reconhecer que os móveis identificados no artº 98º da contestação pertencem aos réus, procedendo à sua entrega imediata.

Inconformada, a autora recorreu, formulando as seguintes
Conclusões

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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
Em Maio de 1980, o réu arrendou à autora uma fracção destinada a salão de cabeleireiro, instalado num prédio dos réus, em ………., Vila Nova de Famalicão, tendo ambos posteriormente (em data anterior a Março de 1993) iniciado um relacionamento íntimo. (N)
Através de contrato promessa de compra e venda, celebrado em 09.03.93, E………., Lda. prometeu vender a F………., que por sua vez lhe prometeu comprar, mediante pagamento da quantia de 40.500.000$00, os seguintes prédios:
Duas habitações, tipo T2, designadas pelas fracções nºs 16 e 17, e uma habitação tipo T3, designada pela fracção nº 18, edificadas nas parcelas de que constituem os lotes nºs .., .., .., .. e .., sitos no ………., Vila Nova de Famalicão. (A)
Pelo mesmo contrato, o aludido F………. indicou como beneficiário do mesmo o igualmente outorgante C………., réu, ou outrem por ele indicado, declarando a E………., Lda comprometer-se a entregar-lhe todas as referidas habitações, prontas a habitar, no prazo de 12 meses a contar daquela data, conforme igualmente consta do aludido documento. (B)
Em 30.04.93, por escrito, aquele réu cedeu a sua posição derivada do contrato referido em B) à autora, relativamente à habitação tipo T3, designada pela fracção nº 18, pelo preço de 15.500.000$00, que declarou já ter recebido daquela, conforme consta do documento cujo teor aqui e dá por reproduzido. (C)
O réu e I………. declararam, por escrito, datado de 30.04.93, o primeiro ceder a sua posição derivada do contrato referido em 1 à segunda, relativamente à habitação tipo T2, pelo preço de 30.000.000$00, que declarou já ter recebido daquela, conforme consta de fls. 44 a 46. (O)
Alguns meses após a celebração do contrato referido em A), em Julho de 1993, as relações pessoais e conjugais entre os réus deterioraram-se por causa do relacionamento entre autora e réu marido, tendo este último abandonado o lar conjugal e passado a viver maritalmente com a autora, em ………., Guimarães. (10º)
Através de cartas, a E………., Lda comunicou à autora que, face à comunicação que entretanto havia recebido do réu, “as respectivas escrituras referentes às habitações designadas pelas fracções nºs 16, 17 e 18, sitas na ………. em Vila Nova de Famalicão, serão escrituradas a seu favor”. (D)
De acordo com aquelas comunicações, a autora foi informada que nos dias 15.12 e 25.12.93 lhe seriam entregues as chaves referentes àquelas fracções, e que as escrituras seriam celebradas em data a combinar, e nos termos do documento referido em A), conforme consta dos documentos de fls. 15 e 16 do apenso A, cujo teor aqui se reproduz integralmente. (E)
No mês de Dezembro de 1993, a E………., Lda entregou à autora as chaves das referidas habitações, e esta de imediato passou a habitar a fracção nº 16, e deu de arrendamento as restantes, tendo celebrado com a K………. um contrato de prestação de serviço telefónico. (F)
Aquando da entrega das habitações pela E………., Lda, o réu marido e a autora foram habitar o T3, sendo que já então viviam juntos. (P)
Para mobilar a habitação T3, na sequência do referido em P), o réu marido adquiriu a J………., com sede em ………., ……….:
- uma estante para TV, pelo preço de 295.000$00;
- uma mobília de quarto cor de rosa e espelhos, pelo preço de 470.000$00;
- uma mobília de quarto com cama de ferro, pelo preço de 565.000$00;
- uma cristaleira, pelo preço de 550.000$00;
- um quatro com mural e penteador, pelo preço de 795.000$00;
- um alô de entrada pequeno, pelo preço de 120.000$00;
- um alô de entrada grande, pelo preço de 200.000$00;
- um jogo de sofás em pele, pelo preço de 440.000$00;
- um cadeirão em pele, pelo preço de 47.000$00;
- uma mesa de centro, pelo preço de 140.000$00;
- uma cozinha lacada com granito, pelo preço de 955.000$00;
- uma placa para fogão, pelo preço de 42.000$00;
- um forno branco, pelo preço de 105.000$00;
- uma banca de duas pias, pelo preço de 27.000$00;
- um ventoinha, pelo preço de 35.000$00;
- uma balde de lixo, pelo preço de 8.000$00;
- um móvel, pelo preço de 62.000$00;
- um móvel cor de rosa, pelo preço de 43.000$00;
- dois cestos para banca, pelo preço de 8.000$00;
- um móvel com espelho, pelo preço de 59.000$00;
- um telefone, pelo preço de 19.000$00;
- dois bancos em pele, pelo preço de 20.000$00. (31º a 54º)
O pagamento daqueles móveis, no valor de 4.965.000$00, foi efectivado através da cessão da posição contratual de um contrato promessa de compra e venda de um apartamento, sito na ………., em Vila Nova de Famalicão, a favor do proprietário dos J………. . (54º)
A autora foi notificada pela E………., Lda para comparecer no 1º Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, no dia 03.08.94, a fim de outorgar a escritura de compra e venda que se alude no contrato referido em A). (G)
Tal não aconteceu por ter faltado F………. . (H)
Em 17.04.95, a E………., Lda enviou à autora a comunicação de fls. 231 destes autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido, onde lhe comunicava que por termo de transacção celebrado no dia 28.03.95, no proc. nº ../95, do Tribunal de Santo Tirso, na acção em que os aqui réus moviam à E………., Lda a F………. e mulher, aqueles deram sem qualquer efeito a indicação que haviam feito de ser a autora a beneficiária das casas em causa, assumindo todas as responsabilidades decorrentes desse acto. Assim, termina pedindo que a autora deixe os prédios que lhe foram entregues, procedendo à entrega dos mesmos aos aqui réus. (I)
O teor da certidão de fls. 234 a 236, referente à transacção efectuada no dia 28.03.95, no proc. nº ../95, do Tribunal de Santo Tirso, na acção em que os aqui réus moviam à E………., Lda e a F………. e mulher, e onde aqueles deram sem qualquer efeito a indicação que haviam feito de ser a autora a beneficiária das casas em causa, assumindo todas as responsabilidades decorrentes desse acto. (J)
Em Julho de 1995, o réu marido deixou de habitar o T3, referido em A), abandonando-o, nele tendo ficado desde então a residir a autora. (V)
Em 20.09.95, a E………., Lda enviou à autora a comunicação de fls. 232, onde lhe dá conhecimento e lhe envia cópia da declaração subscrita pela ré mulher em que não autoriza a celebração da escritura dos prédios aqui em causa com a autora, dizendo-lhe que não pode, por tal facto, celebrar com a mesma tais escrituras. (L)
Os réus opõem-se a que a escritura relativa ao contrato referido em A) seja celebrada com a autora como compradora. (M)
O réu possuía um veículo de marca Renault .., matricula RA-..-.., que se encontra inscrito na Conservatória do Registo Automóvel, em seu nome. (Q)
De igual modo se encontrava inscrito em seu nome, na Conservatória do Registo Automóvel, um veículo Nissan ………., com a matrícula ..-..-BR. (R)
O réu adquiriu um veículo Opel ………., matrícula XF-..-.. . (S)
O réu declarou vender à autora os veículos referidos em Q) a S), assinando as respectivas declarações de venda. (T)
O veículo Nissan ………. continuou e continua a ser aquele que o réu utiliza diariamente nas suas deslocações. (U)
A autora, de posse das declarações de venda, entregou o RA à troca na aquisição de um veículo Honda, …, matricula ..-..-DQ e alienou o Opel. (56º e 57º)
O réu nunca pretendeu vender aqueles veículos à autora, nem esta os quis comprar, não tendo a autora pagado qualquer quantia pela aquisição dos mesmos. (59º e 60º)
A autora procedeu ao arrendamento das fracções Tipo T2, referidas em A), tendo auferido as suas rendas, fazendo seu tal montante, que utilizou e gastou em proveito próprio e exclusivo. (61º e 62º)
Os réus negociaram com o G………. um financiamento no valor de 17.500.000$00, pretendendo dar de hipoteca as duas habitações T2, referidas em 2, despendendo em registos provisórios a quantia de 211.128$00. (65º)
Os réus negociaram com H………. a compra da habitação Tipo T3. (66º)
A autora intentou contra os réus providência cautelar não especificada, onde, alegando os factos que estão na origem da presente acção, pedia a notificação dos mesmos para que se abstenham de outorgar a escritura definitiva de compra e venda relativa aos bens em causa, bem como de os onerar ou de indicar terceira pessoa como cessionária nos direitos e obrigações emergentes do contrato promessa referido em 2, para outorgar a respectiva escritura definitiva, e a manter a entrega que dos mesmos bens, objectos do contrato promessa de compra e venda, foi feita à requerente.
Tal providência veio a ser decretada, mantendo-se a decisão nela inserta até que seja proferida sentença nestes autos.
*
III.
São questões a decidir (delimitadas pelas conclusões da alegação da apelante - artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC):
- Se na sentença se omitiu o exame crítico das provas;
- Se as respostas aos quesitos 31º a 54º, 57º, 59º, 60º, 61º e 62º devem ser alteradas;
- Se o documento junto a fls. 42 e 43 prova plenamente que o réu recebeu da autora a quantia de 15.500.000$00.

1. Omissão do exame crítico das provas
Sustenta a autora que na sentença recorrida não se fez a análise crítica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Diz o artº 659º, nº 3 do CPC - Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem – que, na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
Para compreender do segmento final daquele normativo, há que ter presente que, quando o juiz vai proferir a sentença, se encontra já perante determinadas aquisições em matéria de facto. Tem diante de si: a) por um lado, a matéria assente, isto é, o conjunto de factos que já estão confessados, admitidos por acordo das partes ou provados por documentos no momento da selecção da matéria de facto (artº 511º); b) por outro lado, os factos que já deu como provados nas respostas aos quesitos à base instrutória (artº 653º, nº 2).
Mas além dos factos que lhe são fornecidos pelas duas peças acima indicadas, há, ou pode haver, outros que cumpre tomar em consideração e que são aqueles que não tenham sido expressamente declarados provados, mas que o estejam por via de prova plena documental, confissão escrita ou acordo das partes – quer já estivessem provados por aqueles meios aquando da selecção da matéria de facto e não tivessem aí sido considerados, quer a prova documental, a confissão ou acordo das partes sejam posteriores àquele momento processual[1].
O exame crítico das provas que cumpre fazer na sentença não abrange assim as provas já consideradas aquando da selecção da matéria de facto a que se refere o artº 511º nem as já consideradas aquando das respostas aos quesitos da base instrutória, cujo exame crítico é feito logo após as respostas aos mesmos, nos termos do artº 653º, nº 2[2].
Decorrentemente, a menção no nº 3 do artº 659º da análise crítica das provas, pela própria natureza das coisas, não pode ter o sentido do segmento relativo à análise crítica das provas e à especificação dos fundamentos decisivos para a decisão da matéria de facto decisivos para a convicção do julgador a que se reporta o artigo 653º, nº 2[3].
Como escreve Alberto dos Reis[4], a pouco se reduz o exame crítico de que ali se fala. Como é plena a força probatória da confissão, do acordo e dos documentos, pouco mais terá o juiz de fazer do que registar os factos cobertos por esses meios de prova. Dentro da disciplina fixada pelas normas que regem a força probatória dos documentos e da confissão, tem de admitir como exactos os factos que chegam ao seu conhecimento através dos meios de prova indicados.
Concluímos assim, como no citado Ac. do STJ de 20.11.03, que a análise crítica das provas a que se reporta o artº 659º, nº 3 se reconduz, no confronto das normas que se reportam aos meios de prova plena, ao acrescentamento ao elenco fáctico dos factos provados por esses meios.
No caso, a factualidade elencada na sentença engloba os factos que foram considerados provados aquando da selecção da matéria de facto nos termos do artº 511º e os que resultaram das respostas aos quesitos da base instrutória (a confissão da ré, provocada pelo seu depoimento de parte, fundamentou as respostas aos quesitos que continham os factos sobre que recaiu), pelo que não havia que fazer na sentença o exame crítico das provas em que os mesmos assentam.
Para além daqueles factos, apenas se deu como assente a instauração e a pendência do procedimento cautelar apenso aos presentes autos – facto provado pelo próprio processo apenso a que se faz referência.
A sentença recorrida deu assim cabal cumprimento ao disposto na parte final do nº 3 do artº 659º, carecendo de fundamento legal a alegação da autora nesta parte.

2. Alteração das respostas aos quesitos 31º a 54º, 57º, 59º, 60º, 61º e 62º

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Não há assim que alterar as respostas aos mencionados quesitos pelos fundamentos invocados pela autora, mantendo-se, em consequência, a condenação da autora a entregar ao réu os bens móveis ali discriminados.

3. Prova do recebimento pelo réu da quantia de 15.500.000$00
Está provado que a sociedade E………., Lda prometeu vender a F………., duas habitações T2 e uma habitação T3, tendo este último indicado como beneficiário da promessa de venda o réu ou outrem por ele indicado.
Está junto a fls. 42 e 43 um documento intitulado “Contrato de Cessão da Posição Contratual”, assinado pela autora e pelo réu, no qual este declarou ceder à autora ré os direitos emergentes da promessa de compra e venda relativamente a uma fracção autónoma (habitação T3), pelo preço de 15.500.000$00, que também declarou já ter recebido daquela.
O réu aceitou a autoria e a assinatura daquele documento, mas alegou factos tendentes a demonstrar a simulação do contrato nele formalizado.
Na al. C) da matéria assente, deu-se como reproduzido o teor do documento e perguntou-se no quesito 4º se o réu recebeu da autora 15.500.000$00 para pagamento do preço do contrato referido em C), quesito esse que obteve como resposta “Provado apenas o que consta da al. C)”.
De seguida, foram quesitados os factos alegados pelo réu para provar a simulação do contrato, perguntando-se no quesito 25º se o réu não recebeu da autora a referida quantia de 15.500.000$00. Tais factos não se provaram.
Na sentença, a Mª Juíza a quo entendeu que, apesar de não se ter provado a simulação do contrato de cessão da posição contratual do réu para a autora, aquele negócio não produziu efeitos por a autora não ter provado que tivesse pagado o preço da cessão. Em consequência, julgou improcedente o pedido da autora de figurar como outorgante na escritura de compra e venda da fracção autónoma em causa.
Sustenta a autora que a prova do pagamento do preço está feita, de forma plena, pelo documento de fls. 42 e 43.

No artº 273º do CC estabelecem-se os requisitos dos documentos particulares: estes devem ser assinados pelo seu autor ou por outrem a seu rogo (nº 1), admitindo-se, em certos casos, a substituição da assinatura por simples reprodução mecânica (nº 2).
Só os documentos particulares que satisfaçam os requisitos previstos naquele normativo podem ter força probatória formal nos termos previstos nos artºs 374º a 376º do mesmo Diploma.
A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular, consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe terem sido atribuídos, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras (artº 374º, nº 1 do CC).
O requisito legal dos documentos particulares que releva para o efeito de lhe atribuir força probatória formal nos termos dos normativos acima citados é apenas o que consta do artº 373º do CC, ou seja, a assinatura do seu autor. Como refere Vaz Serra, a assinatura é requisito essencial do verdadeiro e próprio documento particular. A assinatura é o acto pelo qual o autor do documento faz seu o conteúdo deste, o acto, portanto, que lhe confere a sua autoria e que justifica a força probatória do mesmo documento[5].
Os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos do artº 374º do CC fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (artº 376º, nº 1 do mesmo Diploma). Já os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (nº 2 do mesmo normativo).
A força probatória plena do documento particular não impede que as declarações dele constantes sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem[6]. O declarante pode recorrer a qualquer meio, incluindo a prova testemunhal, para provar que as declarações não correspondem à vontade ou que esta foi afectada por qualquer vício do consentimento (erro, dolo, coação, simulação, etc.)[7].

No caso, o réu não impugnou a letra nem a assinatura do documento de fls. 42 e 43, reconhecendo a sua autoria, pelo que o mesmo reúne todos os requisitos legais para provar plenamente os factos contidos nas declarações que dele constam e que são desfavoráveis ao réu, ou seja, que o réu cedeu à autora a posição de promitente comprador que detinha no contrato promessa de compra e venda da fracção autónoma referida em A) e que já recebeu da autora o respectivo preço no montante de 15.500.000$00.
Sendo assim, não é a autora quem tem de provar os factos contidos nas declarações; é sobre o réu que impede o ónus de alegar e provar que as declarações que emitiu não correspondem à sua vontade ou que esta se encontrava afectada por qualquer vício.
Ora, o réu alegou precisamente que as declarações constantes do documento não correspondem à sua vontade real, como requisito essencial da invocada simulação do negócio formalizado no documento (cfr. artº 240º do CC).
O que não provou, como se depreende das respostas negativas aos quesitos 10º a 28º.
Não tendo o réu logrado infirmar a veracidade dos factos contidos nas declarações, mostram-se estes plenamente provados pelo documento de fls. 42 e 43.
Está assim provado pelo teor da al. C) da matéria assente que o réu recebeu da autora a quantia de 15.500.000$00, correspondente ao preço da cessão da posição que detinha no contrato promessa de compra e venda da fracção autónoma referida em A).
De onde resulta que a cessão da posição contratual do réu para a autora produziu todos os seus efeitos, ao contrário do que se entendeu na sentença recorrida.
Os demais requisitos da figura da cessão da posição contratual prevista no artº 424º, nº 1 do CC foram proficientemente analisados na sentença recorrida (e não estão, aliás, postos em causa no recurso), pelo que nos dispensamos de considerações a esse respeito.
Tal como se diz na sentença recorrida, a cessão da posição contratual não tem como efeito o reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre a fracção autónoma em causa, que ainda não lhe foi transmitido, mas tão só o reconhecimento do seu direito a figurar como promitente compradora no contrato promessa de compra e venda referido em A).
O cumprimento do contrato promessa é questão alheia a estes autos, como não poderia deixar de ser, já que a promitente vendedora não foi aqui demandada.
É certo que a ré não subscreveu o documento de fls. 42 e 43, pelo que o mesmo não pode ser invocado, como prova plena, contra ela; a ré é um terceiro em relação a quem as declarações emitidas no documento não têm eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente[8].
Mas o réu não carecia do consentimento da ré nem para celebrar o contrato promessa de compra e venda nem para celebrar o contrato de cessão da posição contratual, como resulta, a contrario, dos artºs 1682º, 1682º-A, 1682º-B, e 1683º, nº 2, todos do CC.
Assim, o efeito da presente acção em relação à ré é tão só o ver declarada a cedência para a autora da posição que o réu detinha no contrato promessa.

Procedem assim em parte as conclusões da autora, o que determina a procedência parcial do pedido principal, declarando-se que o réu cedeu à autora a posição que detinha no contrato promessa.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se, em parte, a sentença recorrida, e, em consequência:
- Declara-se que, por contrato celebrado em 30.04.93, o réu C………. cedeu à autora B………. a posição que F………. lhe havia cedido no contrato promessa de compra e venda celebrado em 09.03.93 com E………., Lda relativamente à habitação tipo T3, designada pela fracção nº 18, identificada no referido contrato promessa, pelo preço de 15.500.000$00, que já recebeu.
- Mantém-se o mais que foi decidido.
Custas da apelação pela apelante e pelos apelados na proporção de ½.
Custas da acção pela autora e pelos réus, na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente, e custas da reconvenção nos termos fixados na sentença recorrida.
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Porto, 14 de Fevereiro de 2008
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
Manuel Lopes Madeira Pinto

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[1] Cfr. Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 32 e 33.
[2] Crf. Ac. do STJ de 16.03.04, www.dgsi.pt.
[3] Ac. do STJ de 20.11.03, www.dgsi.pt.
[4] CPC Anotado, V, 33.
[5] BMJ 111º-155 e 161.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, 3ª ed., 330.
[7] Gonçalves Sampaio, A Prova por Documentos Particulares, 2ª ed., 115, nota 112.
[8] Cfr. Vaz Serra, RLJ, Ano 114º, 178.