Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3864/09.9T2OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CASO JULGADO
ABRANGÊNCIA
Nº do Documento: RP201304093864/09.9T2OVR.P1
Data do Acordão: 04/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O critério diferencial das acções de reivindicação e de demarcação centra-se no "conflito acerca do título" e no "conflito de prédios".
II - As duas acções sob cotejo não têm uma feição simplista que permita qualificar a primeira como de reivindicação e a segunda como de demarcação, antes apresentando uma cumulação real de pedidos, a que corresponde uma multiplicidade de acções.
III - Ainda que os autores tivessem movido uma primeira acção declarativa para reconhecimento da propriedade de certo prédio identificado por limites precisos, ficariam impedidos de, nesta acção, pretender a demarcação com outros limites, procurando alcançar a definição que, naquela, lhes foi recusada.
IV - A extensão do caso julgado refere-se não apenas à indiscutibilidade da subsistência de certa afirmação, mas abrange também a sua extensão inversa, de modo a que, tendo a primeira sentença, transitada em julgado, deixado indiscutível que aos autores não assiste o direito a que se arrogam para a extensão do seu prédio e para a definição das suas estremas, é-lhes vedado reintroduzir a discussão dessa matéria com a adução de nuances que não alteram a essência da questão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 3864/09.9T2OVR.P1
Acção sumária n.º 3864/09.9T2OVR, Comarca do Baixo Vouga – Ovar, Juízo de Média e Pequena Instância Cível

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B… e esposa, C…, residentes no …, …, Ovar, intentaram a presente ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo sumário, contra D… e mulher, E…, residentes na Rua …, …, …, …, Ovar, pedindo a sua condenação:
“a) A aceitar que seja fixada e declarada a linha de demarcação dos prédios dos Autores e dos Réus, segundo a delimitação que se alega (doc. 3 e 4);
b) Que a linha divisória inicia-se num marco existente a poente junto a um carvalho aí existente e vá com uma ligeira curva até à esquina de um muro de um prédio urbano que se situa a nascente, tal como se refere nas plantas, que se juntam sob os números 3 e 4;
c) Declarando-se, ainda, que o prédio dos Autores, identificado em 1.º, alínea b), possui a área de 900 m2 e tem a configuração que consta nos documentos 3 e 4;
d) Ser reconhecido que os prédios identificados em 1.º, alínea a) e b), são propriedade única e exclusiva dos Autores, tal como consta nos documentos juntos com esta petição inicial;
e) Serem os Réus condenados a absterem-se de passar pela parte norte do terreno dos Autores, tal como o têm feito desde 2006, uma vez que não existe nesse local qualquer servidão de passagem e não voltem mais a violar o direito de propriedade dos Autores, sobre os seus prédios;
f) Serem, ainda, os Réus condenados, nos termos dos arts. 483.º e segs. do Cód. Civil, a indemnizar os Autores pelos prejuízos causados com a obra, a apurar em sede de liquidação e execução de sentença, tudo acrescido dos respetivos juros legais, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.”.
Para tanto, alegaram, em síntese, que são donos e legítimos possuidores de dois prédios, sitos na freguesia de …, concelho de Ovar, inscritos na matriz sob os artigos 94.º e 95.º e descritos na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob os n.ºs 4049/20070206 e 03849/20060106. Prédios esses que confrontam, do lado norte, com os prédios dos réus, inscritos na matriz sob os artigos 100.º e 101.º, onde existe um caminho de servidão, que servia o prédio de F…, hoje dos réus. A delimitação entre os prédios, no local onde passa o referido caminho de servidão, sempre foi feita através de quatro marcos divisórios, um dos quais colocado a poente, junto de um poço, que ainda existe, e outro a nascente, e dois no meio destes, uma vez que a linha divisória não constitui uma recta mas sim numa linha curva inflectida para norte. No ano de 2005, foram destruídos os marcos divisórios e, em Janeiro de 2006, o réu marido mandou lavrar os seus terrenos, destruiu o caminho de servidão e os marcos, que ambos haviam colocado, com excepção do marco localizado a poente, junto do poço.

Citados os réus, apresentaram contestação que foi desentranhada por extemporaneidade.
Proferido despacho saneador, foi declarada a revelia parcialmente inoperante e notificadas as partes para cumprirem o preceituado no artigo 512º do Código de Processo Civil.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo e o tribunal decidiu a matéria de facto nos moldes exarados a fls. 196 a 198, sem reclamação.
Pronunciada a sentença, foi a acção julgada improcedente.
Irresignados, os autores apelaram da sentença, pugnando pela operância da revelia e pela procedência da acção.
A decisão do Tribunal da Relação de Coimbra revogou a declaração de inoperância da revelia relativa e determinou, consequencialmente, a inutilização de todos os actos processuais posteriormente praticados, incluindo da sentença final, e determinou o prosseguimento dos autos com a notificação dos ilustres advogados das partes para alegarem por escrito com o subsequente julgamento da causa conforme for de direito.

Após decisão do incidente de habilitação de herdeiros da autora mulher, falecida na pendência da causa, foi pronunciada decisão que, julgando verificada a excepção dilatória de caso julgado, absolveu os réus da instância.
Inconformados, apelaram, de novo, os autores, assim concluindo a sua alegação:
I. Ora salvo o devido respeito, discordam os autores da sentença que julgou verificada a excepção dilatória de caso julgado e absolveu os réus da instância.
II. A sentença é nula, uma vez que existe violação do vertido nos artigos 483.º, 484.º, 490.º e 668º do C.P.C., pois o Meritíssimo Juiz não especificou os Fundamentos de Facto e de Direito, que justificassem a decisão de absolvição dos réus e violou o vertido nos artigos 660º e ss., também do C.P.C. e também porque os fundamentos estão em oposição com a decisão.
III. São, portanto, dois os aspectos essenciais apontados e explicitados no recurso: Inexistência de Excepção do Caso Julgado (por inverificação de identidade dos pedidos nas acções em confronto); Uma vez inexistente a Excepção do Caso Julgado, a impreterível procedência da acção derivada da Revelia Operante dos Réus.
IV. Na primeira acção 875/06.0TBOVR, o pedido é: a) – Declarar-se que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico identificado no art. 1.º, cuja faixa de terreno, de cerca de 200 m2, aludida no art. 17.º foi ilegalmente ocupada; b) – Condenarem-se os réus a reconhecer tal direito sobre o prédio rústico identificado no art. 1.º, cuja faixa de terreno, aludida no art. 17.º, foi ilegalmente ocupada e a absterem-se de o violar; c) - Condenarem-se os réus a reconhecer que a posse que vem exercendo sobre a faixa do prédio rústico propriedade dos autores, não se funda em qualquer título que a legitime e é exercida contra a vontade dos autores; d) – Condenarem-se os réus a restituir aos autores a faixa de terreno ora reivindicada; e) – Em execução de sentença, aquele terreno propriedade dos autores, no qual se encontra incluída a parcela de terreno usurpada de cerca de 200 m2, em toda a extensão da confrontação norte/sul do imóvel propriedade dos autores, desde sensivelmente o meio do terreno até ao limite nascente, seja demarcado relativamente ao caminho de servidão com a aposição dos marcos que aí existiam originariamente, ou seja, um localizado a nascente, e outros dois colocados entre este, e o marco que restou situado a poente, junto do poço; f) – Condenarem-se os réus, nos termos do art. 483.º e ss. do C.C. a indemnizar os autores pelos prejuízos causados com a ocupação, a apurar em sede de liquidação e execução de sentença, tudo acrescido de juros legais, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.”
V. Na presente acção os pedidos são: a) A aceitar que seja fixada e declarada a linha de demarcação dos prédios dos autores e dos réus, segundo a delimitação que se alega (doc. 3 e 4); b) Que a linha divisória inicia-se num marco existente a poente junto a um carvalho aí existente e vá com uma ligeira curva até à esquina de um muro de um prédio urbano que se situa a nascente, tal como se refere nas plantas, que se juntam sob os números 3 e 4; c) Declarando-se, ainda, que o prédio dos autores, identificado em 1.º, alínea b), possui a área de 900 m2 e tem a configuração que consta nos documentos 3 e 4; d) Ser reconhecido que os prédios identificados em 1.º, alínea a) e b), são propriedade única e exclusiva dos autores, tal como consta nos documentos juntos com esta petição inicial; e) Serem os réus condenados a absterem-se de passar pela parte norte do terreno dos autores, tal como o têm feito desde 2006, uma vez que não existe nesse local qualquer servidão de passagem e não voltem mais a violar o direito de propriedade dos autores, sobre os seus prédios; f) Serem, ainda, os réus condenados, nos termos dos arts. 483.º e segs. do Cód. Civil, a indemnizar os autores pelos prejuízos causados com a obra, a apurar em sede de liquidação e execução de sentença, tudo acrescido dos respetivos juros legais, contados, desde a citação até efetivo e integral pagamento.”
VI. Em ambas as acções estamos perante uma multiplicidade de pedidos diferentes, aqui estamos perante uma acção de demarcação e onde se pede que os recorridos se abstenham de passar pelo terreno dos apelantes, o que não é pedido na primeira acção.
VII. Relativamente ao primeiro ponto deste recurso, a Inexistência de Excepção do Caso Julgado, o juiz a quo, ao decidir pela existência de caso julgado, violou o preceituado no artigo 498.º n.º 1 e 3 do C.P.C., por não se verificar identidade quanto ao pedido.
VIII. Assim sendo, a acção de condenação sob a forma sumária n.º 875/06.0TBOVR tinha as nítidas feições de acção de reivindicação, ainda que com outros pedidos cumulados, e a acção agora proposta demonstra claramente ser uma acção de demarcação, ainda que também com outros pedidos cumulados e, por isso, ainda que em alguns pontos se toquem, as causas de pedir de cada uma das referidas acções são perfeitamente distintas.
IX. Logo, não estamos na presença de uma excepção de caso julgado, e nem mesmo (por tudo o que supra deixámos expresso) perante uma ofensa à autoridade ou eficácia do caso julgado resultante da sentença proferida na primeira acção (e no caso de a segunda a acção vir porventura a proceder).
X. Em relação ao segundo ponto deste recurso, a impreterível procedência da acção derivada da revelia operante dos réus e, uma vez que estamos perante uma acção de demarcação, cujos fundamentos podem fazer-se valor por qualquer meio de prova admitido em direito e não apenas por prova documental, a revelia dos réus, aqui recorridos, deve ter-se por operante e absoluta, importando por isso a confissão dos factos articulados pelos autores.
XI. Acontece, que os réus não contestaram a presente acção, depois
de terem sido devidamente citados, para o efeito, tinha o Meritíssimo Juiz de condenar nos devidos termos vertidos na lei, que seria no pedido formulado pelos autores na sua petição inicial.
XII. Houve uma nítida violação do vertido nos artigos 483º, 484º e 490º do C.P.C..
XIII. Ainda que esta acção pudesse encaixar no âmbito do artigo 485º do C.P.C., justificando-se a aqui revelia dos réus, como inoperante, não deveria ter sido esta a razão de ser de tal decisão, já que não estamos perante uma acção de demarcação pura, pois existem outros pedidos;
XIV. Mesmo que fosse esse o tipo de acção, pois também aí não se aplicaria o vertido pelo Meritíssimo Juiz e não encaixaria nessas acções, pois não tem qualquer protecção legal.
XV. Existem, também, documentos juntos com a petição inicial, que só por si e ao não serem impugnados deveriam ter sido os réus condenados no pedido formulado;
XVI. Por fim e sem prescindir, sempre se dirá que a douta sentença é nula, violando o vertido no artigo 668º do C.P.C.;
XVII. Pois os fundamentos de facto e de Direito invocados pelo Julgador, deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão.
XVIII. O Meritíssimo Juiz deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar ou conhecer de questões que não poderia conhecer.
XIX. Existe contradição lógica entre a fundamentação e as suas premissas de facto e de Direito e a conclusão deveria ter um resultado diverso.
XX. Não se pronunciou o Meritíssimo juiz, erradamente, sobre os diversos pedidos, não contestados, no douto despacho e respectiva sentença, logo está a mesma ferida de nulidade e viola o preceituado no artigo 668º do C.P.C..
XXI. O Tribunal a partir do momento que os réus não contestaram, tinham que ser condenados, pois não existe qualquer interesse público ou Direito indisponível, estamos perante Direitos disponíveis.
XXII. Na petição inicial diz-se que a linha divisória e a demarcação das propriedades, deviam ser tal como consta nos artigos 15, 17, 21, 32 e 33 da mesma e nas plantas juntas aos autos, mais concretamente no documento 3.
XXIII. A falta de contestação tinha e tem que levar à procedência total da acção e à condenação imediata dos réus nos pedidos, mediante simples adesão aos fundamentos alegados pelos autores na petição inicial.
XXIV. Existe nítida violação no vertido nos artigos 483º, 484º e 784º e não se aplica nesta acção o vertido no artigo 485º do C.P.C.
XXV. Assim, por tudo o alegado, deverá a douta sentença sob recurso ser alterada e serem os réus condenados no que foi peticionado pelos autores.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve a decisão recorrida ser revogada, com as consequências que daí resultem.

Os réus remataram a sua resposta do seguinte modo:
1º - A presente acção é uma clara repetição da primeira causa (acção 875/06.0TBOVR), porquanto os factos alegados são os mesmos, as partes são as mesmas, e a causa de pedir e os pedidos são absolutamente idênticos, porquanto o objecto da discussão é o mesmo, ou seja, exactamente a mesma parcela de terreno.
2º - A identidade de pedidos ipsis verbis não é necessária para que se mostre verificada a excepção de litispendência, bastando que sejam coincidentes quanto ao seu objectivo fundamental, tal como se verifica no caso em apreço.
3º - Se os recorrentes dão como certa as estremas e pedem a restituição da parcela, a acção é de reinvidicação; mas, se não tem por seguros os limites, ou tendo-os não pode ou não quer enfrentar a respectiva dificuldade probatória, então pedirão a fixação da linha divisória, podendo por via indirecta, obter o mesmo resultado, não podendo no entanto tentar a sua sorte por ambas as vias.
4º - No caso em apreço não existe qualquer diferenciação real entre as duas acções, porquanto na segunda acção os recorrentes continuam totalmente seguros acerca dos limites e estremas da sua propriedade tal como estavam na primeira acção, apenas tendo pedido a demarcação como forma de, por via indirecta, obter o mesmo resultado que não conseguiram por força da improcedência da primeira acção de reinvidicação.
5º - Esta segunda acção de demarcação é uma verdadeira nova acçao de reivindicação encapotada, porquanto pretendem arrastar a linha divisória uns metros para dentro do terreno dos recorridos, de forma a permitir que tal demarcação lhes permitam englobar a mesma faixa de terreno que reivindicaram na primeira acção.
6º - Pelo que existe caso julgado.
7º - O caso julgado constitui uma excepção dilatória – artº 494 i) do CPC.
8º - Que impõe a absolvição da instância – artº 493 CPC.
9º - O facto de a excepção não ter sido deduzida nos articulados não obsta ao seu conhecimento pelo tribunal uma vez que é do conhecimento oficioso – artº 495 CPC.
10º - Sem conceder, a falta de contestação não conduz à condenação no pedido, antes importa apenas a confissão dos factos articulados pelo autor – artº 784 CPC.
11º - O juiz apreciará se os factos reconhecidos determinam ou não a procedência da acção – artº 784 CPC.
12º - Não foram alegados factos suficientes nem juntos documentos relevantes que permitam ao tribunal fixar uma linha de demarcação pois não pode determinar-se que a linha faz «uma ligeira curva», o que é vago e impreciso.
13º - Aceita-se que se deve reconhecer que os autores são os donos dos prédios inscritos na matriz sob os artºs 94º e 95º da matriz; porém
14º - Afrontaria o caso julgado reconhecer-se que são donos desses prédios «tal como consta dos documentos juntos».
15º - Está provado (primeira acção) a existência de um caminho de servidão pelo que não pode o tribunal condenar os réus a absterem-se de passar por não «existir servidão».
16º - Não pode o julgador condenar em indemnização sem que sejam alegados danos e tal alegação não foi feita.
Termos em que deve ser mantida a Douta decisão recorrida.

II. Objecto do recurso
Delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida, pela parte da decisão impugnada desfavorável ao recorrente e pelas conclusões recursivas, o recurso é um meio de impugnação da decisão judicial recorrida, mas não um mecanismo de apreciação de questões novas, salvaguardadas as matérias de oficioso conhecimento (artigos 684º, 3, e 685º-A do Código de Processo Civil[1]).
Assim, o presente recurso impõe a resolução das seguintes questões:
1. Nulidade da sentença.
2. Caso julgado.

III. Iter processual relevante
1. B… e esposa, C…, instauraram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra D1… e esposa, E…, que correu os seus termos sob o n.º 875/06.0TBOVR pelo 3.º Juízo do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Ovar, formulando os seguintes pedidos:
“1 – Declarar-se que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico identificado no art. 1.º, cuja faixa de terreno, de cerca de 200 m2, aludida no art. 17.º foi ilegalmente ocupada;
2 – Condenarem-se os Réus a reconhecer tal direito sobre o prédio rústico identificado no art. 1.º, cuja faixa de terreno, aludida no art. 17.º, foi ilegalmente ocupada e a absterem-se de o violar;
3 - Condenarem-se os Réus a reconhecer que a posse que vem exercendo sobre a faixa do prédio rústico propriedade dos Autores, não se funda em qualquer título que a legitime e é exercida contra a vontade dos Autores;
4 – Condenarem-se os Réus a restituir aos Autores a faixa de terreno ora reivindicada;
5 – Em execução de sentença, aquele terreno propriedade dos Autores, no qual se encontra incluída a parcela de terreno usurpada de cerca de 200 m2, em toda a extensão da confrontação norte/sul do imóvel propriedade dos Autores, desde sensivelmente o meio do terreno até ao limite nascente, seja demarcado relativamente ao caminho de servidão com a aposição dos marcos que aí existiam originariamente, ou seja, um localizado a nascente, e outros dois colocados entre este, e o marco que restou situado a poente, junto do poço;
6 – Condenarem-se os Réus, nos termos do art. 483.º e ss. do C.C. a indemnizar os Autores pelos prejuízos causados com a ocupação, a apurar em sede de liquidação e execução de sentença, tudo acrescido de juros legais, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.”
2. Como fundamento da sua pretensão alegaram que são proprietários e legítimos possuidores de um prédio rústico que identificam, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 95º da freguesia de …, concelho de Ovar, inscrito a seu favor na CRP e descrito sob o n.º 03849/060106 da CRP de Ovar. Articularam que esse seu prédio sempre confrontou do lado norte com um caminho de servidão que servia, além do mais, os prédios dos réus, inscritos na matriz rústica daquela freguesia sob os n.ºs 100º e 101º. Essa delimitação era feita por quatro marcos e, a seguir, por um rego de água. Com excepção do marco junto ao poço, os demais foram arrancados no ano de 2001, mas, conjuntamente com o réu marido, recolocaram os marcos. Em Janeiro de 2006, o réu marido mandou lavrar os seus terrenos, invadiu o terreno dos autores e destruiu o caminho e os marcos, ressalvado o que se encontrava junto ao poço, apoderando-se de cerca de 200 m2 (fls. 135 a 143).
3. Nessa acção, contestaram os réus, alegando que o caminho de servidão com que confrontam os dois prédios não se situa no local indicado pelos autores e a faixa de terreno indicada integra o seu prédio. Deduziram reconvenção, pedindo que os autores/reconvindos fossem condenados a reconhecer que a faixa de terreno que assinalam em planta anexa com a área de 109,88 m2 faz parte integrante do seu prédio (fls. 151 a 153).
4. Acção sumária em que foi prolatada sentença em 30 de Julho de 2008, que julgou a acção improcedente e procedente o pedido reconvencional, com a condenação dos autores/reconvindos a reconhecer que a faixa de terreno que assinalaram em planta anexa e com a área de 109,88 m2 faz parte integrante do prédio dos réus (fls. 60 a 66).
5. Interposto recurso, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 14 de Maio de 2009, julgou parcialmente procedente a apelação e, revogando a sentença no tocante à procedência da reconvenção, declarou-a improcedente e absolveu os autores do pedido reconvencional (fls. 68 a 83).
6. Em 24 de Julho de 2009, interpuseram os autores, B… e esposa, C…, a presente acção pedindo a condenação dos réus D1…. e esposa, E…,:
“a) A aceitar que seja fixada e declarada a linha de demarcação dos prédios dos Autores e dos Réus, segundo a delimitação que se alega (doc. 3 e 4);
b) Que a linha divisória inicia-se num marco existente a poente junto a um carvalho aí existente e vá com uma ligeira curva até à esquina de um muro de um prédio urbano que se situa a nascente, tal como se refere nas plantas, que se juntam sob os números 3 e 4;
c) Declarando-se, ainda, que o prédio dos Autores, identificado em 1.º, alínea b), possui a área de 900 m2 e tem a configuração que consta nos documentos 3 e 4;
d) Ser reconhecido que os prédios identificados em 1.º, alínea a) e b), são propriedade única e exclusiva dos Autores, tal como consta nos documentos juntos com esta petição inicial;
e) Serem os Réus condenados a absterem-se de passar pela parte norte do terreno dos Autores, tal como o têm feito desde 2006, uma vez que não existe nesse local qualquer servidão de passagem e não voltem mais a violar o direito de propriedade dos Autores, sobre os seus prédios;
f) Serem, ainda, os Réus condenados, nos termos dos arts. 483.º e segs. do Cód. Civil, a indemnizar os Autores pelos prejuízos causados com a obra, a apurar em sede de liquidação e execução de sentença, tudo acrescido dos respetivos juros legais, contados, desde a citação até efetivo e integral pagamento.” (fls. 2 a 18).
7. Alegaram que são donos e legítimos possuidores de dois prédios identificados no artigo 1º, a) e b), inscritos, respectivamente, na matriz predial rústica da freguesia de São João, concelho de Ovar, sob os artigos 94º e 95º e inscritos a seu favor na CRP e descritos sob os n.ºs 4049/20070206 e 03849/20060106. O prédio referido em b) sempre confrontou do lado norte com um caminho de servidão, que serve os prédios dos réus, inscritos na matriz rústica sob os artigos 100º e 101º. A delimitação dos prédios de autores e réus sempre foi feita através de quatro marcos e logo a seguir um rego de água. Tais marcos foram arrancados e destruídos em 2005, com excepção do que se encontra junto ao poço e, conjuntamente com o réu marido, assentaram os outros marcos que haviam sido arrancados. Em Janeiro de 2006, o réu marido mandou lavrar os terrenos, destruiu o caminho de servidão e os marcos, com excepção do localizado junto ao poço, e apoderou-se de uma parcela de terreno superior a 200 m2. A linha divisória deve ser feita pelo local indicado na planta para que os réus deixem de invadir o terreno dos autores e eliminem o caminho que fizeram nesse prédio. Não têm necessidade de passar por esse caminho, pois todos os seus prédios confrontam com a via pública (fls. 2 a 18).
8. Citados os réus, apresentaram contestação. Por despacho de 8 de Outubro de 2009, foi determinado o seu desentranhamento por extemporaneidade. Foi ordenado o registo da acção (fls. 86 a 87, ref. 5607853).
9. Recusado o registo da acção, foi a revelia dos réus julgada “parcialmente inoperante” e elaborado despacho saneador tabelar. Foram as partes notificadas para apresentar os seus meios de prova (ref. 6710722).
10. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi decidida a matéria de facto sem reclamação.
11. Com data de 30 de Julho de 2008, foi pronunciada sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julga-se a presente acção improcedente, por não provada, absolvendo-se os Réus D1… e E…, do pedido.” (fls. 168 a 174).
12. Interposto recurso, a decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra, datada de 12 de Janeiro de 2009, declarou operante a revelia e confessados os factos alegados pelos autores no articulado inicial, bem como determinou a inutilização de todos os actos processuais praticados posteriormente à decisão revogada, incluindo a sentença final, com notificação dos advogados para alegarem por escrito, com posterior proferimento de sentença, julgando a causa como for de direito (fls. 329 a 356).
13. Por sentença de 15 de Junho de 2012 foi declarada a excepção dilatória de caso julgado relativamente à sentença proferida na acção sumária n.º 875/06.0TBOVR (fls. 417 a 420).

IV. Fundamentos de direito
1. Nulidade da sentença
Os apelantes evocam a nulidade da sentença porque os fundamentos de facto e de direito usados pelo julgador deveriam conduzir a um resultado oposto ao expresso na decisão. Na verdade, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão (artigo 668º, 1, c), do Código de Processo Civil). Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença[2]. Ora, a decisão, assinalando às duas acções sob cotejo identidade de partes e de causa de pedir, ajuíza que não existe identidade formal dos pedidos, mas conclui que basta que eles sejam coincidentes quanto ao seu objectivo fundamental para, a partir daí, julgar verificada a excepção de caso julgado. Ao invés do assinalado pelos recorrentes, a decisão, em vez de contrariar qualquer das afirmações contidas na fundamentação, antes surge como o corolário lógico das premissas motivadoras. Quando muito, ocorrerá erro na subsunção dos factos ao direito, o que não é fundamento de nulidade mas erro de julgamento, o que apreciaremos em sede própria.
Os apelantes sinalizam ainda a nulidade decorrente da falta de apreciação de todos os pedidos deduzidos. É certo que a falta de pronúncia do juiz sobre questões que devesse apreciar corrompe a sentença com a nulidade (artigo 668º, 1, d), do Código de Processo Civil). Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas (artigo 660º, 2, do Código de Processo Civil), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção vicia a sentença. É inquestionável que o julgador não conheceu dos pedidos deduzidos pelos autores, mas fê-lo porque julgou verificada a excepção de caso julgado, assim conduzindo à absolvição dos réus da instância. E só pode entrar-se na apreciação do mérito da causa quando se verificam todos os pressupostos processuais e não há lugar à absolvição da instância. Proferida uma decisão de absolvição da instância, fica prejudicado o conhecimento do mérito, legitimando o juiz a dele não conhecer (artigo 660º, 2, do Código de Processo Civil). Essa a legítima razão pela qual a sentença impugnada não afrontou os pedidos formulados pelos autores.
Na defluência do narrado, julgamos inverificadas as arguidas nulidades.

2. Caso julgado
A decisão recorrida julgou verificada a excepção dilatória de caso julgado relativamente à acção sumária 875/06.0TBOVR, que correu termos pelo extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial de Ovar e que terminou com a prolação de sentença, transitada em julgado, que julgou a acção e a reconvenção improcedentes.
A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa já julgada, com uma tríplice identidade: sujeitos, causa de pedir e pedido (artigos 497º e 498º do Código de Processo Civil). Em princípio, essa excepção não se verifica entre uma acção de reivindicação, decidida com trânsito em julgado, e uma acção de demarcação. Na primeira, o proprietário exige de qualquer possuidor o reconhecimento do seu direito e a consequente entrega do que lhe pertence (artigo 1311º, 1, do Código Civil) e, na segunda, tendo em conta que a lei obriga os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas, o proprietário de prédio de estremas indefinidas pede o estabelecimento da linha divisória entre o seu prédio e o dos vizinhos confinantes (artigo 1353º do Código Civil).
Face aos pedidos delineados nas duas acções sob confronto, cremos que a primeira não é uma pura acção de reivindicação e a segunda também não é uma genuína acção de demarcação. A distinção entre estes dois tipos de acções tem o seu critério diferencial entre “conflito acerca do título” e “conflito de prédios”. Se “as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno ou sobre uma parte dela, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a acção é de reivindicação. Está em causa o próprio título de aquisição. Se, pelo contrário, se não discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, como, por exemplo, se o autor afirma que o título se refere a varas e não a metros ou discute os termos em que a medição é feita, ou, mesmo em relação à usucapião, se não se discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio possuído, a acção é já de demarcação”[3]. Enquanto na acção de reivindicação o proprietário exige de qualquer possuidor o reconhecimento do seu direito e a consequente entrega do que lhe pertence, na acção de demarcação o proprietário pretende a concretização da linha divisória entre o seu prédio e o confinante.
Comparadas as duas acções, é seguro que são as mesmas partes, incluindo na mesma posição processual, e são idênticas as causas de pedir. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo acto ou facto jurídico. E acção identifica-se não pela norma abstracta invocada, mas pelos elementos de facto que, em concreto, são aduzidos. Donde não implique a alteração da causa de pedir a alteração do ponto de vista jurídico e se não deva confundir a causa de pedir com os meios de que a parte se serve para a suportar.
Em ambas acções, os autores se arrogam à titularidade do prédio rústico inscrito na matriz predial respectiva da freguesia de …, concelho de Ovar, sob o artigo 95º, inscrito a seu favor na CRP e descrito sob o n.º 03849/20060106. Invocam, para tanto, a inscrição predial a seu favor, a aquisição derivada da sucessão e a aquisição originária consubstanciada na usucapião, pedindo, na primeira acção que se declarem donos e legítimos possuidores desse prédio e da faixa de terreno, de cerca de 200 m2, condenando os réus a reconhecer tal direito e a restituí-la aos autores (n.ºs 1, 2, 3 e 4). Nesta acção, é igualmente deduzido esse pedido ao formular que se declare que o mesmo prédio dos autores possui a área de 900 m2 e tem a configuração que consta nos documentos 3 e 4 e que se reconheça que é propriedade única e exclusiva dos autores, com a condenação dos réus a absterem-se de passar pela parte norte do terreno dos autores, tal como o têm feito desde 2006 [pedidos c), d) e e )].
Estes pedidos são absolutamente coincidentes no tocante ao prédio inscrito na matriz sob o artigo 95º, sendo novo o pedido aqui formulado quanto ao prédio inscrito na matriz sob o artigo 94º e, quanto a esse, não há, evidentemente, caso julgado, uma vez que ele não foi chamado à colação na acção anterior.
Prosseguindo o cotejo dos restantes pedidos, constatamos que, na anterior acção, os autores pediram “Em execução de sentença, aquele terreno propriedade dos Autores, no qual se encontra incluída a parcela de terreno usurpada de cerca de 200 m2, em toda a extensão da confrontação norte/sul do imóvel propriedade dos Autores, desde sensivelmente o meio do terreno até ao limite nascente, seja demarcado relativamente ao caminho de servidão com a aposição dos marcos que aí existiam originariamente, ou seja, um localizado a nascente, e outros dois colocados entre este, e o marco que restou situado a poente, junto do poço.” Pedido que se subdivide em duas formulações: uma consubstanciada no reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio nele incluída a tal faixa de terreno de 200 m2, cuja ocupação atribuíam aos réus, e outra dirigida à demarcação desse prédio com os prédios dos réus, inscritos na matriz predial rústica sob os artigos 100º e 101º, apondo os marcos que aí existiam, um a nascente e outros dois entre esse e o que se encontra a poente, junto ao poço. Na actual acção pedem os autores que seja declarada e fixada a linha de demarcação dos prédios dos autores e dos réus; linha divisória que se inicia num marco existente a poente junto a um carvalho e vai com uma ligeira curva até à esquina de um muro de um prédio urbano que se situa a nascente. Pedido de demarcação que é concordante com o deduzido na primeira acção, ao menos no tocante ao prédio inscrito na matriz sob o artigo 95º. Na verdade, enquanto na primeira acção, os autores pretenderam a demarcação desse seu prédio com os indicados prédios dos réus, nesta acção pedem-na para os seus dois prédios, inscritos na matriz sob os artigos 94º e 95º, ou, melhor, formulam esse pedido usando o plural, o que nos leva a admitir que a demarcação deduzida se refere aos seus dois prédios. Contudo, visto o articulado na petição inicial, verificamos que só o seu prédio 95º [identificado em 1.b)] confronta com os prédios dos réus e apenas relativamente a ele visam os autores a definição da linha divisória (artigos 13º, 15º, 16º, 17º, 19º, 20º, 21º, 22º), a significar que a mera referência do pedido [a)] à demarcação “dos prédios dos AA. e dos RR.” se reporta ao referenciado prédio inscrito na matriz sob o artigo 95º.
Por fim, na anterior acção, pediram os autores a condenação dos réus a indemnizá-los pelos prejuízos causados com a ocupação, a apurar em sede de liquidação e execução de sentença, tudo acrescido de juros legais, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento (6) e, nesta, pediram a sua condenação a indemnizá-los pelos prejuízos causados com a obra, a apurar em sede de liquidação e execução de sentença, tudo acrescido dos respetivos juros legais, contados, desde a citação até efetivo e integral pagamento [f)]. Pedidos indemnizatórios absolutamente idênticos e que, tal como os demais, concordam na sua essência sem que seja sequer necessário recorrer, como fez a decisão impugnada, à “coincidência quanto ao seu objectivo fundamental”.
As duas acções, tal como já o havia destacado a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, não têm uma feição simplista que permita qualificar a primeira como de reivindicação e a segunda como de demarcação. Elas apresentam simultaneidade ou multiplicidade de pretensões, ou seja, uma cumulação real de pedidos, para que os réus sejam condenados a satisfazer, ao mesmo tempo, várias prestações, diversos efeitos jurídicos. Destarte, a situação é de nítida cumulação real de pedidos a que corresponde uma multiplicidade de acções (artigo 470º, 1, do Código de Processo Civil). Na caracterização dessas acções, é seguro estar em causa uma acção de demarcação, uma acção confessória, uma acção negatória e uma acção reparatória. Quando os autores, nas duas acções, pedem a declaração de titularidade do direito real de propriedade sobre o(s) prédio(s), seja ou não com a integração da faixa de terreno de 200 m2, a acção tem natureza confessória. Não constituindo, no nosso direito, uma acção real típica, por ela o autor pretende afirmar contra o réu a existência de um direito real, podendo compreender a declaração de existência do direito real de propriedade, quando o autor não pretenda obter a restituição da coisa, mas apenas ver judicialmente reconhecida contra o réu a titularidade daquele direito real maior. É uma acção de simples apreciação positiva (artigo 4º, 1, a), do Código de Processo Civil).
Na primeira acção, atribuindo aos réus a ocupação de uma faixa de terreno de 200 m2, os demandantes pedem a sua restituição do prédio inscrito na matriz sob o artigo 95º, assumindo a feição títpica da acção de reivindicação. Na segunda, pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade com a configuração que definem em documentos que juntam, com a natureza de típica acção de simples apreciação positiva. Porém, esta diversidade da natureza das duas acções não tem a virtualidade de rejeitar a coincidência do seu objecto, já que nas duas os autores discutem e visam definir o âmbito, a extensão do direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo 95º.
Quando os autores, nas duas acções, pedem que o s réus se abstenham de passar pela parte norte do(s) prédio(s), por não existir qualquer servidão de passagem, estamos perante uma acção negatória, isto é, uma acção real intentada pelo titular de um direito real maior contra aquele que se arroga a titularidade de um direito real menor, no caso uma servidão de passagem. Esta acção tem como condição de procedência que o autor seja titular do direito real invocado, v.g. o direito de propriedade, e que o réu não prove que o direito real menor existe. Só que, quanto a esta concreta matéria, é equívoca a alegação dos autores. Se, por um lado, afirmam que o seu prédio (artigo matricial 95º) confronta do lado norte com os prédios dos réus, onde existe um caminho de servidão que serve o prédio que hoje é dos réus, por outro referem que nunca existiu qualquer caminho de servidão pelo seu prédio (artigos 13º e 44º da petição inicial desta acção e artigos 11º, 12º do articulado inicial da anterior acção). De todo o modo, essa questão foi disputada na primeira acção, a ponto de ter sido quesitada sob os itens 25º a 28º, que obtiveram resposta de provado em função da motivação decisória expressão na decisão de facto (fls. 154 a 157, 165 a 167). Decisão que conduziu, ainda assim, à improcedência de todos os pedidos dos autores e dos réus.
Não sendo unívoco o entendimento quanto à natureza da acção de demarcação, pois há quem a qualifique como real, pensamos que, embora conexa com o direito das coisas, é uma acção pessoal, porquanto não tem como fito principal ou acessório o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos reais definidos pelo artigo 2.º do Código de Registo. Predial. Não se pretende obter através dela a declaração de um qualquer direito real ou a definição da sua amplitude. A qualidade de proprietário (de um dado terreno ou prédio), adrede invocada pelo autor, é apenas condição da sua legitimatio ad causam. Daí que a respectiva causa de pedir resida «no facto complexo da existência de prédios confinantes, de proprietários distintos e de estremas incertas ou duvidosas», que não no facto que originou o invocado direito de propriedade[4].
A acção comportava, originariamente, a demarcação em sentido estrito, para aposição de marcos nas estremas dos prédios confinantes, e a actio finium regundorum, para determinar as estremas dos prédios quando dúvidas houvesse sobre os seus limites. O actual regime manteve somente a última, apelidada de demarcação, para definir as estremas quando há dúvidas sobre os limites exactos dos prédios (artigo 1352º do Código Civil). Inexistindo dúvidas, qualquer dos proprietários, legitimado pelo direito de tapagem, pode colocar os marcos nas estremas do seu prédio (artigo 1356º do Código Civil). Por isso, se entende que à acçao de demarcação só pode assinalar-se-lhe a finalidade de estabelecer as estremas entre prédios confinantes, quando elas sejam incertas ou desconhecidas[5].
Pedido que os autores igualmente formularam nas duas acções; nesta, em via principal [(pedidos a) e b)] e, na anterior, no que apelidaram de execução de sentença para aposição de marcos (5).
Assim comparados os pedidos deduzidos nas duas acções, é nítida a coincidência de todos eles, juízo já prevenido pela decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, ao referir: “Escreve-se isto em face da circunstância, de todo irrecusável, de entre as partes nesta acção ter corrido uma outra, já decidida por decisão transitada em julgado, na qual, notoriamente, foi alegada, por uma delas, uma causa de pedir e formulados pedidos em tudo homótropos à causa petendi e a alguns dos pedidos deduzidos nesta acção, por esta mesma parte, sendo, portanto, patente a verificação da excepção dilatória própria – por consistir na invocação de um pressuposto processual negativo – nominada e de conhecimento oficioso: a representada pelo caso julgado. Com efeito, como se alcança da respectiva certidão, na acção que correu termos sob o nº 875/06, resolvida por decisão, que a julgou improcedente, passada em julgado, os autores pediram – com fundamento na aquisição por sucessão de G… e por usucapião – a declaração de que eram os donos do prédio rústico matricialmente inscrito sob o artº 95º e a sua demarcação relativamente ao caminho de servidão, através do cravamento dos marcos que ali existiam originariamente, um localizado a nascente e outros dois colocados entre este e o marco restante, situado a poente, junto ao poço, e a condenação dos réus a indemnizá-los pelos prejuízos causados com a ocupação, a apurar em sede de execução de sentença. Tanto estes pedidos como a causa de pedir de que os recorrentes a fazem derivar, referidos àquele prédio, são, prima facie, inteiramente homogéneos relativamente aos pedidos formulados e a causa de pedir alegada pelos autores nesta acção.”. Vindo a concluir que “(…) o efeito cominatório semi-pleno realizado pela revelia operante não prevalece sobre a matéria de conhecimento oficioso, nomeadamente as excepções dilatórias de que o tribunal deva conhecer ex officio, que obstem à apreciação do mérito da causa (artºs 288º, nº 3, e 495º do CPC). Assim, apesar de o réu não ter contestado e de a revelia ser operante, o tribunal deve absolvê-lo da instância se for patente, por exemplo, a verificação da excepção dilatória do caso julgado (artºs. 288º, nº 1, e), 494º, i), 494º, nº 2, e 495º CPC).” (fls. 329 a 356).
À conclusão de ocorrência de caso julgado não obsta a circunstância da primeira acção ter sido julgada improcedente, denegando aos autores a pretendida definição dos seus direitos. Essa decisão contém uma afirmação jurídica dotada de indiscutibilidade, estendendo-se o caso julgado até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. Como vimos, na primeira acção, o tribunal discutiu e conheceu o direito de propriedade dos autores sobre o seu prédio inscrito no artigo matricial 95º, declinando-lhe o reconhecimento da extensão a que se arrogaram. Se esse mesmo interesse dos autores dispunha de várias linhas de tutela jurídica e, escolhida apenas uma, se o eventum litis for desfavorável ao autor, ficam precludidas todas as linhas de fundamentação jurídica que poderia ter invocado e que o juiz oficiosamente poderia ter tomado para base da decisão[6]. No caso, todas as pretensões materiais formuladas na primeira acção foram denegadas aos demandantes e, por isso, por razões de coerência lógico-jurídica e coerência prática, não podem vê-las reapreciadas, ainda que deduzidas com ligeiras nuances que, no entanto, não esbatem a identidade sinalizada. A diferença de causa de pedir ou pedido que se traduza numa circunstância acidental e irrelevante do mesmo complexo de factos é ela mesma irrelevante. Outrossim, mesmo que os autores tivessem movido uma primeira acção declarativa de propriedade de certo prédio identificado por limites precisos, ficariam impedidos de, em futura acção, pretender a demarcação com outros limites[7]. Por isso, ainda que entendêssemos que os autores visam agora apenas a demarcação e, na primeira acção, tiveram somente em vista a definição dos limites do seu prédio, a verdade é que, nesta demarcação, eles procuram alcançar a definição que, naquela, lhes foi recusada. A extensão do caso julgado refere-se não apenas à indiscutibilidade da subsistência de certa afirmação que acarreta necessariamente a indiscutibilidade da subsistência ou insubsistência doutra afirmação, mas abrange também a sua extensão inversa: da insubsistência do conteúdo deste conclui-se a insubsistência de outra afirmação, por incompatibilidade entre ambas[8]. Em suma, a pronuntatio judicis traduz um conteúdo de pensamento e o suporte real ou conteúdo primário do caso julgado é um certo conteúdo de pensamento deixado indiscutível por uma decisão judicial[9]. E a primeira sentença deixou indiscutível que aos autores não assiste o direito a que se arrogam para a extensão do seu prédio e para a definição das suas estremas na medida correspondente e, não tendo provado qualquer violação do seu direito pelos réus, também resulta indiscutível a sua pretensão reparatória.
Alguma perplexidade também gerada pelo facto de as acções de demarcação terem assumido, no passado, a natureza de acções de arbitramento, desenvolvidas em duas fases distintas – uma declaratória e outra executiva. Reconhecido por sentença o direito invocado pelo demandante, era designado dia para a nomeação de peritos, a quem cumpria – e não ao juiz – dirimir a dúvida entre os limites dos prédios na parte em que entre si confinavam. Hoje, este tipo de acções continua a supor um arbitramento. Embora a reforma de 95/96 tenha feito desaparecer do elenco dos processos especiais algumas das antigas acções de arbitramento, como as de demarcação (artigo 1052.º do CPC de 1961), estas passaram a seguir a forma declarativa comum, porque o legislador de 95/96 (relatório preambular do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro) entendeu que a prova pericial é idónea para dar resposta, no quadro do processo civil de declaração, às necessidades e interesses tutelados com a instituição da figura do arbitramento, com a vantagem de outorgar ao juiz o poder-dever de valorar livremente os resultados da perícia a que seja necessário proceder.
Aliás, até o artigo 1354.º do Código Civil leva a concluir que a discussão encetada na primeira acção esgotou a temática agora colocada, de novo, quanto ao artigo matricial 95º. Estatui que “a demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova”, mas “(S)e os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário e a questão não puder ser resolvida pela posse ou outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio em partes iguais.”. Ora, ao defender, na primeira acção, uma determinada extensão para aquele seu prédio, integrando uma parcela de 200 m2, e ao pedir a sua demarcação em conformidade, em função do título sucessório a que apelou e da posse, repetiu a mesma pretensão, ao peticionar agora o reconhecimento da propriedade desse mesmo prédio com base nesse mesmo título e na posse. Donde a patente decorrência de repetição da causa.
Reciprocamente não suscitam as partes dúvidas quanto à titularidade de autores e réus sobre os prédios identificados. E o caso julgado não se verifica relativamente ao prédio inscrito no artigo matricial da freguesia de São João sob o 94º, identificado na al. a) do artigo 1º da petição inicial, já que a primeira acção não incidiu sobre ele.
Sendo operante a revelia relativa e declarados confessados os factos alegados pelos autores, resta fazer a sua subsunção direito (artigos 784º e 785º do Código de Processo Civil). Portanto, provado que os autores beneficiam do registo de propriedade sobre aquele imóvel e que sobre ele, desde há mais de 20, 30, 40 e 50 anos o têm cultivado e explorado, na convicção e com intenção de serem beneficiários do direito de propriedade, desconhecendo que ignoravam o direito de outrem, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, estão reunidas condições para declarar o direito de propriedade dos autores sobre tal imóvel.
Para além do imóvel estar inscrito no registo predial a favor dos autores, beneficiando da presunção da titularidade do direito a que alude o artigo 7º do Código de Registo Predial, está demonstrada a usucapião. A usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, decorrente de uma situação possessória, mantida durante certo lapso de tempo e com determinadas características (artigo 1287º do Código Civil). O nosso ordenamento juscivilista perfilha um conceito subjectivo de posse, que tem de revestir o corpus, representado pela relação material e permanente com a coisa, e o animus, pela intenção de actuar como se o agente fosse o titular do direito real correspondente.
Os factos relatados subsumem os actos praticados pelos autores sobre o imóvel em causa ao seu poder de facto sobre ele, traduzido nos actos materiais consubstanciadores do corpus, com o animus de exercer o direito real correspondente, durante mais de 20 (prazo mais longo para usucapir), o que conduz à verificação dos pressupostos da usucapião.
O Tribunal a quo não se pronunciou sobre essa concreta questão, por a ter considerado prejudicada, mas a Relação julga, por regra, segundo o sistema de substituição, não se limitando a revogar a decisão recorrida mas a substituí-la por outra que julgue normativamente adequada (artigo 715º, 1, do Código de Processo Civil).
Do explanado resulta que estão reunidos os pressupostos para dar parcial procedência à apelação e à acção, declarando que os autores são proprietários do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de …, concelho de Ovar, sob o artigo 94º, melhor identificado sob a alínea a) do artigo 1º da petição inicial. Quanto ao demais, confirmamos a decisão recorrida no que respeita à verificação da excepção de caso julgado.

Sem embargo da parcial procedência da apelação no tocante ao reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 94º, como esse pedido traduz o exercício de um mero direito potestativo dos demandantes, sem origem em facto ilícito dos réus, e não foi por estes contestado, ficam a cargo dos apelantes as custas da apelação (artigos 446º e 449º, 1 e 2, a), do Código de Processo Civil)

Em síntese:
1. O critério diferencial das acções de reivindicação e de demarcação centra-se no “conflito acerca do título” e no “conflito de prédios”.
2. As duas acções sob cotejo não têm uma feição simplista que permita qualificar a primeira como de reivindicação e a segunda como de demarcação, antes apresentando uma cumulação real de pedidos, a que corresponde uma multiplicidade de acções.
3. Ainda que os autores tivessem movido uma primeira acção declarativa para reconhecimento da propriedade de certo prédio identificado por limites precisos, ficariam impedidos de, nesta acção, pretender a demarcação com outros limites, procurando alcançar a definição que, naquela, lhes foi recusada.
4. A extensão do caso julgado refere-se não apenas à indiscutibilidade da subsistência de certa afirmação, mas abrange também a sua extensão inversa, de modo a que, tendo a primeira sentença, transitada em julgado, deixado indiscutível que aos autores não assiste o direito a que se arrogam para a extensão do seu prédio e para a definição das suas estremas, é-lhes vedado reintroduzir a discussão dessa matéria com a adução de nuances que não alteram a essência da questão.

V. Decisão
Perante o expendido, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar parcialmente a decisão recorrida e declarar que os autores são proprietários do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de …, concelho de Ovar, sob o artigo 94º, melhor identificado sob a alínea a) do artigo 1º da petição inicial. Mantêm a decisão impugnada quanto ao demais, confirmando a excepção dilatória de caso julgado quanto aos demais pedidos deduzidos pelos autores, com a consequente absolvição dos réus da instância.

As custas da apelação ficam a cargo dos recorrentes (artigo 6º, 2, Tabela I-B do Regulamento das Custas Processuais).
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Porto, 9 de Abril de 2013
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
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[1] Na redacção dada pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto, à qual pertencerão todas as normas que desse Código mencionarmos e que por aquele diploma tenham sido modificadas.
[2] José Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, “Código de Processo Civil”, Anotado, volume 2º, 2ª ed., pág. 704.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume III, 2ª edição, página 199.
[4] STJ de 26-9-2000, in BMJ n.º 499.º, p. 294; STJ 21-09-2010, 2/03.5TBMNC.G1
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, Volume III, 2ª ed. revista e actualizada, pág. 198.
[6] João Castro Mendes, págs. 292 e 293.
[7] João Castro Mendes, pág. 318.
[8] João Castro Mendes, págs. 326 e 327.
[9] João Castro Mendes, ibidem, pág. 253.