Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0632114
Nº Convencional: JTRP00039482
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: EXECUÇÃO
CRÉDITO AO CONSUMO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
Nº do Documento: RP200609210632114
Data do Acordão: 09/21/2006
Votação: UNANIMIDADE COM 1DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 683 - FLS. 150.
Área Temática: .
Sumário: Tendo sido suscitada questão de não haver a exequente cumprido o dever legal de previamente à assinatura do contrato de concessão de crédito ao consumo lhes dar a conhecer as cláusulas gerais a que o mesmo ficaria subordinado, não basta a exibição do documento que contém o contrato para que se possa dar por provado tal conhecimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Decisão recorrida – Proc. Nº …….-B/1999
TRIBUNAL JUDICIAL deVale de Cambra – ..º Juízo
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Por apenso aos autos de Execução Ordinária para pagamento de quantia certa, com o nº ……-A/2002, a correr termos no …º Juízo Cível do Porto, em que é exequente “B…….., S.A.”, e executados, C…….. e seu cônjuge, D………, os executados deduziram os presentes embargos pedindo a extinção da execução.
Os embargos foram julgados improcedentes, e determinado o prosseguimento da execução, por sentença de 15 de Julho de 2005.
Inconformados com tal decisão, vieram os embargantes apresentar o presente recurso onde requereram a revogação da decisão recorrida e respectiva substituição por outra que declare nulo o título executivo com base na nulidade do negócio subjacente celebrado entre as partes, e o reenvio prejudicial quanto às questões de interpretação de direito comunitário suscitadas, nos termos do disposto no art. 234º do Tratado de Roma, tendo, para esse efeito, formulado as seguintes conclusões:
“Em matéria de facto, com origem no alegado no art. 21º da petição de embargos, veio a ser dado como provado no ponto 1. 1. 10: “No momento da assinatura do referido contrato de concessão de crédito, os executados tomaram conhecimento das respectivas cláusulas gerais e particulares”.
2- A alegação de tal facto tem como pano de fundo o cumprimento das obrigações pelo Banco embargado e estabelecidas no DL 446/85 e que disciplina o emprego de cláusulas contratuais gerais. Mais especificamente foi invocado que com os embargantes, ora recorrentes só foi conversada e, por isso, negociada, a matéria respeitante:
a) ao preço da aquisição da viatura: Esc. 2.700.000$00 (art. 8º da petição);
b) À entrega de Esc. 700.000$00 como entrada para pagamento de tal preço (art. 9º, da petição);
c) À obtenção de financiamento, aspecto que foi prontamente entregue ao dono do Stand (art. 10º da petição);
d) Ao montante total do financiamento que seria dos desejados Esc. 2.000.000$00 (arts. 9º e 20º da petição);
e) Ao pagamento mensal de Esc. 60.000$00 para amortização do empréstimo (arts. 17º e 20º da petição);
3- Cumpria, então, apurar se o demais clausulado, seja nas condições particulares, seja nas gerais fora especificamente comunicado, informado e, por isso, negociado (cfr. arts. 5º, 6º e 8º do DL 446/85).
4- A questão que se colocava, pois, à apreciação do Tribunal consistia em apurar se as condições particulares e gerais haviam sido adequadamente transmitidas, ou seja, se a assinatura do contrato (todo ele tipificado e preparado de antemão pelo Banco embargado para o seu comércio de massas), correspondia ou não, em toda a sua extensão e para além dos pontos que desde o início se assinalara conhecer, a um acto consciente dos embargantes. A questão subjacente é colocada pela dúvida do legislador quanto à vontade esclarecida da declaração do contraente que se limita a aderir a um clausulado contratual.
5- A fundamentação empregue para justificar a resposta dada ao ponto 1. 1. 10 da matéria de facto, ao remeter singelamente para os termos da própria declaração e para a assinatura fez o mesmo que dar como provado, aquilo que se pretende provar. Ou seja, a fundamentação encerra um evidente círculo vicioso. Sendo assim, violou a decisão, além das citadas normas dos arts. 5º, 6º e 8º als. a) a c) do DL 446/85, o disposto no art. 655º, 2 CPC.
6- Ainda na matéria respeitante ao ponto 1. 1. 10 da matéria de facto a mesma fundamentação desvela que a decisão por um lado se baseou no meio de prova apontado e, por outro, nada mais concorreu que desabonasse ou abonasse tal conclusão. Se, na matéria apontada, não existe prova para além daquela referida na decisão e que, pelos motivos expostos, não pode servir para suportar a resposta, haveremos ainda de indagar quem tinha o ónus da prova em tal matéria.
7- Sempre com o devido respeito, outro erro é surpreendido no ponto d) da mesma fundamentação da resposta dada à matéria de facto (fls. 71). Em tal alínea lê-se:
A decisão que julgou não provada concreta matéria de facto assentou nas regras do ónus da prova, (…).
8- Tendo em conta que na origem do ponto 1. 1. 10 da matéria de facto se encontra o alegado no art. 21º e antecedentes da petição de embargos e a disciplina do art. 5º, 3 do DL 446/85, simples parece ser de concluir que quem tinha o ónus de provar a comunicação de tais cláusulas era o Banco embargado e não os embargantes.
9- A lei para quem utiliza no seu comércio contratos de adesão é, na verdade, exigente. De facto, quem dispõe de contratos de adesão não tem simplesmente um dever de prestar esclarecimentos quando solicitados. Impõe mais, impõe que tal contratante desenvolva uma actividade de esclarecimento (comunicação adequada e efectiva) de per si, ou seja independentemente de lhe ter sido levantada qualquer dúvida, ou objecção:
“O concorrente que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique” (cfr. art. 6º, 1 do D.L. 446/85 de 25/10).
10- Parece assim demonstrado que o Tribunal, na decisão da matéria de facto violou também o disposto no art. 5º, 3 do DL 446/85.
11- A resposta dada ao ponto 1.1.10 da matéria de facto suporta-se única e exclusivamente na declaração negocial, nada mais sendo apontado como fundamentando a resposta. Ora, pelos motivos anteriormente expostos, por um lado a declaração negocial não pode suportar tal resposta, por outro, cabia ao recorrido ter satisfeito o ónus probatório que sobre si impendia o que, evidentemente, não fez.
12- Nos termos do disposto no art. 712º, 1, al. b) CPC, existindo um evidente erro no julgamento da matéria de facto no que respeita à matéria do ponto 1. 1. 10 dos factos provados, urge que o mesmo seja corrigido. E tal correcção far-se-á, alterando-se a resposta para: Não provado. Do mesmo modo, por puro vislumbre do contrato, haverá que dar-se como provado o alegado no art. 26º da petição de embargos (Acresce ainda que as mesmas condições gerais apresentam uma letra tão minúscula que nenhum declaratário normal se apercebe do respectivo conteúdo).
13- Lê-se na decisão recorrida e como fundamento subsidiário (penúltima página, 2º parágrafo):
“De tal matéria de facto evidencia-se claramente que os embargantes sempre aceitaram como válido o contrato em causa, de tal forma que pagaram durante longo período de vinte e dois meses parte substancial das prestações assumidas, ao mesmo tempo que beneficiaram da utilização do veículo automóvel adquirido”.

Deste fundamento é extraído um venire contra factum proprium.
14- Face ao que foi efectivamente negociado era normal que os recorrentes pagassem não só as prestações que efectivamente pagaram, como, até que tivessem pago as demais. Tal comportamento não tem todavia a virtualidade de apagar a mácula do contrato na sua formação.
15- Por outro lado, para que possamos falar de um venire contra factum proprium necessário teria sido que os recorrentes, enquanto pagaram, demonstrassem ter compreendido algo mais para além dos factos que sempre admitiram conhecer e desejar. Mas não foi isso que aconteceu: Os mesmos pagaram regularmente e até ao momento em que deixaram de para tal ter capacidade os Esc. 60.000$00 mensais que tinham acordado.
16- Os recorrentes, PORÉM, não acordaram:
a) a existência do título executivo,
b) as condições de preenchimento do mesmo;
c) Os montantes que aí seriam inscritos;
d) A contratação com base nas cláusulas que pretensamente legitimam o comportamento do Banco.
17- Nunca puseram em causa aliás que se encontravam em incumprimento: Incumprimento da obrigação de pagamento de Esc. 60.000$00 mensais por conta do financiamento obtido para aquisição do automóvel.
18- Sendo assim, urge concluir que, por errada e indevida aplicação foi violado o disposto no art. 334º Código Civil.
19- O D.L. 446/85 de 25/10 (quer na sua versão original, quer com as modificações introduzidas pelo D.L. 220/95 de 31/08) não acolhe o comportamento negocial do recorrido. A directiva 93/13/CEE do conselho de 15 de Abril de 1993, de que o D.L. 220/95 de 31/08 constitui transposição, também não. Antes obrigam o contraente que impõe, na sua negociação, a utilização de contratos tipo a comunicar adequada e completamente o conteúdo das cláusulas contratuais. o que, no caso, não aconteceu quer quanto a algumas das condições particulares, quer quanto à totalidade das condições gerais.
20- Devendo, outrossim, informar o contraente que se limita a aderir da extensão alcance e significado das cláusulas cuja aclaração se justifique. o que, obviamente, também não aconteceu.
21- Acresce ainda que as "condições gerais" se apresentam numa letra minúscula. Assim, as cláusulas correspondentes às condições gerais do contrato, nos termos do disposto no art. 8º als. a), b) e c) do D.L. 446/85 de 25/10, encontram se excluídas do contrato não podendo o recorrido prevalecer se do respectivo conteúdo.
22- A parte final das condições particulares procura atestar conhecimento quanto ao clausulado geral que os recorrentes não tinham, nem como se referiu, lhes foi transmitido, em violação do disposto no art. 21º, al. e) do mesmo D.L. 446/85.
23- Interpretação diversa das normas do D.L. 446/85 de 25/10 aqui enunciadas revelar-se-ia contrária ao disposto no art. 153º, 1 do Tratado de Roma (numeração pós as alterações introduzidas pelo Tratado de Amesterdão), bem como ao disposto na referida directiva 93/13/ CEE do Conselho de 15 de Abril de 1993.
24- Por outro lado, a idênticas conclusões se chegará por aplicação das normas dos arts. 3º, al. d) e 8º da Lei 24/96 e arts. 227º, 239º e 762º CC.
25- O contrato é, pois, nulo.
26- Havendo ainda de concluir-se que não houve qualquer convenção quanto ao preenchimento do título que serve de base à execução:
O seu total preenchimento foi efectuado através de acto unilateral do recorrido o qual não estabeleceu, nem esclareceu, aquando da concessão do crédito, quais as condições e prazos, observados os quais, poderia proceder a tal operação. Logo, o preenchimento em causa foi absolutamente abusivo (cfr. arts. 77º e 10º LuLLiv.).
27- A relação jurídica subjacente constitui a concessão de um crédito ao consumo. O DL 359/91 de 21/09 constitui transposição para o direito interno das directivas 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986, e 90/88/CEE. O que importa para o credor as obrigações constantes dos n.ºs 1 a 3 do art. 6º do mesmo diploma.
28- Ora, o exemplar de que dispõem os recorrentes foi-lhes entregue, por carta, poucos dias depois de o terem assinado, conforme aliás resulta do ponto 1. 1. 11 da matéria de facto provada.
29- O não cumprimento do preceituado no DL 446/85 importa também que os preceitos dos n.ºs 2 e 3 do art. 6º do mesmo DL. 359/91 não foram, de todo, cumpridos. o que, nos termos do disposto no art. 7º, 1 do mesmo normativo, conduz à respectiva nulidade que aqui, também, se invoca.
30- Referir ainda e quanto a este domínio que qualquer interpretação diversa dos preceitos do DL. 359/91 se revelaria em desconformidade com o disposto no art. 153º, 1 do Tratado de Roma (numeração após as alterações introduzidas pelo Tratado de Amesterdão) e com o conteúdo das directivas 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986, e 90/88/CEE.
31- Finalmente, a remissão operada pelo n.º 3 do art. 9º da Lei 24/96 para a disciplina do DL 446/85 impõe as consequências supra assinaladas, com referência ao art. 8º deste último normativo.
32- Tal remissão importa igualmente a conformidade da interpretação das normas da Lei de Defesa do Consumidor com o disposto no art. 153º, 1 do Tratado de Roma (numeração após as alterações introduzidas pelo Tratado de Amesterdão), bem como o disposto na referida directiva 93/13/ CEE do conselho de 15 de Abril de 1993.
33- O contrato é, pois e reitere-se, nulo.
34- A decisão recorrida violou, assim, as normas dos arts. 8º als. a), h) e c), 21º, al. e) do D.L. 446/85 de 25/10, arts. 77º e 10º da LuLLiv., arts. 6º e 7º, 1 do DL 359/91; arts. 3º, al. d); 8º, 9º, 2 e 3 da Lei 24/96 e arts. 227º, 239º e 762º CC.
35- Assim como violou as disposições comunitárias constantes das directivas 93/13/CEE do conselho de 15 de Abril de 1993 directiva 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986, e directiva 90/88/CEE, assim como o disposto no art. 153º, 1 do Tratado de Roma.
Foram apresentadas contra-alegações onde a recorrida pugna pela manutenção da decisão recorrida.

QUESTÕES A DECIDIR NESTES RECURSO

1- Os recorrentes foram informados pela exequente das cláusulas gerais do contrato de mútuo?
2- Os recorrentes acordaram:
a) a existência do título executivo,
b) as condições de preenchimento do mesmo;
c) Os montantes que aí seriam inscritos;
d) A contratação com base nas cláusulas que pretensamente legitimam o comportamento do Banco?
3- Reenvio prejudicial.

A decisão recorrida suportou-se nos seguintes factos que considerou provados:
2.1.1 - A exequente deu à execução a livrança que consta de fls. 5 do processo principal, que, para além do mais, contém expressa a seguinte promessa: "NO SEU VENCIMENTO PAGAREI(EMOS) POR ESTA ÚNICA VIA DE LIVRANÇA À B……….. OU À SUA ORDEM A QUANTIA DE OITO MIL SEISCENTOS E TRINTA E CINCO EUROS SETENTA E NOVE CÊNTIMOS”, à qual se seguem as assinaturas dos executados/embargantes, apostas no lugar destinado aos subscritores.
1.1.2- Na mesma livrança, consta ainda:
No lugar destinado à indicação do local e data de emissão: “PORTO; 2002-01-25”;
No lugar destinado à indicação da data de vencimento: “2002-02/25”;
No lugar destinado à indicação da causa do valor: “ RELATIVO AO CONTRATO DE MÚTUO Nº 25353”.
1.1.3 - Apresentada a pagamento, a livrança não foi paga, nem na respectiva data de vencimento nem ulteriormente.
1.1.4 - A livrança foi subscrita em branco pelos executados/embargantes, destinando-se a garantir o cumprimento das obrigações daqueles no âmbito de acordo de concessão de crédito celebrado com a embargada, reduzido a escrito nos termos que constam do documento junto a folhas 10, destinado a permitir o pagamento de parte do preço da aquisição pelos executados de um veículo automóvel em estado de usado, da marca Honda, modelo Civic, com a matrícula ..-..-AT, no âmbito de contrato de compra e venda celebrado a 20/05/1999, entre os executados e representante do “STAND E………..”.
1.1.5 – Na mesma data em que assinaram o referido contrato de concessão de crédito e subscreveram a mencionada livrança, os embargantes assinaram declaração de renúncia ao direito de revogação daquele contrato, nos termos que constam do documento de folhas 30, cujo teor se dá por reproduzido, tendo ainda o embargante marido assinado instrução permanente de transferência bancária nos termos que constam do documento de folhas 31, cujo teor se dá por reproduzido, sendo que todos os referidos documentos lhes foram apresentados pelo referido representante do “Stand E……….”.
1.1.6 – A embargada, através de carta de 10/02/2000, correspondente ao documento de folhas 32, enviou aos embargantes o título de registo de propriedade correspondente ao documento de folhas 33, cujo teor se dá por reproduzido, respeitante ao referido veículo automóvel.
1.1.7 - O montante financiado pela embargada aos embargantes, no âmbito do referido contrato de concessão de crédito, foi de PTE: 2.000.000$00, a liquidar em 48 prestações, no montante de PTE: 62.864$00 cada, com início a 27/06/1999.
1.1.8 – No âmbito do referido contrato de concessão de crédito, os embargantes apenas pagaram à embargada 22 (vinte e duas) prestações.
1.1.9 – Perante a falta de pagamento, a embargada remeteu aos embargantes as cartas correspondentes aos documentos de folhas 27 e 28, cujo teor se dá integralmente por reproduzido, comunicando, para além do mais, a resolução do dito contrato.
1.1.10 – No momento da assinatura do referido contrato de concessão de crédito, os executados tomaram conhecimento das respectivas cláusulas gerais e particulares.
1.1.11 – O exemplar do contrato correspondente ao documento de folhas 10 foi remetido pela embargada aos embargantes através de carta de 21/05/1999.

Os embargantes para pagamento de parte do preço de um veículo automóvel que compraram a um terceiro, celebraram com a entidade exequente um contrato de crédito ao consumo reduzido a escrito nos termos que constam de documento de fls. 10 dos autos. A livrança dada à execução, subscrita por ambos em branco, tem subjacente esse crédito. Fundamentaram os seus embargos na circunstância de, no momento da assinatura do dito contrato de crédito ao consumo, nenhuma das respectivas cláusulas lhes ter sido explicada ou sequer comunicada e não ter havido qualquer convenção quanto ao preenchimento da livrança dada à execução, tendo o respectivo preenchimento sido efectuado de forma abusiva pela embargada.
A exequente justificou a quantia titulada pela livrança com base no incumprimento das obrigações assumidas pelos embargantes no âmbito do referido contrato, que reputa de integralmente válido.
Importava, pois, definir a questão do desconhecimento por parte dos embargantes das cláusulas gerais do contrato de concessão de crédito ao consumo que subjaz à emissão do título dado à execução. Sobre esta questão decidiu o Tribunal recorrido, no ponto 1.1.10 que : “No momento da assinatura do referido contrato de concessão de crédito, os executados tomaram conhecimento das respectivas cláusulas gerais e particulares”.Tal decisão fundamentou-se – cfr. fls.71 - “no sentido da própria declaração expressa no documento junto a fls. 10, subscrita pelos embargantes, não posto em causa pela produção de qualquer outro meio de prova”.
Como se verifica do referido contrato, as cláusulas gerais encontram-se no respectivo verso, em letra miúda e depois das assinaturas dos embargantes, estas na frente do documento. Ficou também provado que os embargantes nunca tiverem qualquer negociação com a entidade bancária e que só receberam uma cópia do dito contrato por carta enviada pela exequente no dia posterior ao da assinatura do contrato de mútuo.
O contrato de mútuo em causa não é um contrato livremente negociado entre partes onde estas usando da sua liberdade contratual constroem o respectivo conteúdo em conformação com os interesses de ambas.
O contrato que deu causa à emissão da livrança é um contrato de adesão com cláusulas contratuais gerais pré-formadas pela exequente, genéricas e imodificáveis que os embargantes só podiam aceitar ou não.
O artº 75º, 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras Aprovado pelo DL 298/92, de 31/12, e alterado pelo DL 232/96, de 5/12 (RGICSF), estabelece que as "instituições de crédito devem informar os clientes sobre... o preço dos serviços prestados e outros encargos suportados por aqueles", impondo nesta área de actividade creditícia e financeira, a observância do dever geral de boa fé na formação e no cumprimento das obrigações, artº 227º e 762º, 2, do Código Civil.
O art. 5º do DL nº 446/85,de 25 de Outubro impõe que as cláusulas contratuais gerais sejam comunicadas aos aderentes em termos tais que estes, usando de uma normal diligência, possam ter conhecimento do verdadeiro alcance das mesmas.
O nº 3 deste preceito determina que à embargada, neste caso, cabe o ónus de demonstrar a comunicação adequada e efectiva dessas cláusulas aos embargantes.
Assim, tendo sido suscitada pelos recorrentes a questão de não haver a exequente cumprido o dever legal de previamente à assinatura do contrato de concessão de crédito ao consumo lhes dar a conhecer as cláusulas gerais a que o mesmo ficaria subordinado, não basta a exibição do documento que contém o contrato para que se possa dar por provado tal conhecimento.
Com efeito, os embargantes sempre aceitaram que subscreveram o dito contrato, bem como uma livrança em branco para obterem meios de financiamento para adquirirem a um terceiro um veículo automóvel. Sabiam que tendo recebido um montante monetário da entidade exequente o teriam de pagar acrescido de um valor correspondente à remuneração do capital, pagamento esse que foram realizando mensalmente, em prestações cujo montante não conheciam com completo rigor mas sobre o qual não suscitaram dúvidas quanto à respectiva exigibilidade.
Analisado o contrato, verifica-se que no seu verso são estabelecidas diversas regras, entre elas a cláusula 8ª que estipula a sorte do contrato em caso de incumprimento por parte dos embargantes, incumprimento este que veio a verificar-se e deu causa ao preenchimento da livrança e à instauração da execução.
Tal cláusula 8ª, considerada em abstracto, não enferma de qualquer vício legal. O que acontece é que com a revisão constitucional de 1989 os direitos do consumidor assumiram a categoria de direitos e deveres fundamentais de natureza económica e o legislador sentiu necessidade de criar regras, algumas imperativas, de protecção do consumidor na celebração deste tipo de contratos. A sociedade de consumo e a dinâmica vertiginosa da vida económica fizeram com que em todos os sectores de prestação de serviços e fornecimento de bens se facilitasse a obtenção de crédito ao consumo utilizando contratos de adesão onde os consumidores são seduzidos pela concessão fácil de dinheiro por instituições bancárias e parabancárias com as quais quase nunca têm qualquer contacto. Quem fornece os bens e serviços dispõe sempre de alternativas de financiamento para o respectivo consumo entregando aos consumidores estes contratos de adesão que se apresentam como o “midas” que permite a qualquer um, seja qual for a dimensão do seu património adquirir bens sem ter, nesse momento, que curar do pagamento do respectivo preço. Tal forma de agir, potenciando a actividade económica, empurra para o endividamento os consumidores e as empresas.
“Compre agora e pague sabe-se lá quando” faz esquecer a necessidade de contabilizar o exacto valor pelo qual os bens são realmente adquiridos e conduz os consumidores a assumirem compromissos que muitas vezes não podem cumprir e cujo conteúdo desconhecem.
Quase apagada nesta “miragem de sonhos” a LIBERDADE CONTRATUAL em que as partes em pé de igualdade formal criavam os contratos à medida dos seus interesses e necessidades, assiste-se a uma simples adesão a um contrato já integralmente estabelecido não negociado pelo consumidor que a ele adere. As empresas fornecedoras de crédito ao consumo, munidas dos mais diversos artifícios de marketing apresentam, no momento de contratar, as vantagens do financiamento descurando a indicação das respectivas desvantagens. Tal realidade, de dimensão também comunitária, levou já que para execução do artº 153º do Tratada de Amesterdão a Comunidade determinasse que os Estados-Membros adoptassem medidas de protecção dos consumidores neste tipo de contratos.
Iniciada tal protecção ao nível da legislação nacional com o DL nº 446/85 de 25 de Outubro, sofreu o mesmo alterações, com vista à transposição para o direito nacional da Directiva n.º 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de Abril de 1993, com o DL nº 220/95, de 31 de Janeiro.
Nada nos autos permite concluir que a exequente tenha demonstrado que efectivamente cumpriu o seu dever de informação dos embargantes do teor integral das cláusulas contratuais gerais a que subordinou o dito contrato, como lhe impunha a lei e sobre ela impendia tal ónus de prova pelo que a falta de prova do cumprimento desse dever só pode conduzir à consideração de não provado o referido ponto 1.1.10.
Na falta do cumprimento desse dever de informação, a consequência, nos termos do art.º 8.º, als. a) e b), do Dec. Lei n.º 446/85, reside na sua exclusão das cláusulas contratuais gerais que não respeitaram os requisitos da sua inclusão em contratos singulares. Ou seja, tudo se passará como se essas cláusulas nunca tivessem feito parte do contrato por o acordo estabelecido entre as partes não as abranger.
Também a situação idêntica se chegaria apenas pela constatação de que tais cláusulas se encontram no verso do documento e depois da assinatura dos contraentes por aplicação do disposto no artigo 8º, alínea d) do DL 446/85, de 25/10, com as alterações introduzidas pelos DLs 220/95, de 31/8 e 249/99, de 7/7.
Uma vez que se consideram excluídas do contrato de financiamento celebrado entre as partes as respectivas cláusulas gerais (cfr. doc. de fls. 10), maxime a 8ª, nº 3, segundo a qual “o mutuário se obriga a entregar à B………, S.A., a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas devidamente assinada pelo mutuário, que poderá ser livremente preenchida pela B…….., S.A., designadamente no que se refere à data de vencimento e local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento B………, S.A., seja titular por força do presente contrato ou de encargos dele decorrentes,” carece do devido suporte o preenchimento pela ora apelada da livrança que os apelantes lhe entregaram em branco e que serve de base à execução a que se reportam os presentes embargos. Não existe a cláusula do contrato que autorizava a apelada a preencher a livrança pelo que o seu preenchimento tem de haver-se como abusivo.
Sendo legalmente admissível a livrança incompleta por força do disposto no artº 10º da LULL, aplicável às livranças por força do artº 77º do mesmo diploma legal, não tendo entrado a livrança em circulação, estamos no domínio das relações cambiárias imediatas onde são livremente oponíveis todas as excepções fundadas na obrigação causal, podem os embargantes impor à embargada os efeitos decorrentes dos vícios dessa relação.
Como ensina o Prof. Ferrer Correia in Letra de Câmbio, pág. 67,” nas relações imediatas, ou seja, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado; sacador-tomador; tomador-1º endossado, etc.), nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentam”.
A causa de emissão da livrança foi, como se deixou referido, o contrato de crédito, ainda que a sua emissão se tenha traduzido na constituição de uma obrigação cambiária com autonomia relativamente à primeira.
Estando a cláusula que autoriza o preenchimento da livrança excluída do contrato de mútuo que motivou a emissão da livrança dada à execução, deixa de subsistir a sua força executiva, não podendo, por isso, prosseguir a execução.

Requereram ainda os embargantes que o Tribunal desencadeasse um recurso de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia. Tal processo, nos termos do disposto no artº 234º do Tratado de Amesterdão é obrigatório em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam passíveis de recurso judicial previsto no direito interno, sempre que seja suscitada uma questão relativa a interpretação de uma norma do Tratado ou à definição da validade ou interpretação de um acto adoptado pelas Instituições da Comunidade e desde que sobre essa questão não haja já sido assumida um posição por parte do Tribunal de Justiça. Na situação presente não há qualquer dificuldade ou dúvida de interpretação de norma legal ou comunitária constando mesmo da legislação nacional a transposição da Directiva Comunitária que versa sobre as cláusulas contratuais gerais em termos muito próximos da cópia integral desta.
Não se aceita, por essas razões, a sugestão aventada pelos embargantes.

Decisão:
Acorda-se, em vista do exposto, nesta Relação em julgar procedente o presente recurso, e, em consequência alterar a decisão recorrida declarando a procedência dos embargos e a extinção da execução no que aos embargantes diz respeito.

Custas pela apelada.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos (artº 138º nº 5 do Código de Processo Civil).

Porto, 21 de Setembro de 2006
Ana Paula Fonseca Lobo
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
Estevão Vaz Saleiro de Abreu (Vencido. Confirmaria a sentença, com fundamento no abuso de direito – vd., no mesmo sentido, Ac. Rel. Porto, de 15.12.05, www.dgsi.pt proc. nº 0536250)