Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0652373
Nº Convencional: JTRP00039962
Relator: CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO
COMODATO
AUTORIZAÇÃO
RESIDÊNCIA
PRAZO
OBRIGAÇÃO
Nº do Documento: RP200701150652373
Data do Acordão: 01/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 286 - FLS 52.
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o Autor permitido que de forma gratuita, a casa de que era usufrutuário, fosse ocupada pela Ré, para nela habitar enquanto fosse viva, o uso acordado ficou limitado no tempo – até à morte da comodatária.
II - O comodante não pode, por isso, exigir a restituição da casa enquanto nela residir a Ré/comodatária.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº …/2000, do .º Juízo de Gondomar
Rec. nº 2373/06 – 5 (Apelação)
Relator: João Cura Mariano
Adjuntos: Rafael Arranja
Maria do Rosário Barbosa

Autor: B……….

Ré: C……….
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O Autor veio intentar acção, com processo comum na forma ordinária, contra C………., onde conclui pedindo, na procedência da acção, que a ré seja condenada a:
- Reconhecer que o Autor é legítimo usufrutuário do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial, do qual faz parte o imóvel denominado a “D……….” que a ré ocupa;
- Restituir ao autor a aludida “D……….” livre de pessoas.
Para tanto alega o Autor, em síntese, o seguinte:
- É usufrutuário daquele prédio que se encontra registado a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, pertencendo a raiz ou nua propriedade à sua filha E………., tendo tal usufruto sido adquirido pelo autor a seu pai, F………., por escritura celebrada em 23/09/75, no Cartório Notarial de Gondomar;
- O Autor foi casado com a Ré de quem se divorciou por decisão transitada em julgado e, não obstante, esta continua a ocupar a “D……….” que integra o prédio referido, aí residindo de forma permanente, sem qualquer título que a legitime a fazê-lo, não entregando o prédio que ocupava ao Autor, apesar de solicitada a fazê-lo.
A Ré apresentou contestação onde conclui, entendendo dever a acção ser julgada improcedente, por não provada e o Autor condenado, como litigante de má-fé em multa e indemnização condignas.
Para tanto alega, em síntese, que a ocupação da “D……….” é legítima e titulada, baseada num contrato verbal de comodato vitalício, celebrado entre o Autor e a Ré em Janeiro de 1988 e ao negar factos pessoais que sabe serem verdadeiros consubstancia uma litigância de má-fé.

O Autor apresentou réplica onde conclui entendendo dever ser julgada improcedente, por não provada a excepção deduzida pela ré, concluindo-se como na petição inicial, alegando ser falso que o Autor tenha celerado qualquer contrato verbal de comodato com a Ré.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou improcedente a acção, tendo absolvido a Ré dos pedidos deduzidos e condenado o Autor, como litigante de má fé, na multa de 10 UC e na indemnização de €. 2.195,02 à Ré.

Desta sentença recorreu o Autor, com os seguintes fundamentos:
- “O apelante não celebrou com a apelada nenhum contrato de comodato referente à “D……….”;
- Antes se limitou a autorizar a apelada a continuar a viver na casa que era do casal;
- Tal autorização não configura um contrato, o qual pressupõe duas declarações de vontade, a proposta e a aceitação;
- Mesmo que assim não se entenda, certo é que o contrato de comodato pressupõe a delimitação temporal do empréstimo;
- A autorização dada pelo apelante não limitou no tempo o uso da coisa;
- Daí que a apelada estava obrigada a entregá-la quando tal lhe foi solicitado, o que o apelante fez e a apelada reconhece;
- O apelante não teve consciência de que ao autorizar a apelada a habitar na “D……….” estava a celebrar qualquer contrato, tão pouco de comodato;
- Daí que o apelante não tenha agido com dolo ou negligência grave e, portanto, litigado de má-fé;
- Em todo o caso, o montante indemnizatório arbitrado pelo Tribunal “a quo” mostra-se desconforme, por excessivo, com os usos forenses;
- A sentença em análise violou o disposto nos arts. 1.129.º e segs. do CC e 456.º e segs. do CPC”.
Concluiu pela revogação da sentença recorrida, por forma a julgar-se inexistente qualquer contrato de comodato entre Autor e Ré e, consequentemente, ser julgada inteiramente provada e procedente a presente acção e a Ré condenada a restituir ao Autor a “D……….”, livre de pessoas e bens, ou, se assim não se entender, deve ser decidido que o Autor não litigou de má-fé, não sendo, por isso, condenado em multa e indemnização.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
- Perante a matéria de facto provada não se pode concluir pela celebração de um contrato de comodato, uma vez que não está provada a existência de um acordo de vontades?
- Não tendo sido delimitada a duração do comodato pode o Autor solicitar a qualquer altura a devolução da coisa comodatada?
- O Autor não litigou com dolo ou negligência grave?
- O montante indemnizatório fixado pelo tribunal pela litigância de má fé é excessivo?

2. Dos factos
Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

I - O autor é usufrutuário do prédio misto denominado G………., no ………., freguesia de ………., Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º 47081 a fls. 14 do Livro B-134 e inscrito na respectiva matriz da freguesia de ………. sob os artigos 954.º (urbano) e 1128.º e 1129.º (rústicos), direito que se encontra registado a seu favor (Alínea A) dos Factos Assentes).

II - A raiz da referida propriedade pertence à filha do Autor, E………. (Alínea B) dos Factos Assentes).

III - O usufruto foi adquirido pelo autor a seu pai, F………., por escritura celebrada em 23/09/75, no Cartório Notarial de Gondomar (Alínea C) dos Factos Assentes).

IV - O Autor foi casado com a Ré, de quem se divorciou (Alínea D) dos Factos Assentes).

V - A Ré continua a ocupar a D………., prédio urbano que integra a G………., aí residindo de forma permanente (Alínea E) dos Factos Assentes).

VI - Em 22/12/87 o Autor escreveu à Ré uma carta na qual manifesta a sua vontade e concordância que a Ré, perante a ruptura do casamento, já prevista como eminente, continuasse a habitar a D………. (Resposta ao Quesito 1.º).

VII - Na mesma carta, o Autor refere que dentro de 12 dias iria procurar a Ré, tendo-o feito, onde na presença de familiares assumiu o compromisso verbal de que concedia à Ré o direito de, no futuro, continuar a habitar a D………. até ao fim dos seus dias, de forma gratuita (Resposta ao Quesito 2.º).
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3. Do direito aplicável
3.1. Da celebração de um contrato de comodato
A Ré invocou como causa que legitima a ocupação que faz da casa reivindicada pelo Autor a celebração de um contrato de comodato.
Provou-se que em 22/12/87 o Autor escreveu à Ré uma carta, na qual manifesta a sua vontade e concordância que a Ré, perante a ruptura do casamento, já prevista como eminente, continuasse a habitar essa casa. Na mesma carta, o Autor refere que dentro de 12 dias iria procurar a Ré, tendo-o feito, onde na presença de familiares assumiu o compromisso verbal de que concedia à Ré o direito de, no futuro, continuar a habitar a casa até ao fim dos seus dias, de forma gratuita.
É verdade que uma relação de comodato só pode ser constituída através de um acordo de vontades.
Da matéria de facto provada apenas consta a manifestação expressa dessa vontade por parte do Réu.
Porém a vontade negocial também pode ser exprimida de forma tácita (artº 227º, nº 1, do C.C.).
Essa manifestação ocorre quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem.
Ora, tendo a vontade do Autor no sentido de autorizar que a Ré ocupasse a casa de que era usufrutuário, de forma gratuita, até ao fim dos seus dias, sido prestada perante ela, nos primeiros dias de Janeiro de 1988, e continuando a Ré, ainda hoje, a ocupar a casa, aí residindo de forma permanente, é inequívoca a manifestação da sua vontade de utilizar a casa nos termos autorizados pela Autora.
Perante a declaração expressa do Autor e a declaração tácita da Ré, emitidas em sentido convergente, pode concluir-se, como fez a sentença recorrida, que estamos perante a celebração de um contrato de comodato (artº 1129º, do C.C.).

3.2. Do prazo da obrigação de restituição
Foi acordado que a Ré poderia habitar a casa comodatada até ao fim dos seus dias, isto é, até à sua morte.
Dispõe os nºs 1 e 2, do artº 1137º, do C.C.:
“1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restitui-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restitui-la logo que lhe seja exigida”.
Destas disposições resultam as seguintes hipóteses:
Se foi estipulado prazo certo para o comodato, a restituição da coisa só pode ser exigido após ter expirado esse prazo.
Se não foi estipulado prazo certo, mas foi estipulado o uso que o comodatário poderia dar à coisa comodatada, a restituição da coisa só pode ser exigida após ter terminado esse uso.
Se não foi estipulado prazo certo, nem uso determinado, o comodante pode exigir a restituição da coisa a todo tempo.
No caso em apreço, não se pode dizer que as partes tenham convencionado prazo certo para a restituição ou para o uso da coisa (do prédio urbano).
O prazo é certo, sempre que, além de haver a certeza da verificação do facto, se sabe antecipadamente o momento da sua verificação – dies certus an certus quando.
Neste caso, a morte da Ré é certa, mas o dia da sua ocorrência é incerto, pelo que estamos perante a fixação de um prazo incerto.
Quanto ao uso da coisa foi acordado que a casa comodatada se destinava à habitação da Ré.
Dada a natureza temporária do contrato, vem constituindo entendimento dominante que o uso só é determinado se delimitar, em termos temporais, a necessidade que o comodato visa satisfazer, ou seja, o uso determinado da coisa deve conter em si a definição de um tempo limitado de utilização, sob pena do mesmo poder ser confundido com outras realidades jurídicas de efeitos definitivos, como a doação.
No caso em apreço o Autor declarou permitir, de forma gratuita, que a casa de que era usufrutuário fosse ocupada pela Ré, para ela nela habitar, enquanto fosse viva, pelo que o uso acordado ficou limitado no tempo. Como já se disse, o dia da morte é incerto, mas a sua verificação é certa, pelo que não há confusão possível com transmissões de bens, a título definitivo.
É verdade que um comodato com a estipulação deste uso, tendencialmente prolongado no tempo, pode assemelhar-se, quanto aos seus efeitos com o direito real de habitação (artº 1484º e seg., do C.C.) [1], o que também sucede com os arrendamentos chamados “vinculísticos”, mas, não tendo o legislador optado por fixar um prazo máximo para a duração deste tipo contratual, nada obsta a que as partes fixem prazos ou usos de longa duração, desde que não seja ilimitada.
Assim, tendo sido convencionado que o comodato da casa se destinava a que a comodatária a habitasse até à sua morte, o comodante não pode exigir a restituição dessa casa, enquanto a comodatária nela residir [2].
Logo, não tendo, no caso sub judice, ainda findado ou terminado o uso convencionado para que a dita casa foi comodatada – o qual, em princípio, só ocorrerá com a morte da Ré, se esta lá continuar a viver - não se verifica o pressuposto legal para que o Autor possa exigir à Ré a restituição do dito imóvel, por cessação do contrato, à luz do artº 1137º, do C.C..
Deste modo, verifica-se que foi correcta a decisão da sentença recorrida em julgar improcedente a presente acção, com fundamento em que a ocupação pela Ré da casa reivindicada é legítima, uma vez que tem por título um contrato de comodato celebrado com o Autor, que se encontra vigente.

3.3. Da condenação em litigância de má-fé
Nesta acção o Réu negou que tenha assumido o compromisso de permitir que a Autora ocupasse a casa reivindicada, gratuitamente, até ao fim dos seus dias.
A prova produzida veio demonstrar que esta negação contrariava a verdade dos factos.
Sendo um facto praticado pelo Réu, não podia o mesmo desconhecê-lo, nem a sua importância permitia que o esquecesse, pelo que ao negá-lo fê-lo necessariamente com a consciência que faltava à verdade.
Tal conduta processual preenche a previsão do artº 456º, do C.P.C., pelo que se justifica a sua condenação como litigante de má-fé, como fez a sentença recorrida.

3.4. Do montante da indemnização, pela litigância de má-fé.
A sentença recorrida, em despacho complementar, pela litigância de má-fé, condenou o Autor a pagar à Ré, a quantia de €. 2.195,02, respeitando €. 2000, aos honorários devidos pela Autora ao seu mandatário e €. 195,02, a despesas de taxas de justiça pagas na presente acção.
O recorrente entende exagerado este valor.
Quanto ao montante dos honorários, tendo em consideração o grau de complexidade desta acção, o trabalho que se mostra desenvolvido e o valor dos interesses em jogo, o montante de €. 2000, mostra-se um valor equilibrado, face aos usos vigentes, não havendo motivo para o reduzir.
Já quanto às despesas consideradas as mesmas serão objecto de devolução à Ré, pelo funcionamento das regras quanto a custas judiciais, pelo que não integram um prejuízo que deva ser indemnizado pelo Autor.
Deste modo, deve a quantia indemnizatória, a pagar pelo Autor à Ré, ser fixada em €. 2000.
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DECISÃO
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto, fixando-se a indemnização a pagar pelo Autor à Ré, por litigância de má-fé, em €. 2000, e confirmando-se o demais decidido pela sentença recorrida.
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Custas do recurso pelo Autor, na proporção de 97%, e pela Ré, na proporção de 3%.
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Porto, 15 de Janeiro de 2007
João Eduardo Cura Mariano Esteves
José Rafael dos Santos Arranja
Maria do Rosário Marinho Ferreira Barbosa

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[1] Vide, neste sentido, MICHELE FRAGALI, em “Commentario del codice civile”, “Delle obbligazione – Artº 1754-1812”, pág. 316-317.
[2] Vide, neste sentido, MENEZES LEITÃO, em “Direito das obrigações”, vol. III, pág. 384, nota 717, da 3ª ed., da Almedina, MARQUES DE MATOS, em O contrato de comodato”, pág. 51-52, da ed. de 2005, da Almedina, e os seguintes Acórdãos:
- da Relação do Porto, de 26-11-1981, na C.J., Ano VI, tomo 5, pág. 266, relatado por GAMA PRAZERES.
- da Relação do Porto, de 26-1-1984, na C.J., Ano IX, tomo 1, pág. 231, relatado por RESENDE PEGO.
- da Relação de Lisboa, de 25-5-2000, na C.J., Ano XXV, tomo 3, pág. 99, relatado por SALVADOR DA COSTA.
- da Relação do Porto, de 8-7-2004, no site www.dgsi.pt, relatado por HENRIQUE ARAÚJO.
- da Relação do Porto de 24-5-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por ALZIRO CARDOSO.
- da Relação de Coimbra, de 27-6-2006, no site www.dgsi.pt, relatado por ISAÍAS PÁDUA.