Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0631297
Nº Convencional: JTRP00038933
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: REGISTO PREDIAL
JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL
Nº do Documento: RP200603160631297
Data do Acordão: 03/16/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: O processo de justificação relativo ao trato sugestivo é da competência da Conservatória do Registo Predial e não do Tribunal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Em 05.11.28, no Tribunal da Comarca de Arouca, a Cooperativa .........., CRL, instaurou acção declarativa com processo ordinário contra Incertos

alegando
que
- é proprietária de seis prédios urbanos, que identifica;
- desde há mais de vinte, trinta e quarenta anos, sem interrupção, sempre a ora A. tem vindo a fruir os alegados prédios;
- construindo-os, neles introduzindo melhoramentos, utilizando-os para recolha de leite e comercialização de produtos destinados a ser aplicados nas explorações agro-pecuárias, pagando os respectivos impostos e contribuições, enfim, neles praticando todos os actos de fruição, transformação e disposição, próprios de verdadeira proprietária;
- o que sempre, por si e legais antecessores, sempre foi feito, na firme convicção de que exercia, como exerce, o correspectivo direito de propriedade;
- com conhecimento da generalidade das pessoas, designada mente dos proprietários confinantes e moradores nos respectivos locais de situação dos prédios e povoações vizinhas;
- na melhor das harmonias, pois que jamais recorreu a violência ou alguém, por qualquer modo, se lhe opôs no exercício dos actos de fruição, transformação e disposição por si praticados;
- com inteiro desconhecimento de lesarem direito de outrem e, por isso, de boa-fé;
- assim, a A., por si e legais antecessores, terá adquirido, por usucapião, como efectivamente adquiriu, o direito de propriedade sobre todos e cada um dos prédios, acima referidos, usucapião que invoca para todos os efeitos legais;
- sendo certo, no entanto, que, dada a antiguidade da sua posse e porque todos os terrenos, onde foram implantados os edifícios, lhe foram cedidos, a título oneroso ou gratuito, não pode a A. identificar os seus legais antecessores, sejam os mais remotos, sejam os mais próximos (mesmo assim, já muito distantes no tempo);

- Tanto mais quanto é certo que as cedências foram efectivadas, a título verbal, sem outorga da adequada escritura pública ou de qualquer outra forma legal;
- Daí, que, não tendo a possibilidade de identificar os interessados directos em contradizer, nos termos do artigo 16° do Código de Processo Civil, devam eles ser representados pelo Ministério Público;
- Com a presente demanda, a autora pretende obter a justificação da sua posse e propriedade, para efeito de reconhecimento Judicial e posterior registo dos seus direitos na competente Conservatória do Registo Predial.

Pedindo
que fosse judicialmente reconhecido que a A. é proprietária dos prédios urbanos, descritos, por tê-los adquirido por usucapião, sempre com as devidas e legais consequências.

Por despacho de 05.12.06, foi a acção indeferida liminarmente, por o tribunal se considerar materialmente incompetente.

Inconformada, a autora deduziu o presente agravo, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

Não houve contra alegações.

O Sr. Juiz manteve tabelarmente a sua decisão.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
a única questão proposta para resolução consiste em determinar qual a entidade competente em razão da matéria para conhecer da pretensão da autora: o tribunal ou a conservatória do registo predial.

Os factos

Os factos a ter em conta são os acima assinalados, decorrentes da tramitação processual.

Os factos, o direito e o recurso

Vejamos, então, como resolver a questão.

No despacho recorrido entendeu-se que pretendendo a autora a justificação da sua posse e propriedade, a conservatória do registo predial era a entidade competente para o conhecimento dessa pretensão, porque o processo de justificação judicial referido no n.º1 do artigo 116º do Código do Registo Predial e estabelecido no Decreto-Lei 284/84, de 22.08, tinha sido revogado pelo Decreto-Lei 273/01, de 13.10, pelo qual se operou a transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judicias para os conservadores do registo.

A agravante entende que da sua petição inicial se retira que o que pretende é obter decisão judicial que reconheça e declare a existência do direito de propriedade sobre os prédios alegados, pelo que o processo adequado a essa pretensão revestirá a forma de processo comum judicial - assumindo a natureza de uma acção declarativa constitutiva – e não a forma de um processo de justificação na conservatória do registo predial previsto no artigo 116º do Código do Registo Predial, preceito que seria de aplicação facultativa e apenas para efeito de justificação – o que não seria o caso.

Cremos que não tem razão e se decidiu bem.

Analisada e interpretada a petição inicial – interpretação esta feita utilizando os critérios estabelecido nos artigos 236º e 239ºdo Código Civil para as declarações contidas em negócios formais – não podemos deixar de concluir que o que a autora/agravante pretende é o estabelecimento do trato sucessivo quanto aos imóveis acima referidos, por forma a obter título bastante que comprove o invocado direito de propriedade e assim, obter a competente inscrição registral, nos termos do artigo 116º do Código do Registo Predial.
Di-lo expressamente a autora, no artigo 12º da sua petição inicial, quando refere que “com a presente demanda, a autora pretende obter a justificação da sua posse e propriedade, para efeito de reconhecimento Judicial e posterior registo dos seus direitos na competente Conservatória do Registo Predial”.

A competência em razão da matéria deve aferir-se pelo pedido em articulação com a causa de pedir.
Ora o reconhecimento judicial do direito de propriedade peticionado pela autora assenta no facto, por si alegado, de não tendo qualquer título válido e ter possuído os prédios em termos de adquirir aquele direito por usucapião, pretender aquele reconhecimento para, munido deste título, assim proceder ao registo do facto na respectiva conservatória.
Estamos, pois, e como já foi dito, perante uma acção de justificação para estabelecimento de trato sucessivo, nos termos do citado n.º1 do artigo 116º do Código do Registo Predial.
E sendo assim, a competência para a apreciar pertence à conservatória do registo predial competente e não ao tribunal.

Na verdade, a acção de justificação judicial referida no n.º1 do artigo 116º daquele Código, aprovado pelo Decreto-Lei 224/84, de 06.07 cujo regime constava do Decreto-Lei 284/84, de 22.08, deixou de existir a partir de 02.01.01, altura em que entrou em vigor o Decreto-Lei 273/01, de 13.10, que alterou a redacção daquele n.º1 e revogou aquele Decreto-Lei 284/84.
Passando a justificação relativa ao trato sucessivo para a competência das conservatórias de registo predial, como consequência da filosofia que passou a informar, a par de outros, os processos de suprimento e os de rectificação de registo, filosofia que corresponde a uma estratégia de desjudicialização de matéria em que não se consubstanciavam verdadeiros litígios – cfr. preâmbulo do citado diploma legal.

Esta filosofia não deixa dúvidas sobre a possibilidade de um adquirente, mesmo assim, poder optar por uma acção judicial.
Não pode.
E não pode porque assim naufragaria aquela estratégia de desjudicialização acima referida.
Não se podendo concluir da utilização do verbo “poder” no n.º1 do citado artigo 116º outro significado senão o de um direito que é concedido ao adquirente e não de uma faculdade.
Outra interpretação feriria a unidade do sistema jurídico, pois não se compreenderia que o legislador revogasse o processo de justificação judicial com a filosofia acima referida e viesse a admitir a prossecução dos mesmos fins daquele processo através de outra forma processual.
Os tribunais judiciais só poderão intervir no caso de recurso da decisão final do conservador ou no caso de o processo ter sido declarado findo e os interessados haverem sido remetidos para os meios judiciais pelo conservador em consequência de oposição por aqueles deduzida ou pelo Ministério Público, nos termos do disposto no n.º6 do artigo 117º-F e n.º2 do artigo 117-H, do Código do Registo Predial.

Apenas uma nota final.
A agravante parece entender que do seu petitório resulta apenas que quer ver reconhecido o direito de propriedade que invoca e não que pretende registar esse direito.
A ser assim – e já vimos que não é – estávamos perante uma conduta que, dado o que acima ficou dito e nomeadamente o que a autora alegou no artigo 12º da sua petição inicial, levaria à conclusão de que a autora se servia deste processo para conseguir um fim proibido por lei, qual seja, o de ter um título para o estabelecimento do trato sucessivo por entidade que não tinha competência para tal.
E assim, que fazia um uso anormal do processo.
Ao que o tribunal sempre deveria obstar, nos termos do disposto no artigo 665º do Código de Processo Civil.

No sentido acima exposto, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.16 (Moitinho de Almeida) e de 04.10.28 (Faria Nunes) e desta Relação de 05.06.09 (Mário Fernandes)“in” ww.dgsi.pt e da Relação de Lisboa de 05.03.03 “in” Colectânea de Jurisprudência, 2005, II, 68.

Concluímos, pois, que não merece qualquer censura a decisão recorrida.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento ao presente agravo e assim, em manter o despacho recorrido.
Custas pela agravante.

Porto 16 de Março de 2006
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida