Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1279/08.5TBLSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: DIREITO DE REPRESENTAÇÃO
BENEFICIO EXCLUSIVO DOS DESCENDENTES
CÔNJUGE DO HERDEIRO
GRADAÇÃO DA CULPA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
SITUAÇÃO ECONÓMICA DO LESADO
SITUAÇÃO ECONÓMICA DO CAUSADOR DO ACIDENTE
Nº do Documento: RP201103151279/08.5TBLSD.P1
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ao contrário do direito a suceder por morte, o direito de representação opera para a estirpe, em benefício exclusivo dos descendentes do herdeiro pré-falecido, e não já do cônjuge do herdeiro — art° 2039° C.Civ.
II - As considerações sobre gradação da culpa não podem transferir-se para a responsabilidade pelo risco, pelo que a remissão do art° 499° C.Civ. não se aplica ao disposto no art° 494° C.Civ.
III - “Embora porventura a situação económica do responsável seja inferior à do lesado, não se afigura que, por esse motivo, deva considerar-se este exposto a não obter a reparação integral do seu dano, já que este foi causado por um risco criado pelo responsável em seu próprio beneficio e contra o qual ele devia ter tomado as precauções (v.g., seguro) adequadas a assegurar a reparação dos consequentes prejuízos”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec. 1279-08.5TBLSD.P1. Relator – Vieira e Cunha (decisão de 1ª instância de 28/6/10). Adjuntos –Des. Mª das Dores Eiró e Des. Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recursos de apelação principal e subordinado interpostos na acção com processo ordinário nº1279/08.5TBLSD, do 1º Juízo da Comarca de Lousada.
Autores – B…, C…, D…, E…, F… e G….
Réus – Fundo de Garantia Automóvel e H….

Pedido
Que os Réus sejam condenados a pagar aos Autores a quantia de € 770.770,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, a atribuir na proporção que couber a cada um dos AA.

Tese dos Autores
Os AA. são os universais herdeiros de I….
No dia 14/9/03, pelas 00,50h., no …, na Estrada Municipal que liga … a …, concelho de Lousada, ocorreu um acidente de viação envolvendo o ciclomotor, de matrícula ..-..-PV, conduzido pelo Réu H… e o falecido peão de quem os AA. são únicos herdeiros.
O ciclomotor circulava no sentido …-…, e o peão em sentido oposto, pelo lado esquerda da berma, atento o sentido de marcha do ciclomotor. Ora, por via de condução em velocidade excessiva e desatenta, o ciclomotor entrou em derrapagem, no momento em que iniciava uma curva à sua direita, e foi atingir o peão, provocando-lhe a morte, por forma necessária e adequada.
O Réu, condutor do ciclomotor, fugiu do local do acidente e não era possuidor de licença de condução.
Computam o valor do dano patrimonial e não patrimonial no montante peticionado.
Tese do Réu H…
Os irmãos do Réu são partes ilegítimas quanto aos direitos peticionados, direitos esses adquiridos directa e originariamente pelas pessoas indicadas no nº2 do artº 496º C.Civ., sem transmissão sucessória.
O Réu foi absolvido em processo-crime anterior, por decisão transitada em julgado.
A vítima apresentava problemas visuais graves e não caminhava na berma da estrada.
Tese do Réu Fundo de Garantia
Impugna motivadamente quer o modo como o acidente ocorreu, e é descrito pelos AA., quer o montante a natureza dos danos invocados.

Despacho Saneador e Sentença Recorridos
No despacho saneador, os AA. foram julgados partes legítimas.
Na sentença, a Mmª Juiz “a quo”, na parcial procedência do pedido:
a) absolveu os RR. do pedido de condenação formulado por F…;
b) na parcial procedência do pedido, condenou os RR. a, solidariamente, pagarem à Autora B…, e como herdeiros de K…, a esta e a C…, D…, E… e G…, a quantia de € 90 075, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, vencidos e vincendos, desde a citação, e até efectivo e integral pagamento.

Conclusões do Recurso de Apelação do Réu Fundo de Garantia Automóvel:
1 – Se se admite que a indemnização seja fixada em montante inferior aos danos em situações em que há culpa – artº 494º C.Civ. – por maioria de razão essa limitação deve ocorrer nos casos de responsabilidade pelo risco.
2 – As circunstâncias do caso – perigosidade geral do trânsito de peões, inexistência de culpa do condutor, circulação do peão fora da berma, elevada taxa de álcool do lesado e redução da capacidade de visão do mesmo – devem determinar a redução da indemnização em 60% do seu montante, por aplicação do artº 494º C.Civ., “ex vi” artº 499º do mesmo diploma.
3 – Os juros de mora sobre a indemnização dos danos morais devem calcular-se desde a sentença (releva-se aqui o manifesto lapso, pela contradição notória que acarretaria face ao corpo das alegações).
4 – O Réu deve ser absolvido do pedido da Autora G….
5 – O tribunal “a quo” violou o disposto nos artºs 499º, 494º, 805º, 566º nº2 e 2133º C.Civ.

Conclusões do Recurso de Apelação do Réu H… (resenha):
1 – Os AA. irmãos da vítima nestes autos, cunhada e sobrinha por direito de representação, são partes ilegítimas pois não têm direito às indemnizações peticionadas e mencionadas no nº2 do artº 496º C.Civ., porquanto tais danos nascem por direito próprio na titularidade das pessoas aí designadas, sendo adquiridos directa e originariamente por tais pessoas, não havendo lugar a transmissão sucessória dos mencionados danos não patrimoniais (direito que o “de cujus”, pai da vítima do acidente dos autos, não tinha à data da sua morte).
2 – Esses direitos nascem “jure proprio”, no património das pessoas a que se refere o nº2 do artº 496º C.Civ., com respeito pela ordem sucessivamente excludente estabelecida no mesmo nº2 do artº 496º, segundo a ordem e nos termos em que nesta disposição legal são chamadas, em grupos sucessivos, conforme se retira das expressões “na falta destes” e “por último”.
3 – Só a Autora, mãe da vítima, é parte legítima.
4 – A resposta ao quesito 6º não é consentânea com a prova efectuada em audiência.
5 – A matéria desse quesito pressupunha que o embate ocorresse de forma violenta, sendo que, nesse caso, seria inevitável que a vítima mortal ficasse com lesões físicas externas visíveis, o que, conforme refere o médico legista, não aconteceu – tais factos levam à conclusão lógica de que a velocidade a que o ciclomotor circulava não foi a causa do embate.
6 – Face aos pontos 1 e 2 dos Factos Provados na sentença recorrida, dizem as regras da experiência comum que, com os problemas visuais gravíssimos de que a vítima mortal padecia, aliado a uma concentração de álcool no sangue de 2,86 g/l, nunca o mesmo conseguiria circular em linha recta, junto à berma, como refere a sentença, na resposta ao quesito 4º, circulando antes na faixa de rodagem.
7 – Além da prova testemunhal, o parecer técnico da Direcção Geral de Viação aponta no mesmo sentido (de que a vítima circulava em zig-zag pela faixa de rodagem, devido ao álcool ingerido, acrescendo a falta de visão).
8 – O dever de previsibilidade do Apelante não pode ir para além do normal, não tendo o mesmo que contar com um peão altamente embriagado, invadindo a faixa de rodagem e com gravíssimos problemas de visão.
9 – O acidente ocorreu por negligência e falta de cuidado do falecido.
10 – Aplica-se a estes autos a presunção legal de inexistência dos factos alegados em sede de petição inicial, conforme estipulado no artº 674º-B C.P.Civ., estabelecendo esta norma que a decisão penal transitada em julgado que haja absolvido o Arguido, com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui em quaisquer acções de natureza cível presunção legal da inexistência desses factos, presunção essa que foi invocada na Contestação.
11 – A sentença recorrida violou os artºs 496º nº2 e 505º C.Civ., 40º e 101º nº3 C.Est. e 674º-B C.P.Civ.

Conclusões do Recurso Subordinado dos Autores (resenha):
1 – Devem ser dados como provados os seguintes factos da Base Instrutória – 24º, 25º, 26º, 35º, 36º, 37º, 44º, 45º, 46º e 47º.
2 – O facto 31º da Base Instrutória deve ser dado como provado, com a seguinte redacção: “Após a morte do I…, tiveram os pais deste dificuldades financeiras”.
3 – Ao perder a receita proveniente do salário do I…, o orçamento familiar diminuiu e, como tal os pais do I… tiveram dificuldades financeiras, o que se pode retirar dos factos a provar ou até dos já provados; impõe-se arbitrar uma indemnização a título de perda de capacidade de ganho.
4 – É facto notório que em qualquer morte existem despesas com o funeral da vítima e com o arranjo da campa onde esta é sepultada.
5 – Pelo exposto, o tribunal deve fixar uma indemnização a pagar pelos Apelados a título de despesas com médicos e medicamentos, funeral e arranjo de campa.
6 – A sentença recorrida violou o disposto nos artºs 483º nº1, 495º, 562º e 564º C.Civ.

Por contra-alegações, o Réu Apelado salienta que os AA., no respectivo recurso, em vez de analisar e expor as concretas passagens dos diferentes testemunhos que alegadamente impõem decisão diferente, limitam-se a fazer uma referência genérica e globalizante a todos os depoimentos; sucede que, nos termos legais, competia-lhes não só concretizar as passagens dos diferentes depoimentos, como identificá-los com exactidão (artº 685º-B nº2 C.P.Civ.).
No mais, pugna pela improcedência do recurso subordinado.

Factos Julgados Provados
1. Pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Lousada correu termos o processo comum singular com o n.º 791/03.7GALSD contra o aqui R. H…, no qual se encontrava acusado pelo MP, da prática, em concurso real, de um crime de homicídio negligente, de um crime de omissão de auxílio e de um crime de condução sem habilitação legal, tendo o mesmo, por decisão de 29/05/2006, sido absolvido da prática do crime de homicídio por negligência, mas condenado em relação aos demais crimes, sendo que em tal processo os pais do malogrado I… constituíram-se assistentes.
2. Na referida decisão foi dado como assente que o I… tinha problemas visuais graves e que do exame toxicológico realizado ao mesmo, revelou aquele a presença de álcool na concentração de 2,86 g/l.
3. No dia 14 de Setembro de 2003, cerca das 00.50h, o ciclomotor de matrícula ..-..-FV, conduzido por H… embateu no I….
4. Tal embate deu-se no …, na Estrada Municipal que liga … à …, em Lousada.
5. O referido ciclomotor circulava no sentido …-….
6. O I… circulava na mesma via e local junto à berma esquerda, coberta de vegetação, atento o sentido de marcha …/….
7. O condutor do FV circulava a uma velocidade não inferior a 54 Km/h.
8. Com o embate o I… rodou, caindo e batendo de seguida com a parte lateral direita da cabeça no muro que ladeia a berma esquerda da estrada atento o sentido de marcha …/…, aí ficando deitado sobre o solo perpendicularmente à via.
9. E o condutor do FV foi cair a cerca de 14 m do local do embate.
10. O ciclomotor parou a cerca de 23,90 m do local do embate.
11. O FV deixou sinais de derrapagem desde o local do embate até ao local onde ficou imobilizado.
12. O condutor do FV apercebeu-se que o I… tinha ficado ferido junto à berma da estrada.
13. Momentos após o referido embate o condutor do ciclomotor pôs-se em fuga do local do acidente sem prestar qualquer auxílio ao I….
14. O veículo e o seu condutor foram identificados pelos sinais de derrapagem deixados no pavimento e pelos vestígios de sangue que apresentavam, sendo que o veículo e o seu condutor também foram identificados pelos fragmentos daquele veículo caídos no pavimento.
15. Tais vestígios foram confrontados com amostras de fluído extraído da boca do condutor do FV e correspondiam ao ADN daquele.
16. O condutor do FV, após o embate, dirigiu-se aos serviços de urgência do Hospital …, e aí recebeu tratamento aos ferimentos advindos do acidente.
17. Do embate da cabeça do I… no muro resultaram para este infiltrações sanguíneas da face interna do couro cabeludo e músculo temporal direito e lesões traumáticas crânio-encefálicas graves e irreversíveis.
18. No local da colisão a via tem a largura de 5 m, acrescida de uma berma, sendo que a berma esquerda atento o sentido de marcha …/… tem 90 cm de largura.
19. E desenvolve-se em curva para a direita, atento o sentido de marcha do FV.
20. O condutor do FV conduzia o dito veículo sem para tal estar habilitado legalmente e sem ser titular de qualquer contrato de seguro de responsabilidade civil.
21. O tempo estava bom e havia iluminação pública a 31,50 m do local do embate.
22. O I… permaneceu no local do acidente, até receber os primeiros socorros, em mau estado e inconsciente.
23. O condutor do FV circulava sozinho.
24. O I… foi prontamente socorrido pelas pessoas que ocorreram ao local e posteriormente foi conduzido ao Hospital …, mas já sem vida.
25. O falecido I… nasceu em 6/01/1967.
26. À data do acidente o I… trabalhava como jornaleiro, auferindo 5,00 € por hora.
27. Residia com os pais e contribuía para o orçamento da casa.
28. O I… era alegre, trabalhador, humilde e ajudava os pais.
29. Com a morte do I… os pais daquele perderam a alegria.
30. Os pais ficaram angustiados com a morte do I….
31. Após a morte do I… mantiveram os pais deste dificuldades financeiras.
32. Os pais, a mãe debilitada por problemas ósseos e o pai por dificuldades de visão, auferiam pensões de reforma rural.
33. Os pais do I… à data do acidente eram pessoas alegres.
34. Deixaram de frequentar os convívios com amigos por causa da perda do filho.
35. A B… quando se fala do acidente fica angustiada e chora.
36. Em consequência do acidente, o I… ficou com a roupa que então usava, designadamente, camisa, calças, sapatos, destruída.
37. A mãe do I… recebeu assistência médica para tentar aliviar a angústia e a depressão em que mergulhou com a morte daquele.

Fundamentos
As questões substancialmente colocadas pelos vários recursos de apelação são as seguintes:
- Saber se os AA. irmãos da vítima nestes autos, cunhada e sobrinha por direito de representação, são partes ilegítimas (não têm direito às indemnizações peticionadas e mencionadas no nº2 do artº 496º C.Civ.), porquanto tais danos nascem por direito próprio na titularidade das pessoas aí designadas, sendo adquiridos directa e originariamente por tais pessoas, não havendo lugar a transmissão sucessória dos mencionados danos não patrimoniais (direito que o “de cujus”, pai da vítima do acidente dos autos, não tinha à data da sua morte); assim, apenas a Autora, mãe da vítima, é parte legítima.
- Conhecer da relevância para a apreciação de direito da presunção legal que deriva do disposto no artº 674º-B C.P.Civ.
- Saber se os qq. 4º e 6º deveriam ter a resposta propugnada no recurso do Réu H….
- Saber se devem ser dados como provados os seguintes factos da Base Instrutória – 24º, 25º, 26º, 35º, 36º, 37º, 44º, 45º, 46º e 47º e saber se o facto 31º da Base Instrutória deve ser dado como provado, com a seguinte redacção: “Após a morte do I…, tiveram os pais deste dificuldades financeiras” (conhecendo da questão prévia relativa à validade da impugnação, suscitada por contra-alegações).
- Saber se o Réu Fundo de Garantia deve ser absolvido do pedido da Autora G….
- Conhecer da eventual culpa da vítima na eclosão do acidente.
- Saber se se impõe, no caso concreto, arbitrar uma indemnização a título de perda de capacidade de ganho.
- Saber se o tribunal deve fixar uma indemnização a título de despesas com médicos e medicamentos, funeral e arranjo de campa.
- Saber se as circunstâncias do caso – perigosidade geral do trânsito de peões, inexistência de culpa do condutor, circulação do peão fora da berma, elevada taxa de álcool do lesado e redução da capacidade de visão do mesmo – devem determinar a redução da indemnização em 60% do seu montante, por aplicação do artº 494º C.Civ., “ex vi” artº 499º do mesmo diploma.
- Saber se os juros de mora sobre a indemnização dos danos morais se devem calcular desde a data da sentença.
Apreciemos tais questões ponto por ponto.
I
Em primeiro lugar, apreciemos a questão suscitada e relativa à legitimidade dos AA. filhos e nora e neta do falecido marido da Autora, K… (data de falecimento – 18/8/2005). O acidente mortal a que os autos se reportam ocorreu no dia 14/9/2003 e a presente acção deu entrada em juízo no dia 9/9/2008.
Nos termos do artº 496º nº2 C.Civ., “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes (…)”.
A norma refere-se aos titulares activos dos direitos de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo de cujus, em caso de lesão de que proveio a morte.
A matéria está tratada abundantemente na melhor doutrina portuguesa e, para efeito de uma breve exposição das posições divergentes, seguiremos de perto a síntese do Ac.S.T.J. 9/5/96 Bol.457/275 (Miranda Gusmão):
“Defendem uns que tais direitos de indemnização cabem primeiramente ao “de cujus” e depois se transmitem sucessoriamente para os seus herdeiros legais ou testamentários (Galvão Telles, Sucessões, 1971, pgs. 83 a 87); outros, que tais direitos, após terem cabido ao “de cujus” se transmitem sucessoriamente para as pessoas mencionadas no nº2 do artº 496º C.Civ. (Vaz Serra, Revista Decana, 103º/172, Leite Campos, A Indemnização do Dano de Morte, 1980, pg. 54), e ainda outros que esses direitos de indemnização são adquiridos, directa e originariamente, pelas pessoas indicadas no nº2 do artº 496º, não havendo lugar, por isso, a transmissão sucessória (Antunes Varela, Obrigações, I/6ª ed./583, Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, I/4ª ed./500, Vaz Serra, Revista Decana, 107º/143, 109 e 44).”
“Nesta polémica doutrinal (e também jurisprudencial, cf. S.T.J. 16/3/73 Bol.225/216, S.T.J. 13/11/74 Bol.241/204)[1] propendemos para a orientação de que os danos não patrimoniais sofridos pelo morto nascem, por direito próprio na titularidade das pessoas designadas no nº2 do artº 496º, segundo a ordem e nos termos em que nesta disposição legal são chamadas. Esta adesão radica-se na argumentação utilizada quer por Antunes Varela – ob. cit., pg. 585 – quer por Capelo de Sousa – Lições de Direito das Sucessões, I/3ª ed./298 a 304 – argumentação esta sólida no que se refere aos trabalhos preparatórios do Código, os quais revelam, em termos inequívocos, que o artº 496º, na sua redacção definitiva, tem a intenção de afastar a natureza hereditária do direito à indemnização pelos danos morais sofridos pela própria vítima (Capelo de Sousa, ob. cit., pg. 298, nota 433).”
E aderimos, nós também, a tal ponto de vista, permitindo-nos salientar os argumentos alicerçados no elemento histórico da interpretação e provenientes do rumo tomado pelos trabalhos preparatórios – a leitura da exposição de Antunes Varela, Revista Decana, 123º/191 e 192, afigura-se-nos definitiva, sem necessidade de aqui a repetirmos.
Ora, encontrando-nos perante um dano próprio dos nomeados no artº 496º nº2 C.Civ., sendo esses nomeados os próprios lesados (na acepção de que “lesado é tanto aquele que sofreu um dano próprio e individual como aquele que sofreu um dano próprio mas com origem em facto que só indirectamente lhe respeita” – Ac.S.T.J. 15/4/97 Bol.466/450), naturalmente que o direito não desaparece, salvas as consequências do tempo no exercício dos direitos, porque o seu titular não o exerceu, sendo a inversa igualmente verdadeira: ao contrário do que é afirmado nas doutas alegações de recurso, o direito não nasce só quando é accionado, aliás, é accionado porque existe previamente na esfera jurídica do accipiens.
Assim, como qualquer outro direito rectius relação jurídica patrimonial (artº 2024º C.Civ.), este que é atribuído pelo disposto no artº 496º nº2 C.Civ. é susceptível de ser transmitido aos herdeiros – não da vítima do acidente, é claro, mas daquele que possui direito próprio à indemnização, nos termos do artº 496º nº2 C.Civ.
O direito foi assim atribuído aos pais da vítima, e, por morte posterior de um dos pais, é transmitido aos restantes Autores por via sucessória, por se tratarem de seus únicos e universais herdeiros.
Desta forma, nada obstava à declaração da respectiva legitimidade, deles AA., tal como se afirmou em 1ª instância.
II
Conhecer da relevância para a apreciação de mérito da presunção legal que deriva do disposto no artº 674º-B nº1 C.P.Civ.
Nos termos do normativo, a decisão penal transitada em julgado que haja absolvido o arguido com o fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
Quer isto dizer, como se explicitou no Ac.S.T.J. 25/3/04 Col.I/140, ou no Ac.R.C. 16/4/02 Col.II/27, que “quando a absolvição em processo penal se não tiver fundado no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos, nomeadamente os integrantes da contravenção causal que lhe eram imputados, fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido actuou com a diligência devida, cabendo ao autor, no processo civil, demonstrar que assim não foi, isto é, que o arguido absolvido actuou de forma culposa”.
Ora, da adequada interpretação que vem de se expor, resulta que a presunção que, de uma decisão penal absolutória decorre para a acção civil, apenas opera para os casos que se tenha estabelecido a efectiva não prática dos factos imputados, e não já a dúvida sobre a prova.
Ora é a dúvida sobre a prova que beneficia o arguido (ora Réu) no citado processo crime, onde se escreveu, no instrumento decisório transitado em julgado que “as informações esparsas recolhidas não permitem que possamos reproduzir o modo como se deu o acidente” ou “não podemos considerar que estejam reunidos os elementos factuais necessários a afirmar que foi a conduta do arguido e não a da própria vítima, a causa directa do embate que viria a ser mortal”.
Pelo exposto, não pode retirar-se, da sentença proferida em processo criminal, qualquer presunção relevante para o processo civil, designadamente à luz do disposto no artº 674º-B nº1 C.P.Civ. (e se “presunção” existisse, ela teria, em efeito prático, funcionado de pleno, pois que a Mmª Juiz “a quo” emitiu um juízo decisório no qual, outrossim, afirmou serem os factos provados insuficientes para se demonstrar a culpa de qualquer dos intervenientes no acidente em causa).
III
Conhecer agora da matéria de facto impugnada, constante da prova gravada em audiência, tal como integrante das alegações (e respectivas conclusões) do Réu H….
No quesito 4º perguntava-se se “o I… circulava na mesma via e local pela berma da estrada, mas em sentido oposto ao do FV”. Respondeu-se; “Provado que o I… circulava na mesma via e local junto à berma esquerda, coberta de vegetação, atento o sentido de marcha …/…”.
Não podemos estar mais de acordo com a resposta adoptada. Note-se que a resposta alude a “junto à berma” e não “na berma”, mas também sabemos que a berma era exígua (30/40cm, segundo a testemunha sargento L…) e coberta de vegetação.
Por outro lado, esse “junto à berma” não nos fornece também o exacto ponto da largura da via em que a vítima caminhava, embora presumivelmente ao lado da berma. E note-se que, apesar da pouca iluminação do local (ladeado por matas), sendo noite cerrada, e o grau de alcoolemia e deficiência visual de que a vítima era portadora (disseram-no, para além do mais, em audiência os médicos respectivamente legista e assistente, M… e N…) existia uma linha branca que delimitava a faixa de rodagem (depoimento do dito militar da GNR, acrescendo as fotos de fls. 366 dos autos) que por certo auxiliava sobremaneira a vítima a fazer o dito percurso “junto à berma”, pese embora o grau de alcoolemia e a deficiência visual.
Por outro lado, do facto de a testemunha Engº O… não excluir que a vítima efectuasse um trajecto irregular, junto à berma, não nos pode fazer dar como provado tal tese, não apenas porque formulada, disse-se, como hipótese, como também porque não existisse qualquer base factual da qual se pudesse extrair, por presunção simples, que todos os embriagados, na proporção da vítima, terão de assumir, ao andar, em qualquer circunstância, trajectórias irregulares. Pese embora a possibilidade, eventualmente alta, do facto, inexistiu qualquer prova que nos fizesse fixar um facto-base (uma probabilidade segura, muito alta ou definitiva) para uma presunção simples.
Confirma-se assim a resposta adoptada.
Impugnada também a resposta ao quesito 6º, onde se perguntava “com o embate (o condutor do FV) projectou-o contra o muro e aí ficou caído”. Respondeu-se: “Provado que, com o embate o I… rodou, caindo e batendo de seguida com a parte lateral direita da cabeça no muro que ladeia a berma esquerda da estrada atento o sentido de marcha …/…, aí ficando deitado sobre o solo perpendicularmente à via”.
Resposta escrupulosa e que mais uma vez sufragamos por inteiro. O lado da cabeça que bate no muro é o direito, de acordo com o depoimento do médico legista M…. Ora, como era o lado esquerdo da cabeça o que se encontrava virado para o muro, tal foi seguramente compatível com o aludido rodopio. A mesma testemunha esclareceu que as lesões na cabeça foram a causa da morte e as testemunhas agentes da G.N.R. L… e P… esclareceram os vestígios de sangue e/ou cabelos que encontraram no muro. A testemunha presencial de como os corpos se encontravam na via após o embate (Q…) também esclareceu relativamente à perpendicularidade do corpo em face da via.
Confirma-se, por igual, a resposta adoptada.
IV
Saber se devem ser dados como provados os seguintes factos da Base Instrutória – 24º, 25º, 26º, 35º, 36º, 37º, 44º, 45º, 46º e 47º e saber se o facto 31º da Base Instrutória deve ser dado como provado, com a seguinte redacção: “Após a morte do I…, tiveram os pais deste dificuldades financeiras”, tudo por via da impugnação efectuada no recurso subordinado dos Autores.
Ora, é um facto que a dita impugnação é feita por remissão genérica para o depoimento gravado das testemunhas que enuncia – os Recorrentes não localizam no CD de gravação as passagens dos depoimentos que, no seu entender, confirmam a impugnação das respostas, ou efectuam a transcrição dessas aludidas passagens dos depoimentos.
A acta de julgamento também não localiza separadamente os depoimentos das testemunhas, por referência à sinalização temporal do CD.
Na vigência da redacção aplicável do artº 690º-A (redacção de 2000), quer dizia “incumbir ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se fundava, por referência ao assinalado na acta, defendemos que, no caso de não ter o Recorrente condição de melhor cumprir o disposto no artº 690º-A nºs 1 al.b) e 2 C.P.Civ., inexistindo qualquer referência na acta aos depoimentos testemunhais, localizando-os no CD de gravação, a nulidade cometida não poderia, porque alheia à responsabilidade do Recorrente, traduzir-se em cerceamento do direito ao recurso em sede de decisão sobre a matéria de facto.
Porém, na redacção de 2007, aplicável aos presentes autos, a norma do artº 685º-B nº2 C.P.Civ., mais exigente, diz que “incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.
Aí já se não encontra em causa a regular elaboração da acta de audiência.
O Recorrente, lançando mão do CD de gravação, terá assim que identificar os depoimentos, pelo momento do depoimento em que foram prestados, ou pela hora, tudo possível pela consulta ao CD (sem que se cure da acta de audiência), sem prejuízo da faculdade paralela de apresentar transcrições, as quais, outrossim, são aptas a identificar o meio probatório a que se confere relevância impugnatória, face ao decidido em 1ª instância.
Acompanhamos assim a doutrina de Abrantes Geraldes, Recursos – Novo Regime, 2007, pg. 138.
Desta forma, e neste particular, estamos impedidos de apreciar as alegações de recurso subordinado.
V
Saber agora se o Réu Fundo de Garantia deve ser absolvido do pedido da Autora G….
Pese embora o devido respeito, a alegação não pode, de forma alguma, colher.
O que se encontra em causa é a estirpe integrada por um irmão da vítima, irmão esse pré-falecido a seu pai (como visto em I, do que se cura é dos sucessores do pai, em quem se radicou o direito à indemnização – artº 496º nº2 C.Civ.).
Ora, trata-se aqui de direito de representação, o qual opera para a estirpe, como dito, em benefício dos descendentes do herdeiro, e não já do cônjuge do herdeiro – artº 2039º C.Civ. (operaria para o cônjuge se se tratasse de sucessão ao pré-falecido, mas os autos não tratam de sucessão desse pré-falecido, mas de representação face ao “de cujus”, pai do mesmo pré-falecido).
Note-se que “estirpe”, para efeitos sucessórios relevantes, é um grupo familiar composto por um progenitor comum, filho ou irmão do “de cujus”, e pela respectiva descendência – R. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I/2ª ed./pg. 322 (nota 481).
A questão foi também adequadamente conhecida como questão de mérito e não questão de instância ou legitimidade, face aos hoje já bem consabidos termos do artº 26º nºs 1, 2 e 3 C.P.Civ.
VI
Olhando à eventual culpa na produção do acidente e respectivos danos, há que constatar que se continua a desconhecer o que quer que seja acerca do processo causal do acidente, posto que a circulação de peões, junto à berma, não é, em si, um facto ilícito (é permitida pelo Código da Estrada, considerada a redacção de 2003, nas concretas condições que os autos espelham – artº 99º nº2 al.b), nem a embriaguez da vítima pode fazer presumir uma queda mais grave que a expectável, que aliás sempre poderia ocorrer tratando-se de um peão mais frágil, ou em especiais condições de fragilidade física.
Quanto à velocidade, do artº 27º nº1 C.Est., extrai-se que a velocidade máxima que era permitida ao Réu tripulante do ciclomotor era de 45 km/hora, no específico local do acidente.
Ora, e apesar de se ter demonstrado que o Réu imprimia ao veículo a velocidade de 54 km/hora, nem esse excesso ilícito nos faz divisar qualquer causalidade, nos termos do artº 563º C.Civ., não apenas por se tratar de um excesso irrelevante face à concreta vítima e também porque tal valor se não afasta dos padrões normais de conduta comummente decente, na estrada – artº 487º nº2 C.Civ.
Aliás, a boa doutrina manda que se avalie a culpa ou o âmbito de protecção das normas que caracterizam a responsabilidade civil – ut artºs 483º nº1, 487º nºs 1 e 2 e 566º C.Civ. – não como um mero acervo ou constatação de contravenções praticadas pelos intervenientes aquando da ocorrência dos acidentes ou eventos lesivos, pois que mais do que a violação formal de regras, deve procurar conhecer-se o processo dinâmico ou causal do acidente para, em conformidade, saber se essa violação formal da regra pode ou não considerar-se na origem do evento infortunístico – neste sentido, v.g. Ac.R.P. 20/11/90 Bol. 401/634 ou Ac.R.P. 8/1/91 Bol.403/477.
Ora, como há muito tempo vem salientando Meneses Cordeiro (em toda a sua obra, e pelo menos desde o Direito das Obrigações, Lisboa, 1980, II/§ 327) há na tradição analítica germânica, de Jhering e dos princípios do século XX (recebida em Portugal, através de diversos autores italianos, sobretudo pelo Prof. Guilherme Moreira) uma contraposição culpa/ilicitude que resulta, se não inútil, no mínimo algo artificial.
Na verdade, o que está em causa é a responsabilidade e a reprovação pelo direito de uma conduta, que o direito francês bem classificou, ao longo dos tempos (desde o Code Napoléon em vigor), sinteticamente, como “faute” – o que se encontra em causa é saber se existiu a violação de um dever que se dirige à vontade, ao querer virtuoso (ou próprio do “bom pai de família”).
Mais recentemente, escreveu muito adequadamente aquele Autor:
“A recepção do modelo da responsabilidade civil baseado na contraposição entre culpa e ilicitude foi, antes do mais, uma recepção linguística; na verdade, não havia quaisquer problemas, no plano da aplicação, que obrigassem ao abandono da antiga culpa-“faute”; por certo que a superioridade técnica dos sistemas analíticos jogou um papel decisivo (…); de facto, seja qual for a orientação prosseguida quanto à noção de culpa, a sua contraposição perante a ilicitude só sobrevive se ela traduzir algo de substancialmente diverso.”
Conclui, da análise das decisões do Supremo Tribunal de Justiça português que “quando se contempla a materialidade das decisões, salta à vista a tendência para a indiferenciação dos pressupostos, os quais tendem a concentrar-se na culpa” – “o juízo de imputação baseado no universo, de resto ontologicamente incindível, dos factos e das normas aplicáveis é intrinsecamente unitário; não há duas instâncias de controlo do ordenamento sobre a imputação: apenas surge uma, que se exprime como “culpa”; na realidade, é a “faute” ou, se se preferir, a culpa bem nacional anterior a Guilherme Moreira” (ut Eficácia Externa dos Créditos e Abuso de Direito, O Direito, 2009/I/pgs. 61 e 62).
Para concluir, resta a imputação do resultado danoso pelo risco proveniente da circulação do veículo, ao Réu H… – artº 503º nº1 C.Civ.
VII
Saber agora se se impõe, no caso concreto, arbitrar uma indemnização a título de perda de capacidade de ganho dos Autores.
Nos termos do artº 495º nº3 C.Civ., no caso de lesão de que proveio a morte, têm direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava, no cumprimento de uma obrigação natural.
O douto petitório configura este direito em função da sociedade familiar que a vítima formava com seus pais, contribuindo ela, na medida das suas possibilidades, para as despesas comuns.
A este nível, e em função dos factos provados, não podemos deixar de concordar com as asserções que extraímos da douta sentença recorrida:
“Embora o falecido vivesse com os pais e contribuísse para as despesas domésticas, certo é que os seus rendimentos se limitavam à sua actividade como jornaleiro pela qual auferia 5,00 €/hora. Acresce que os pais recebiam uma pensão de reforma que sendo rural, não seria elevada. Em todo o caso, e vivendo os pais do falecido ainda em vida deste com dificuldades, não se nos afigura poder concluir que o mesmo lhes atribuía alguma quantia monetária para as suas despesas destinando-se antes aquilo que lhes entregava ao seu próprio sustento, o que possivelmente se iria manter, tanto mais, que o falecido tinha irmãos.”
Nesta medida, concordamos com a conclusão retirada dos factos provados: a título de danos pela perda de alimentos não é de atribuir aos AA. qualquer indemnização, por aos ditos alimentos futuros não terem demonstrado o jus respectivo.
VIII
Saber se o tribunal deve fixar uma indemnização a título de despesas com médicos e medicamentos, funeral e arranjo de campa.
A esse respeito, não existem factos que ajudem a quantificar o valor do dano; todavia, sabe-se que o Centro Nacional de Pensões pagou aos AA., a quantia de € 971, a título de despesas de funeral – cf. certidão de fls. 253 e artº 371º nº1 C.Civ. (e que, aliás, tendo peticionado o reembolso de tal quantia aos ora RR., no presente processo, viu o pedido ser julgado improcedente, por prescrito).
Desta forma, cremos que, em termos equitativos (artº 566º nº3 C.Civ.), o valor do dano em causa se encontra já ressarcido por terceiro.
IX
Saber se as circunstâncias do caso – perigosidade geral do trânsito de peões, inexistência de culpa do condutor, circulação do peão fora da berma, elevada taxa de álcool do lesado e redução da capacidade de visão do mesmo – devem determinar a redução da indemnização em 60% do seu montante, por aplicação do artº 494º C.Civ., “ex vi” artº 499º do mesmo diploma.
A extensão da previsão do artº 494º C. Civ. aos casos de responsabilidade pelo risco é matéria polémica na doutrina, conforme dá nota o Ac.S.T.J. 21/3/00 Col.I/138: de um lado, Vaz Serra pronunciou-se no sentido de que a circunstância de, na responsabilidade pelo risco, não ser necessária a culpa, requisito esse a que o normativo se refere, impedia a sua extensão a essa modalidade de responsabilidade – cf. Revista Decana, 103º/172ss. e 109º/112 (aliás esta última em anotação concordante ao Ac.S.T.J. 14/2/75, publicado na citada revista e número).
Note-se que esta é a posição maioritária no Supremo Tribunal de Justiça, com os Acs. citado e o Ac.S.T.J. 17/12/09 in www.dgsi.pt, pº nº 129/2000.S1, relator: Santos Bernardino, Ac.S.T.J. 18/3/86, revista nº 72944, e de 17/11/94, revista nº 85132; das Relações, veja-se o Ac.R.L. 16/2/79 Col.I/163; em contra, apenas o Ac.S.T.J. 21/3/00 cit.
Mas a favor da extensão de tal previsão manifestam-se Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, I/3ª ed./pg. 479. Trata-se então de atender, segundo os Autores, à situação económica do responsável pelo risco e do lesado e às demais circunstâncias do caso.
Propendemos para a solução ainda maioritária e citamos Vaz Serra, na Revista, ano 109º cit.:
“A responsabilidade pelo risco, fundada na ideia de quem cria riscos especiais para outrem deve suportar o encargo das consequências prejudiciais daí decorrentes para terceiros (ubi commoda ibi incommoda; ubi emolumentum ibi onus), não parece que deva depender, quanto ao montante da indemnização, dos factores referidos no artigo 494º, isto é, que possa esta, como nele se diz, «ser fixada equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem»: é que, além de ser aí impossível atender ao «grau de culpabilidade do agente» (trata-se de uma responsabilidade independente de culpa), não parece que o quantum da indemnização deva poder ser reduzido em atenção à situação económica do responsável e do lesado, pois, embora porventura a situação económica do responsável seja inferior à do lesado, não se afigura que, por esse motivo, deva considerar-se este exposto a não obter a reparação integral do seu dano, já que este foi causado por um risco criado pelo responsável em seu próprio benefício e contra o qual ele devia ter tomado as precauções (v.g., seguro) adequadas a assegurar a reparação dos consequentes prejuízos”.
“É certo que a circulação de veículos é uma necessidade individual e social; mas certo é também que, importando ela riscos graves para terceiros, a lei impõe a quem os cria o dever de indemnizar os danos causados.”
Temos por seguro, quanto a nós, que as considerações sobre a gradação da culpa não podem transferir-se para a responsabilidade pelo risco, pelo que, inarredavelmente, nos encontramos perante fontes diversas da responsabilidade extra-contratual, e a remissão do artº 499º C.Civ. (relativa à aplicação das normas sobre responsabilidade aquiliana à responsabilidade objectiva) deixa de ter aplicação prática.
De todo o modo, tudo indica que a situação económica dos Autores seja de sensível carência, e não menor carência que a do Réu, pelo que a interposição de uma entidade solvente, como o Fundo de Garantia Automóvel, sempre faria desaconselhar a aplicação do disposto no artº 494º C.Civ. a este caso concreto.
X
Saber finalmente se os juros de mora sobre a indemnização dos danos morais se devem calcular desde a data da sentença.
É verdade que se fixou jurisprudência obrigatória no Ac.Jurispª 4/2002, de 9/5/02, in D.R. Iªs.-A de 27/6/2002, segundo a qual “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº2 do artº 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artºs 805º nº3 (interpretado restritivamente) e 806º nº1 C.Civ., a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
Ora, sem beliscarmos minimamente aquela doutrina obrigatória, a verdade é que aquilo que não resulta esclarecido da sentença é se os montantes dos danos não patrimoniais achados o foram por reporte à data da citação para a acção, ou à data da sentença.
E tendo a citação para a acção ocorrido em Setembro de 2008 (a sentença foi proferida em 28/6/2010), não ocorreu variação jurisprudencial significativa na avaliação dos danos não patrimoniais, pelo que, na falta de melhor esclarecimento, temos que aceitar o teor do dispositivo da sentença como revelando que a Mmª Juiz “a quo”, ao fixar o valor dos danos não patrimoniais, teve em mente a forma como o pedido foi formulado, logo havendo-se reportado ao momento da citação, em todos os passos da fixação de um montante certo de quantias indemnizatórias, a qualquer título.
Também neste particular, não vemos razão para não acompanhar o teor da douta sentença recorrida.
A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – Os danos não patrimoniais sofridos pela vítima mortal nascem, por direito próprio na titularidade das pessoas designadas no nº2 do artº 496º C.Civ., sendo esses nomeados os próprios lesados; assim, o direito não desaparece, salvas as consequências do tempo no exercício dos direitos, porque o seu titular não o exerceu.
II - Assim, como qualquer outro direito patrimonial (artº 2024º C.Civ.), este que é atribuído pelo disposto no artº 496º nº2 C.Civ. é susceptível de ser transmitido aos herdeiros – não da vítima do acidente, é claro, mas daquele que possui direito próprio à indemnização, nos termos do artº 496º nº2 C.Civ.
III – Nos termos do disposto no artº 674º-B nº1 C.P.Civ., a presunção que, de uma decisão penal absolutória decorre para a acção civil, apenas opera para os casos que se tenha estabelecido a efectiva não prática dos factos imputados, e não já a dúvida sobre a prova.
IV - Na redacção de 2007, a norma do artº 685º-B nº2 C.P.Civ., não coloca em causa a regular elaboração da acta de audiência, impondo antes ao recorrente a identificação dos depoimentos, pelo momento do depoimento em que foram prestados, ou pela hora, tudo possível pela necessária consulta ao CD, sem prejuízo da faculdade paralela de apresentar transcrições.
V – Ao contrário do direito a suceder por morte, o direito de representação opera para a estirpe, em benefício exclusivo dos descendentes do herdeiro pré-falecido, e não já do cônjuge do herdeiro – artº 2039º C.Civ.
VI - As considerações sobre gradação da culpa não podem transferir-se para a responsabilidade pelo risco, pelo que a remissão do artº 499º C.Civ. não se aplica ao disposto no artº 494º C.Civ.
VII – “Embora porventura a situação económica do responsável seja inferior à do lesado, não se afigura que, por esse motivo, deva considerar-se este exposto a não obter a reparação integral do seu dano, já que este foi causado por um risco criado pelo responsável em seu próprio benefício e contra o qual ele devia ter tomado as precauções (v.g., seguro) adequadas a assegurar a reparação dos consequentes prejuízos”.

Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedente, por não provado, os interpostos recursos de apelação e, em consequência, confirmar o despacho saneador e a sentença recorridos.
Custas pelos Apelantes, na proporção de vencido, sem prejuízo do Apoio Judiciário de que gozam.

Porto, 15/3/2011
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa
________________
[1] (Nota nossa) – A polémica manteve-se aberta, e supõe-se que se mantém aberta, ainda que com argumentário diverso, por via da atribuição ao nascituro do direito à indemnização pelo dano não patrimonial do “de cujus”, aludido no artº 496º nº2 C.Civ – consagrando a lei a via sucessória, e não um direito próprio das pessoas mencionadas no normativo, é óbvio que o nascituro é titular do direito à indemnização, enquanto “descendente”, por força da capacidade sucessória que lhe é atribuída no artº 2033º nº1 C.Civ. – veja-se, v.g., o resumo do Ac.R.C. 21/1/92 Bol.413/623.