Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
628/07.8TAAMT.P1
Nº Convencional: JTRP00043282
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
PODERES DO JUIZ
do Documento: RP20091209628/07.8TAAMT.P1
Data do Acordão: 12/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 605 - FLS 149.
Área Temática: .
Sumário: Na concordância judicial com a proposta de suspensão provisória do processo, cabe ao juiz de instrução não só a comprovação dos pressupostos formais descritos no art. 281º do CPP, bem como a formulação de um juízo materialmente jurisdicional relativamente às consequências jurídicas decorrentes das medidas sancionatórias propostas pelo M.P, designadamente da necessidade de preservação da dignidade do arguido, bem como de adequação de tais medidas com os fins preventivos, especiais ou gerais, de modo a obter-se a paz social.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 628/07.8TAAMT.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro.

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto


I.- RELATÓRIO

1. No PC n. 628/07.8TAAMT.P1 do ..º Juízo do Tribunal de Amarante, em que são:

Recorrente: Ministério Público.

Recorrido: B………..

foi proferido despacho em 2009/Jul./15, a fls. 167-170 que não homologou a suspensão provisória do processo promovida pelo Ministério Público em virtude do indiciado crime de usurpação e ou aproveitamento de obra usurpada nos termos do art. 68.º, 184.º, 195.º, 197.º e 199.º do C. D. A. representar um flagelo nacional e internacional, com repercussões elevadíssimas e graves para a indústria discográfica e para o Estado, sendo o arguido uma pessoa que trabalha no ramo há mais de 20 anos, tendo perfeita consciência do seu comportamento lesivo, sendo escassa a injunção imposta ao arguido, bem como o período de suspensão.
2. O Ministério Público interpôs recurso em 2009/Jul./21, a fls. 172 e ss, concluindo em suma que:
1.º) O Ministério Público é um órgão do poder judicial dotado de autonomia, a quem cabe, além do mais, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática [219.º, n.º 1 e 2 da C. Rep. e 3.º, al. c) da Lei n.º 47/86, de 15/Out.], estando a sua intervenção processual sujeita a critérios de legalidade e de estrita objectividade [53.º, n.º 1, do C. P. P.];
2.º) O princípio do acusatório pressupõe que as entidades que investigam sejam distintas das que julgam, não cabendo à função jurisdicional qualquer atribuição de fiscalização e de primazia em relação às decisões do Ministério Público na fase do inquérito;
3.º) Todas as intervenções do juiz de instrução na fase do inquérito ocorrem unicamente para assegurar a tutela dos direitos fundamentais do arguido;
4.º) Ao juiz de instrução não lhe são reconhecidas competências para sindicar a actividade e a diligência do Ministério Público na investigação nem para ajuizar a sua decisão final do inquérito promovida por este, pelo que quando o fizer ocorre uma intromissão ilegal na esfera do órgão responsável pelo inquérito;
5.º) Não cabe ao juiz de instrução avaliar os indícios do inquérito com vista a determinar o grau de culpa do arguido ou se as injunções e deveres de conduta impostos pelo Ministério Público são ou não insuficientes;
6.º) A interpretação dada ao art. 281.º, do C. P. P. é inconstitucional por violar a estrutura acusatória do processo consagrada no art. 32.º, n.º 5, da C. Rep., na medida em que admite a discordância do juiz de instrução com base na consideração de uma mais gravoso índice de culpa do agente ou da insuficiência das medidas propostas pelo Ministério Público.
3. O recurso foi admitido em 2009/Jul./29 e sustentado a fls. 194-196, com subida imediata tendo-lhe sido atribuído efeito meramente devolutivo.
4. O Ministério Público nesta Relação emitiu parecer em 2009/Set./22, a fls. 202-204, suscitando a questão prévia do regime fixado ao presente recurso, considerando que o efeito a dar-lhe corresponde antes ao suspensivo e no demais aderiu aos fundamentos do recurso pugnando pela sua improcedência.
5. Procedeu-se a exame preliminar, colhendo-se de seguida os vistos legais, nada obstando ao conhecimento de mérito.
Apreciada a questão prévia suscitada o objecto do recurso passa por saber se o juiz, aquando da homologação da proposta de suspensão provisória, pode sindicar a insuficiência das injunções propostas [a)] e, caso assim se entenda, se existem razões para se concluir por essa insuficiência [b)].
i) Questão prévia.
Estipula-se no art. 408.º, n.º 3 do Código de Processo Penal que “Os recursos previstos no n.º 1 do artigo anterior têm efeito suspensivo do processo quando deles depender a validade ou a eficácia dos actos subsequentes, suspendendo a decisão recorrida nos restantes casos”.
Tratando-se do recurso despacho de homologação da suspensão provisória do processo afigura-se-nos que o respectivo efeito será suspensivo, o que agora se decreta.
*
* *
II.- FUNDAMENTAÇÃO.
1.- Circunstâncias a considerar.
1. Promoção do Ministério Público de fls. 152-162.
“Analisados os elementos de prova recolhidos nos presentes autos em que é arguido B………., melhor identificado nos autos, mostra-se suficientemente indiciada a prática pelo arguido de um crime de Usurpação de direitos de autor.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
O arguido, não se pode, de acordo com o que se apurou nos autos, afirmar que o grau de ilicitude e de culpa sejam elevados. De resto, o arguido não tem antecedentes criminais nem beneficiou anteriormente do regime de suspensão provisória do processo, pelo que não há razões especiais de prevenção atinentes ao mesmo que importe salvaguardar.
…………………………………………………………………………………………….
Em face do exposto, ao abrigo do disposto no art. 281.º e 282.º, do C. P. P., determino a suspensão provisória do processo, por um período de 3 meses, mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções:
- de entregar a quantia de €€ 250 aos C………. .”
*
2.- Fundamentos do recurso.
a) A suspensão provisória do processo e a concordância do juiz.
Tal instituto encontra-se essencialmente regulado nos art. 281.º e 282.º do Código Processo Penal[1], estabelecendo-se no n.º 1 daquele primeiro normativo que “Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:”
Muito embora esta redacção resulte da Revisão de 2007, efectuada pela Lei n.º 59/98, que veio permitir que o arguido requeresse essa suspensão, o certo é que o requisito da “concordância do juiz de instrução” não resultava do texto original que aprovou o actual Código Processo Penal, mais concretamente do Decreto n.º 754/86, de 04/Dez.
A redacção primitiva era a seguinte: “Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 3 anos ou com sanção diferente da prisão, pode o Ministério Público, decidir-se pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:”
Tal modificação surgiu em virtude do Tribunal Constitucional se ter pronunciado, em sede de fiscalização preventiva e mediante o seu Ac. n.º 7/87, de 1987/Jan./09[2] pela inconstitucionalidade do281.º, n.os 1 e 2, na medida em que neles se não prevê qualquer intervenção de um juiz - por violação dos artigos 32.º, n.º 4, e 206.º da Constituição, …”.
Na motivação desta decisão escreveu-se precisamente o seguinte: “A admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional. Já não se aceita, porém, a atribuição ao M. P. da competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução e daí a inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.º 1 e 2 do art. 281.º, por violação dos art. 206.º e 32.º, n.º 4 da CRP”.
Na altura, o preceituado no art. 206.º, reportava-se ao exercício da função jurisdicional, apenas cabendo a estes administrar a justiça em nome do povo, enquanto através do disposto no art. 32.º, n.º 4, impunha-se que toda a instrução seria sempre da competência de um juiz.
*
Tentando perceber qual o âmbito das funções jurisdicionais desempenhadas pelo juiz de instrução, convém ter presente o actual panorama ao nível do direito comparado relativamente a institutos semelhantes.
Convém no entanto fazer, desde logo, uma destrinça entre os sistemas processuais penais “anglo-saxónicos” e os sistemas continentais, muito embora ultimamente tenha havido uma certa continentalização daqueles e uma ínsularização destes últimos.
Naqueles a intervenção dos juiz visa essencialmente assegurar a boa regularidade das práticas judiciárias, mormente ao nível da investigação, que é da exclusiva competência das policias, muito embora em Inglaterra e País de Gales, com a institucionalização em 1986 do “Crow Prosecution Service” (CPS), com o “Prosecution of Offenses Act 1985), se tenha vindo a assistir a uma maior intervenção destes últimos, a quem cabe a maior parte das decisões de acusar ou não, mormente a partir do “Criminal Justice Act 2003”.[3]
Este sistema é essencial caracterizado pelo princípio da oportunidade e por uma “justiça negociada”, podendo até as polícias, as quais estão na dependência do “Home Office”, obter acordos com os criminalmente perseguidos, sem qualquer intervenção do CPS ou de um juiz.
O sistema processual penal continental não é unívoco, pelo que ao nível da investigação, tanto temos o domínio daquele mesmo princípio da oportunidade, como é o caso de França, em que a investigação é dirigida por um juiz, ou da legalidade, como sucede com o nosso país, a Alemanha e a Itália, a quem a direcção da investigação cabe ao Ministério Público, surgindo crescentemente nestes algumas manifestações de consenso processual.[4]
Passando assim ao largo do processo penal francês e sendo certo que têm surgido ultimamente algumas vozes a considerar a necessidade de regular a aplicação das regras de oportunidade, designadamente mediante o estabelecimento de garantias contra o seu abuso[5], vamo-nos concentrar nos sistemas dominados pelo princípio da legalidade e relativamente aos quais temos mais afinidades.
O instituto da suspensão provisória do processo, cujos pressupostos estão estabelecidos no art. 281.º, veio transpor para o nosso ordenamento jurídico o correspondente instituto alemão desenvolvido no âmbito do “Beendigungsverfaheren mit Selbstunterwerfung”[6].
Segundo o preceituado no § 153.a. (1) do StPO [Código Processo Penal alemão], o Ministério Público, antes de proferir acusação, com o consentimento do arguido e do tribunal competente para a abertura do plenário (audiência de julgamento), pode prescindir provisoriamente da interposição da acção pública (acusação) e ao mesmo tempo impor ao arguido, singular ou cumulativamente, as injunções aí assinaladas.
No caso de já ter sido proferida a acusação e de acordo com o § 153.a. (2), cabe então ao tribunal, com o consentimento do Ministério Público e do arguido, suspender provisoriamente o processo, mediante algumas das imposições assinaladas em (1).
Consagra-se aqui uma vertente tipicamente negociadora no âmbito de um processo penal dominado pelo princípio da legalidade, possibilitando-se a composição heteroprocessual de um conflito penal, mas apenas de incidência tripartida (Ministério Público, arguido e juiz), uma vez que o consentimento da vítima está totalmente afastado.
Convém no entanto relembrar que os casos em que se pode prescindir provisoriamente da acusação encontram-se restritos aos “Vergehen” [§ 12.2 do StGB], ou seja, aos delitos punidos com pena privativa de liberdade que não seja superior a um ano, excluindo-se os Verbrechen (crimes) [§ 12.1 do StGB], os quais são punidos com pena de prisão superior a um ano.
Apenas se exclui a necessidade do consentimento do juiz nos casos dos delitos [“Vergehen”] que tenham ocasionado consequências mínimas ou insignificantes.
Por sua vez, em Itália os institutos típicos da consensualidade correspondem essencialmente àqueles regulados no Código Processo Penal Italiano mediante a designação de “Applicazione della pena su richiesta delle parti” [444.º] e de “Casi di procedimento per decreto” [459.º]
Segundo o primeiro, o arguido e o Ministério Público podem requerer ao juiz a aplicação de uma reacção penal substitutiva da prisão ou de uma pena pecuniária, que está sempre sujeita a homologação judicial, o que não sucedia na versão original, razão pela qual a “Corte Constituzionale”, por sentença de 1990/Jun./26, veio declarar a inconstitucionalidade da redacção primitiva, por infringir o disposto no art. 27.º da Constituição Italiana[7].
Tal inconstitucionalidade versaria essencialmente a inexistência de uma previsão legal que possibilitasse a rejeição pelo juiz da proposta de condenação, em virtude da mesma poder revelar um tratamento contrário à dignidade da pessoa humana.
De acordo com o preceituado no citado art. 459.º, n.º 1, nos casos aí previstos, o Ministério Público, quando entenda que deve ser aplicada pena pecuniária, pode apresentar ao juiz um requerimento motivado para a emissão “del decreto penale di condanna”, indicando a medida da pena, que está sempre sujeita a homologação judicial.
E isto porque de acordo com o seu n.º 3, se o juiz, não acolher tal proposta e não chegar a pronunciar uma decisão de “non punibilitá” [129.º], remete novamente os autos ao Ministério Público.
*
No que concerne ao nosso ordenamento jurídico, podemos constatar que os actos a praticar pelo juiz de instrução não se confinam exclusivamente ao papel do “juiz das liberdades” [268.º, 269.º], mas também de plena função jurisdicional, como sucede com o controlo judicial da actividade do Ministério Público, mormente quando aquele comprova a decisão deste acusar ou de se abster de o fazer [286.º].
E essa função jurisdicional tanto é mais relevante, quando o que está em causa é a aplicação de condições ou injunções impostas aos arguidos que correspondem a autênticas medidas sancionadoras, surgindo aqui, com todo o seu esplendor, aquilo que a nossa Constituição designa por “administrar a justiça em nome do povo” [202.º], onde cabe “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.
E isto porque se tem entendido que tais medidas sancionadoras assinaladas no art. 281.º, n.º 2, tanto podem ter carácter retributivo, mormente quando são reparadoras do dano, como preventivo, sejam consideradas como medidas “quase penais” (strafänliche Maβnahmen), como “substitutos encobertos de pena” (verbekappte Ersatzstrafen) ou então como “equivalentes funcionais de uma sanção penal”[8].
Nesta conformidade, não vemos razões legais, seja de índole literal, histórica ou sistemática, ou então consequências a retirar do direito comparado, para, como entende o Ministério Público, perseguir-se uma interpretação minimalista do disposto no citado art. 281.º, confinando a intervenção do juiz de instrução apenas à fiscalização das injunções ou regras de conduta que, de acordo com o seu n.º 3, “possam ofender a dignidade do arguido”.[9]
Esta intervenção mínima do juiz de instrução iria permitir, ao fim e ao cabo, que o Ministério Público fosse um autêntico “juiz em causa própria” ou se preferir “Ein Richter vor dem Richter”[10], definindo, naturalmente com a concordância do arguido, as reacções sancionadoras sem que nalguns casos houvesse a participação das vítimas potenciais, como sucede nos crimes em que para a sua tipificação não é necessário a violação imediata do bem jurídico protegido.
Podiam assim estabelecer-se sanções sem quaisquer repercussões com os fins de prevenção, seja especial, seja geral, decorrentes de uma “justiça negociada”, que é mais típica do sistema anglo-saxónico ou dos sistemas onde prepondera o princípio da oportunidade, do que aqueles dominados pelo princípio da legalidade, como é nosso.
Invoca-se nos fundamentos de recurso que a posição maximalista iria contundir com o princípio do acusatório.
Não cremos que tal suceda, porquanto a caracterização da estrutura processual penal acusatória, a qual tem consagração constitucional [32.º, n.º 5, C. Rep.], tanto assenta numa matriz processual, como numa outra de cariz orgânico, que aqui não minimamente beliscadas.[11]
Segundo a primeira não há julgamento sem acusação, correspondendo ambas a fases distintas, enquanto a segunda significa essencialmente que o órgão acusatório é distinto do órgão de julgamento, mediante a consagração de estruturas funcionais diferenciadas ou mesmo independentes uma da outra.
Ora a concordância judicial “imposta” pelo Tribunal Constitucional, numa vertente distinta da “Corte Constituzionale” italiana, através do disposto no art. 281.º, n.º 1, não afecta a fase processual em que o Ministério Público tem plena competência para o exercício da acção penal nem aponta para a existência de uma unicidade entre as funções de acusar e julgar, antes pelo contrário, já que as mesmas se mantêm substancialmente distintas.
Aliás e seguindo até à exaustão o mesmo alinhamento minimalista reivindicado pelo Ministério Público, neste seu recurso, para as assinaladas funções do juiz de instrução no âmbito do art. 281.º, as finalidades da fase de instrução legalmente delineadas [286.º, 307.º], mormente quando se estaria a comprovar judicialmente a decisão de acusar ou de arquivar, ou quando aquele propõe a suspensão provisória do processo [307.º, n.º 2], não deixariam de ser igualmente violadoras do princípio acusatório[12].
Por outro lado, convém recordar que essa concordância judicial está no âmbito do processo sumário conferida ao juiz de julgamento, como decorre do art. 384.º.
Assim e em suma, na concordância judicial com a proposta de suspensão provisória do processo, cabe ao juiz de instrução não só a comprovação dos pressupostos formais descritos no art. 281.º, bem como a formulação de um juízo materialmente jurisdicional relativamente às consequências jurídicas decorrentes das medidas sancionatórias propostas pelo Ministério Público, designadamente da necessidade de preservação da dignidade do arguido, bem de adequação de tais medidas com os fins preventivos, especiais ou gerais, perseguidos pelas, de modo a obter-se a paz social.
Nesta conformidade, improcede o primeiro fundamento de recurso, sendo de resto neste sentido que tem se alinhado a jurisprudência desta Relação, como sucede com os Ac. de 2009/Mar./18, 2009/Abr./29, 2009/Mai./27, divulgados em www.dgsi.pt.[13]
*
b) A insuficiência das medidas propostas.
No caso em apreço estaria em causa a indiciação de cometimento pelo arguido de um crime de usurpação e ou aproveitamento de obra usurpada nos termos do art. 68.º, 184.º, 195.º, 197.º e 199.º do C. D. A.
Porém, não resulta da decisão do Ministério Público de suspensão provisória do processo qualquer descrição de factualidade que integre o ilícito em causa, muito embora exista fértil referência doutrinal a tal instituto.
Aliás a única referência factual é de que o arguido não tem antecedentes criminais e até agora não beneficiou de qualquer suspensão provisória do processo.
Assim, ficamos impossibilitados de efectuar qualquer juízo tipificador da existência de factos criminais e muito menos do grau de culpa ou de ilicitude da conduta revelada pelo arguido.
Ora e muito embora o disposto no art. 281.º, não imponha qualquer formalismo específico para o Ministério Público se decidir pela suspensão provisória do processo, o certo é que esse seu despacho deve ser fundamentado.
Pois como decorre do art. 97.º, n.º 3 “Os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos”, acrescentando-se no seu n.º 5 que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
Haverá fundamentação de um acto decisório quando a mesma esteja devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido.
Assim e à partida, não cumprem estes requisitos os actos decisórios que não tenham fundamento algum, por mínimo que seja, e aqueles que se revelem insuficientemente motivadas.
Porém, também não se deve exigir que no acto decisório fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser.
O que importa é que a motivação seja necessariamente objectiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido.
Existem até situações, como a formulação da acusação pública, que estão sujeitas a certos formalismos específicos, sob pena de nulidade [283.º, n.º 2].
No caso e por não estar cominada de nulidade, haveria apenas uma irregularidade, atento o princípio da legalidade dos actos expresso no art. 118.º, n.º 2, que estaria eventualmente sanada [123.º].
Constata-se, porém, que o despacho do Ministério Público aqui referenciado encontra-se insuficientemente motivado quanto à factualidade criminal indiciada, sendo de resto completamente omisso quanto à mesma.
Ficamos, de resto, sem saber se a conduta revelada pelo arguido é tipificadora de um ilícito criminal, pelo que muito embora se possa considerar sanada uma eventual irregularidade, a omissão da descrição daquela factualidade é tão ostensiva que não permite efectuar qualquer juízo judicial de concordância ou discordância em relação à proposta de suspensão provisória do processe formulada pelo Ministério Público.
Assim e muito embora, por razões distintas do despacho recorrido será de manter a respectiva decisão.
Naturalmente que isto não impede que o Ministério Público venha a reformular a sua proposta, fundamentando-a devidamente.
*
* *
III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirma-se a decisão de não homologação da suspensão provisória do processo.

Não é devida tributação.

Notifique.

Porto, 09 de Dezembro de 2009
Joaquim Arménio Correia Gomes
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro

__________________________
[1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
[2] DR I, n.º 33, suplemento de 1987/Fev./09 e acessível em www.dre.pt.
[3] ASHWORTH, Andrew, REDMAYNE, Mike, “The Criminal Process” (2005), p. 173 e ss.
[4] “Procédures Pénales d’Europe”, sob a direcção de DELMAS-MARTY, Mireille, onde se traça uma panorâmica dos sistemas alemães, inglês, belga, francês, italiano.
[5] STEFANI, Gaston, LEVASSEUR, Georges, BOULOC, Bernard, “Procédure Penale” (2004), p. 550/551
[6] PALERMO, Pablo Galain, em “Suspensão do processo e terceira via: avanços e retrocessos do sistema penal”, em “Que futuro para o direito processo penal? (2009), p. 613 e ss.
[7] TRAMONTANO, Luigi, “Il Codice di Procedura Penale (2006), p. 919 e ss.
[8] ANDRADE, Manuel Costa, “Consenso e Oportunidade (Reflexões a propósito da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo”, em Jornadas de Direito Processual Penal (1988), p. 353.
[9] Essa interpretação minimalista é correntemente veiculada e devidamente sustentada pelo Ministério Público, como sucede com Correia, João Conde, por sinal o Magistrado que subscreve o recurso em apreço, num seu estudo divulgado na Revista do Ministério Público, n.º 117, p. 43 e ss. designado por “Concordância Judicial à Suspensão Provisória do Processo: equívocos que persistem”
[10] Na expressão assinalada por Kausch, referenciada por PALERMO, ob. cit., p. 618, nota 14.
[11] DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Processual Penal”, Volume I (1981), p. 136 e ss.; MOREIRA, Vital; CANOTILHO, Gomes, em “Constituição da República Portuguesa Anotada” (1993), p. 257; DEU, Teresa Armenta, “Lecciones de Derecho Procesal Penal” (2007), p. 42 e ss.
[12] Como já referiu AROCA, Juan Montero, em “Processo penal y libertad” (2008), p. 70, esta alusão persistente ao princípio do acusatório poderá redundar a que o mesmo se converta num princípio totalmente vazio, onde não se saiba efectivamente o que o mesmo significa.
[13] Relatados respectivamente pelos Des. Maria do Carmo Silva Dias, Manuel Braz e pelo signatário, sendo este último igualmente subscrito pela ilustre colega adjunta.