Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0636576
Nº Convencional: JTRP00039863
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
PODER DISCRICIONÁRIO
Nº do Documento: RP200612070636576
Data do Acordão: 12/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 697 - FLS 68.
Área Temática: .
Sumário: I - O artº 508º do CPC constitui exemplo paradigmático de que na actual lei adjectiva civil se procurou colocar o acento tónico na supremacia do direito substantivo sobre o processual, nos princípios da cooperação e da descoberta da verdade material e justa composição do litígio, designadamente despindo-se esse princípio da cooperação dos seus anteriores rigores formais.
II - Consubstancia tal normativo um poder/dever do tribunal que se insere no poder mais amplo de direcção do processo e princípio do inquisitório previstos no artº 265º CPC, impedindo que razões de forma impeçam a obtenção de direitos materiais legítimos das partes.
III - Porém, isso não significa que exista uma imposição ou obrigação, antes se trata de despacho que o juiz proferirá no seu prudente critério, não vinculado, portanto. E daí, também, que a sua omissão não gera qualquer nulidade processual e não é sindicável por via recursiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO:

B………. e marido C………., instauraram contra D………. e marido E………. e F………. e marido G………., acção declarativa de condenação sob a forma sumária.

Pedem
"a) que sejam os RR. a restituir aos AA a quantia de € 14.963,94 que destes receberam e através do qual viram enriquecido o seu património à custa do património dos AA, por inexistir causa justificativa desse enriquecimento;
b) que sejam os RR. condenados a pagaram aos AA. juros à taxa legal em vigor para comerciantes de 12% sobre os € 14.963,94, desde a citação e até integral pagamento, acrescendo a sobretaxa de 5% a título de sanção pecuniária compulsória desde o trânsito em julgado desta sentença e até efectivo e integral pagamento".

Alegaram, segundo bem percebemos —alegação essa um tanto confusa, acentue-se --, que, “com vista” à celebração de um contrato de trespasse, entregaram às RR esc. 3.000.000$00, bem assim 5 cheques no valor de 500.000$00 cada.
Mais alegaram terem demandado judicialmente as RR a fim de verem decretada a nulidade do aludido negócio por falta de forma e, consequentemente, serem condenadas a restituir tudo o que foi prestado no âmbito desse contrato.
Uma vez, porém, que nesses autos—que correram no mesmo tribunal a quo, no .º Juízo Cível, sob o nº ./2000 (acção ordinária—estando a certidão da respectiva sentença junta a fls. 11 a 16)—não ficou provado qual o tipo de contrato que as partes efectuaram ou foi por elas pretendido, nem se eram as RR quem explorava o local ou se ali funcionava um estabelecimento comercial e, consequentemente, não foram ali as RR condenadas a restituir aos AA as aludidas quantias que aqueles lhes haviam entregue, alegam que não há causa a justificar a manutenção das quantias que entregaram às RR, pelo que, nessa medida (3.000.000$00), viram o seu património enriquecido à custa do património dos Autores.
Por isso pretendem, por via da verificação desse enriquecimento “sem causa”, a condenação das RR a restituir-lhes aquilo com que indevidamente se locupletaram.

Contestaram as RR, referindo que “não ocorreu qualquer enriquecimento sem causa”, alegando a pertinente factualidade (fls. 35 ss).
Concluem pedindo não só a improcedência da acção, como também a condenação dos AA como litigantes de má fé.
Os AA responderam ao pedido de litigância por má fé.

Terminada a fase dos articulados e conclusos que foram os autos, foi pela Mmª Juíza a quo proferido despacho a declarar nulo todo o processado por ineptidão da petição inicial, com a consequente absolvição da instância.
Fundamenta a Mmª Juíza a decisão, em suma, na falta de causa de pedir, já que—no seu entender-- os AA não alegaram factos “concretos relativamente à falta de causa justificativa para que os réus detenham as quantias cuja restituição pretendem”.

Inconformados com este despacho, dele recorreram os Autores, apresentando alegações que rematam com as seguintes

“CONCLUSÕES:
a) O Tribunal "a quo", decidiu absolver os RR. da instância, declarando nulo todo o processo, por ineptidão da petição inicial, dado que os AA. não alegaram factos conducentes ao instituto de enriquecimento sem causa, mas sim, fizeram (os AA.) mera referência a uma prévia acção que foi declarada improcedente.
b) Salvo melhor opinião, os AA. alegaram na petição inicial dos artigos 1° ao 17°, todos os factos que preenchem os pressupostos da procedência do instituto do enriquecimento sem causa, nomeadamente, fizeram referência à entrega do montante que provocou o enriquecimento dos RR., a nulidade do contrato que motivou a entrega do dinheiro e que nunca chegou a ser cumprido, a comunicação dos AA. aos RR. da entrega do estabelecimento, a inexistência de qualquer motivo legal que originasse a entrega de tal montante, que provocou o enriquecimento dos RR. e o consequente empobrecimento dos AA., bem como articularam ser este o único meio de modo a os AA. serem restituídos das verbas que indevidamente os RR. se locupletaram.
c) Assim, não existe ineptidão da petição inicial nem poderá ser declarado nulo todo o processo.
d) Ao decidir como decidiu, o Tribunal "a quo" violou os art.° 193.°, n.° 1 e 2, a) do CPC, pelo que a sentença deverá ser revogada e substituída por acórdão no qual a excepção de ineptidão da petição inicial seja considerada inexistente, ordenando-se o prosseguimento dos ulteriores termos da acção.”

Não houve contra-alegações.

Correram os vistos.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a única questão a resolver consiste em saber se foi, ou não, alegada factualidade integrante da causa de pedir “que estruture o pedido efectuado”, de forma a considerar-se inepta a petição inicial.

II. 2. OS FACTOS:

A factualidade a ter em conta é, no essencial, a que supra sumariamente se registou e que nos dispensamos de repetir.

III. O DIREITO

Escreveu-se no despacho a quo: "Nesta acção teriam os Autores de alegar factos concretos relativamente à falta de causa justificativa para que os RR. detenham as quantias cuja restituição pretendem, não bastando, salvo melhor opinião, a alegação de instauração da acção referida e da sua improcedência, pois daí não se extrai a falta de título.".

Com o devido respeito, cremos que mal andou a Mmª Juíza.
Vejamos.
A causa de pedir, segundo Castro Mendes (Manual de Processo Civil, 326) é o facto jurídico de que procede a pretensão material deduzida na acção (idem o mesmo Autor, in Direito Processual Civil, 1980, 1º, 172).
No entanto, como ensina Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1979, 111), tal causa petendi é o acto ou facto jurídico—simples ou complexo, mas sempre concreto—donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer. Tal direito—acrescenta este Autor—não pode ter existência sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir.
Refere a doutrina dois conceitos de causa de pedir: a) a relação jurídica material, ou as relações jurídicas que legitimam a pretensão (o pedido); b) o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer fattispecie jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponda. O primeiro corresponde à teoria da individualização ou da individuação; o segundo à teoria da substanciação (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, ed. de 1981, 1º, 205).
No nosso direito processual civil está consagrada a teoria da substanciação, o que significa que não é suficiente indicar de forma genérica o direito que se pretende fazer valer, antes se impondo a especificação ou concretização do facto constitutivo desse mesmo direito (cfr., anda, Prof. Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, Vol. II, 3ª ed., p. 356 e Prof. Castro Mendes, Manual do Processo Civil, 1963, pág. 299).
É o que resulta do artº 498º, nº4 do CPC.

Voltando, então, ao caso sub judice temos que-- embora, é certo, de forma um pouco confusa, ou pouco clara, como foi dito supra—vem alegado pelos Autores/agravantes factualidade suficiente – a preencher o supra referido “acontecimento concreto”—com vista a demonstrar a ausência de causa que legitime a manutenção no património das RR das quantias que os AA lhes entregaram.

Com efeito, alegaram os AA, designadamente, a seguinte factualidade:
- Que, “com vista” à celebração de um contrato de trespasse com as RR, entregaram-lhes esc. 3.000.000$00, bem assim 5 cheques no valor de 500.000$00 cada.
- Que, “dado entenderem que o negócio pretendido entre as partes foi o trespasse de um estabelecimento comercial”, e uma vez que havia vício de forma no negócio, demandaram judicialmente as RR a fim de verem decretada a nulidade do aludido negócio por falta de forma e, consequentemente, verem as mesmas a serem condenadas a restituir-lhes as quantias que dos AA receberam.
-- Que haviam comunicado às RR para tomarem conta do estabelecimento quando quisessem, pondo à sua disposição as respectivas chaves.
- Que uma vez que nesses autos não ficou provado qual o tipo de contrato que as partes efectuaram ou foi por elas pretendido, nem se eram as RR quem explorava o local ou se ali funcionava um estabelecimento comercial e, consequentemente, não foram ali as RR condenadas a restituir aos AA as aludidas quantias que aqueles lhes haviam entregue, nada há que justifique a manutenção na posse das RR das quantias que os AA lhes entregaram, pelo que, nessa medida (3.000.000$00), está o seu património enriquecido à custa do empobrecimento do património dos Autores.

Daqui se vê que, ao contrário do entendimento sufragado no despacho recorrido, não se limitaram os AA. A fazer uma mera referência a uma acção prévia a esta com as mesmas partes, antes alegaram um conjunto de factos concretos que—dentro do que, nas circunstâncias em causa—perecia ser-lhes possível alegar.
E assim sendo, não vislumbramos onde falta a causa de pedir na acção, conducente à absolvição da instância, por ineptidão da petição inicial.

Aliás, não é espúrio referir que os factos-- a causa petendi – foi bem entendida pelas RR na sua douta contestação, pois impugnaram detalhadamente a factualidade vertida na petição inicial, concluindo que “não ocorreu qualquer enriquecimento sem causa”.

Cremos que a Mmª Juíza, ao dizer que “não é, in casu, viável o convite ao aperfeiçoamento”, agiu de forma assaz “formalista”, esquecendo-se, designadamente, que para uma leitura correcta do princípio da preclusão temos que atender a que estamos no domínio do Cód. de Proc. Civil emergente das redacções dadas pelos Decs.-Leis nºs 329-A/95, de 12.12 e 180/96, de 25-09, onde há que atender, v.g., ao estatuído nos arts. 264º, 508º e 508º-A,1, c).
Como ensina Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Código de Proc.Civil, págs. 77/78, “os factos essenciais devem ser invocados nos articulados (cfr. artº 264º-1), mas importa referir que a sua omissão não implica necessariamente a preclusão da sua alegação posterior”.
É motivo para dizer que “O procedimento demasiado ritualizado e com efeitos preclusivos não permite atingir a justiça que se procura através do processo” (Aspectos do Novo Processo Civil”, A. Marques dos Santos, Lebre de Freitas e outros, 1997, 34—sublinhado nosso.

Com a reforma processual civil que o novo Código consubstancia de alguma forma se “liberalizou” nesta matéria, pois que colocou-se o acento tónico “na supremacia do direito substantivo sobre o processual, os princípios da cooperação e da descoberta da verdade material”
Tal princípio foi despido dos seus anteriores rigores formais, do que é exemplo paradigmático o artº 508º, do C.P.Civ, onde se dá a liberdade de as partes aperfeiçoarem os articulados produzidos, de forma a que dos autos constem todos os elementos de facto (e direito) necessários, ou úteis, a uma decisão de mérito pronta e verdadeiramente justa.

Como já supra reiterámos, há, é certo, alguma imprecisão ou deficiência na alegação dos autores, pois o seu discurso vertido na p.i. não é tão escorreito e claro como se imporia.
Mas isso de forma alguma consubstancia falta de causa de pedir. Poderíamos ter, eventualmente, uma deficiente alegação dos factos na inicial.
E a entender que a alegação não é a melhor, devendo ser corrigida, então entraria em funcionamento o artº 508º do CPC, a impor ao tribunal o convite aos AA a, querendo, suprir a eventual deficiente alegação da matéria de facto.
Trata-se de um poder/dever do tribunal que se insere no poder mais amplo de direcção do processo e princípio do inquisitório previstos no artº 265º CPCivil. Poder/dever esse que podia ser exercido pelo tribunal até ao encerramento da discussão (artº 653º, 1. CPCivil). É um poder/dever que encontra a sua essência na vontade do legislador da busca da verdade material e da justa composição do litígio, impedindo que razões de forma impeçam a obtenção de direitos materiais legítimos das partes.

Dispõe, com efeito, o artº 508º do CPC:
“(Suprimento de excepções dilatórias e convite ao aperfeiçoamento dos articulados)
1. Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do nº 2 do artigo 265.º;
b) Convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes.
2. O juiz convidará as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
3. Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
4. Se a parte corresponder ao convite a que se refere o número anterior, os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
5. As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos números 3 e 4, devem conformar-se com os limites estabelecidos no art. 273.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos arts. 489.º e 490.º, quando o sejam pelo réu.
………………………”

Anote-se, porém, o seguinte:
É certo que a redacção do nº 3 do aludido normativo legal parece justificar a conclusão de que, se visou legislador fazer incidir sobre o julgador um dever de prevenção—o que afasta a pura discricionariedade--, também não visou impor ou obrigar a prolação do despacho de aperfeiçoamento para os efeitos daquele nº 3 (“Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”—diz a lei).
Ou seja, trata-se de um poder/dever, sim, mas não de uma imposição ou obrigação. Trata-se, antes, de um despacho que o juiz proferirá no seu prudente critério— no Ac. da RC de 29.05.2001, Relator Nuno Cameira fala-se, a respeito daquele nº 3, em “despacho não vinculado”.
Se entender que a “busca da verdade material e da justa composição do litígio” o justificam, deve proferir tal despacho; se assim não lhe parecer, não se justifica que o profira.
Por isso é abundante a jurisprudência a sustentar que a omissão do despacho pré-saneador de aperfeiçoamento de articulados deficientes não gera qualquer nulidade processual e não é sindicável por via recursiva-- podendo ver-se abundante doutrina e jurisprudência a tal respeito e no sentido acabado de referir no Ac. da Rel. do Porto, de 28.02.2005, Col. Jur., Ano XXX, tomo I/2005, a págs. 200 ss.—para onde se remete para maiores desenvolvimentos.
É o que de forma paradigmática se plasmou na seguinte passagem do aresto acabado de citar (pág. 203):
“…………...................
O dever de cooperação e de prevenção exigido ao Juiz não pode ser levado ao ponto de ele imaginar, adivinhando, que o Autor além dos documentos que apresenta e que traduzem uma realidade tem outros que traduzem realidade diversa.
As partes devem ser responsabilizadas pelos actos que praticam em juízo.
Permitimo-nos seguir aqui de perto o recente Acórdão do STJ, de 24 de Maio de 2004, cujo Relator é o Conselheiro Neves Ribeiro e no qual se pode ler: «Se é salutar a cooperação entre as partes, também se afigura importante a criação e desenvolvimento de uma cultura judiciária de responsabilidade, e de saber, que não tenha no juiz o limite corrector dessa responsabilidade (ou irresponsabilidade: inconsciente ou provocada) ou desse saber (ou ignorância: inconsciente ou provocada), quando se está perante uma clara ausência de um preceito legal, e de processo, que permita contar com a ajuda dos outros, suprindo faltas processuais graves, essenciais ao objecto do conhecimento, exactamente do que se pede ao tribunal, que conheça».
E continua o referido Acórdão: «Em desfavor destas - das pessoas - vulgariza-se o princípio, igualmente respeitável, da preclusão processual civil, agravando o factor da incerteza do tempo da definição do direito; e introduz-se uma pedagogia processual negativa, a benefício do arbítrio ao convite, do uso e do abuso, sem critério, que em nada abona a confiança, a celeridade e a prontidão da justiça, acabando por conferir a esta, a imagem perigosa geradora do "deixar andar" ou do "erra que o juiz corrige!".
O princípio da cooperação tem assim de ser temperado pelo princípio da responsabilidade das partes, não podendo estas esperar que o juiz tudo venha a suprir (tanto mais que o juiz não pode ser visto como o depositário da sabedoria infinita, que tudo sabe e tudo resolve, suprindo as lacunas das partes).
Aceitamos que o juiz pode e deve, segundo o seu prudente critério, sempre que se lhe afigure que face aos elementos dos articulados não será possível obter uma justa decisão definitiva sobre o mérito da causa, proferir um despacho convidando ao aperfeiçoamento.
Porém, se o Juiz não se apercebeu dessas deficiências ou se entendeu (ainda que erradamente) que os elementos constantes dos autos, designadamente os factos articulados e os documentos juntos são aqueles que efectivamente o Autor pretendeu (e que outros não tinha, até face à ausência de resposta à contestação) e perante eles profere decisão conhecendo do mérito, afigura-se-nos que nenhuma omissão foi cometida.
Nenhuma nulidade é cometida com essa pretensa omissão.”.

Trazemos aqui à colação o artº 508º, portanto, apenas para dizer que o uso da previsão desse normativo legal sempre constituía um mais de que podia socorrer-se o tribunal a quo -- podia e devia, caso entendesse não percepcionar com nitidez a factualidade alegada integrante da causa de pedir, isto é, que ocorria deficiência na alegação factual vertida na petição inicial.
No entanto, repete-se, não cremos que fosse, sequer, necessário lançar mão do aludido normativo, pois nos parece que a factualidade alegada, consubstanciadora da invocada causa de pedir, será suficiente e está em sintonia ou coerência com o(s) respectivo(s) pedido(s) formulado(s) pelos AA.
Os autores alegaram factualidade que, no seu entender, preenche os pressupostos da obrigação de restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa (ut artº 473º-1 CC). Saber se essa factualidade—a provar-se-- levará, ou não, à procedência total do pedido, é questão que tem a ver já com o fundo ou mérito da causa, mas que de forma alguma traduz o vício da falta de causa petendi aludido na al. a) do nº1 do artº 193º CPC, vício este que foi o único sustentáculo à decisão a quo.

Cremos, por isso, que se impunha o prosseguimento dos autos para apuramento da factualidade já alegada—e outra na sequência de eventual convite da Mmª Juíza, caso o entendesse necessário, nos sobreditos termos --, quer na petição inicial, quer na contestação, desde que com interesse para a questão controvertida.
Quanto à repercussão que a decisão proferida nos autos de acção ordinária nº ./2000, supra referidos, possa eventualmente vir a ter nesta acção, é questão que ultrapassa o âmbito deste agravo e que, como tal, não nos cumpre apreciar.
Anote-se apenas que – como se refere na sentença proferida naqueles autos (cfr. fls. 152)—já nessa primeira acção a alegação da matéria de facto pelos Autores era “algo ambígua”, de forma a tornar “impossível definir os verdadeiros contornos do acordo”. O que levou o Mmº Juiz a ali “desabafar” que, por isso, “o resultado da prova é o que se vê”.
Assim, até pelo aludido precedente, impunha-se que o tribunal a quo não voltasse a cair no mesmo erro, deixando, de novo, avançar o processo sem suprimento das eventuais ambiguidades ou deficiências “na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” (ut nº 3 do artº 508º CPC) que entendesse poderem vir a afectar irremediavelmente o desfecho da demanda.

Procede, assim, a questão suscitada pelos agravantes.

CONCLUINDO:
- O artº 508º do CPC constitui exemplo paradigmático de que na actual lei adjectiva civil se procurou colocar o acento tónico na supremacia do direito substantivo sobre o processual, nos princípios da cooperação e da descoberta da verdade material e justa composição do litígio, designadamente despindo-se esse princípio da cooperação dos seus anteriores rigores formais.
- Consubstancia tal normativo um poder/dever do tribunal que se insere no poder mais amplo de direcção do processo e princípio do inquisitório previstos no artº 265º CPC, impedindo que razões de forma impeçam a obtenção de direitos materiais legítimos das partes.
- Porém, isso não significa que exista uma imposição ou obrigação, antes se trata de despacho que o juiz proferirá no seu prudente critério, não vinculado, portanto. E daí, também, que a sua omissão não gera qualquer nulidade processual e não é sindicável por via recursiva.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro a determinar o prosseguimento dos ulteriores termos da acção.

Sem custas.
Porto, 7 de Dezembro de 2006
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves