Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0553750
Nº Convencional: JTRP00038317
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: AVALISTA
EMBARGOS DE EXECUTADO
CRÉDITO AO CONSUMO
Nº do Documento: RP200507110553750
Data do Acordão: 07/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: I - No contrato de crédito ao consumo havendo cláusula de reserva de propriedade a favor da sociedade vendedora e não se tendo provado qualquer relação de “cooperação comercial” ou outra, entre tal sociedade e a entidade financiadora da aquisição, não pode, em regra, a vendedora transmitir para a financiadora da aquisição do bem a crédito, a cláusula de reserva de propriedade.
II - A cláusula de reserva de propriedade não segue o regime de transmissibilidade quer do penhor, quer da hipoteca.
III - O avalista não pode opor ao terceiro portador do título cambiário os meios de defesa que, no caso, competiriam ao subscritor avalizado, excepção feita ao pagamento.
IV - Actua com abuso do direito a financiadora da aquisição que, apesar de credora de prestações pecuniárias em mora, se apodera do bem cuja compra financiou e o vende sem autorização do comprador-financiado – invocando a seu favor cláusula de reserva de propriedade – mais as mais se tal “acção directa” não foi precedida da resolução do contrato.
V - A sanção para tal conduta abusiva conduz a que a exequente-financiadora abata, no preço em dívida pelo executado, a quantia que arrecadou em função de tal venda, reduzindo-se nessa medida o montante exequendo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B.........., deduziu, em 25.11.2003, pelo .. Juízo Cível da Comarca do Porto, Embargos de Executado contra:

C.........., S.A”.

Pedindo que se declare extinta a acção executiva.

Para tal alegou, em suma que:

- a embargada, sem sua autorização, procedeu ao levantamento da motorizada (cuja aquisição foi financiada pela própria), tendo-a vendido por um preço inferior ao seu valor real;

- o valor real dessa motorizada ascendia a € 4.500 euros e a mesma foi vendida por um valor inferior;

- em 3.1.2001 a quantia em dívida, nos termos desse acordo celebrado com a embargada, era de € 1.196,04, sendo certo que, no seu entender, a resolução desse acordo ocorreu em 9.4.2003 e não em 3.1.01.

- a resolução do contrato ocorreu após a embargada ter violado o contrato, já que após Abril de 2000, alienou o bem cuja aquisição foi financiada.

- afirma por fim que o mutuário faleceu na pendência desse contrato, quando tinha celebrado um seguro de vida a favor da embargada pelo que a quantia em causa deve ser liquidada por essa seguradora.

Termina, por isso, pedindo a extinção da execução pela procedência dos embargos.

Regularmente notificada, a embargada a contestou negando a veracidade dos factos alegados e dizendo que o valor da venda desse veículo foi integralmente aplicado na amortização (e não liquidação) do montante em divida.

Por outro lado, afirma que a entrega desse veículo foi voluntária, e que o preço de venda desse veículo (€ 2.348,09) correspondeu ao valor corrente do mercado de usados para profissionais.

Esclareceu, também, que a carta de 3.1.2001 não visou proceder a qualquer resolução do contrato mas apenas informar o valor em dívida nessa data.

No seu entender a resolução do contrato ocorreu em 9.4.2003, sendo que o valor em dívida era o peticionado na livrança.

Termos em que termina pedindo a improcedência dos embargos.

Foi saneada a causa e elaborada base instrutória sem qualquer reclamação.

Após instrução o Tribunal procedeu a audiência de discussão e julgamento de acordo com o formalismo legal, finda a qual, proferiu despacho a decidir as questões de facto formuladas, sem qualquer censura.
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A final foi proferida sentença que julgou os embargos de executado parcialmente procedente, determinando o prosseguimento da execução principal por forma a obter o pagamento da quantia exequenda de € 6.514,93 (seis mil quinhentos e catorze euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros à taxa de 4%, desde a data de vencimento da livrança até integral pagamento.
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Inconformados, recorreram a executada/embargante B.......... e a exequente/embargada “C.........., S.A.”.
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Nas alegações apresentadas a embargante formulou as seguintes conclusões:

A) - Deverá ser alterada a sentença, não obstante ser douta e bem fundamentada, na parte em que julga os embargos de executado apresentados, parcialmente improcedentes e que, por esse facto, continua a acção executiva principal, a exigir da recorrente o pagamento da quantia de € 6.514,93, acrescida de juros á taxa legal de 4% desde a data de vencimento da livrança, até integral pagamento.

B) - Em face do contrato de financiamento para aquisição de bens duradouros, celebrado no dia 30 de Abril do ano de 1999, entre o mutuário / executado, D.........., e a recorrida C.........., S.A., por via do qual esta concedeu ao mutuário a quantia de € 5.486,77 para este adquirir uma moto usada de marca Kawasaki, modelo .........., com a matricula ..-..-CE, a liquidar em 48 prestações iguais, mensais e sucessivas de € 176,89 cada uma, excepto a primeira,

C) - Por via do qual a recorrida, como garantia tinha, fiadores, entre as quais a recorrente, a subscrição de uma livrança, em branco, pelo mutuário e avalizada pela recorrente, reserva de propriedade sobre o bem a adquirir através daquele contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo.

D) - Pelo facto de o mutuário D.......... ter algumas prestações daquela contrato em mora, desconhecendo-se quantas, a recorrida, no mês de Abril do ano de 2000, recuperou a mota que o mutuário adquiriu através daquele contrato de financiamento para aquisição de bens do consumo,

E) - Mas recuperou a mota, sem o acordo ou consentimento do mutuário, que a não entregou voluntariamente, antes á sua revelia, ou seja, a mesma foi-lhe abruptamente retirada á sua posse.

F) - A recorrida, uma vez na posse da mesma, e porque detinha reserva de propriedade sobre a mesma, vendeu-a a terceiros, no dia 13 de Abril do ano de 2000.

G) - Só em 3 de Janeiro do ano de 2001, ou em Abril do ano 2003, em todo o caso, só muito posteriormente à recuperação da mota e da sua venda a terceiros, é que a recorrida concede um prazo ao mutuário para regularizar as prestações em dívida, sob pena de resolução do contrato, e que o tem por resolvido.

H) - Foi a recorrida quem não cumpriu o contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo, com base no qual preencheu e peticionou os valores nela inscritos, pois a recorrida retirou a posse e vendeu a mota objecto daquele financiamento ao mutuário, muito antes da resolução do contrato.

I) - Quando o mesmo estava em mora, mas era ainda possível a sua manutenção, por se manter o interesse no mesmo, pois, quer em 3.01.2001, quer em Abril de 2003, a recorrida concede, como estipulado contratualmente, um prazo para regularizar as quantias em dividas, e só se o não fizer considera resolvido o contrato, isto é, só nesse caso perde o interesse definitivo no mesmo.

J) - Que sucederia se, perante tal convite á regularização, o mutuário efectuasse tal regularização. Já a recorrida nada teria para oferecer ao mutuário, designadamente, já não teria em seu poder o bem objecto daquele financiamento.

K) - Deveria, primeiramente á recuperação e venda do bem financiado, a recorrida ter concedido ao mutuário / executado marco prazo para regularizar o contrato, e só caso ele o não fizesse, considerar resolvido o contrato, pela perda do interesse na manutenção do mesmo, e finalmente, pela via judicial, se não entregue voluntariamente, recuperado a moto.

L) - Foi, por isso, a recorrida quem deu causa ao mutuário/executado D.......... para deixar de cumprir o contrato, e por isso o quantia de € 9.005,35, que apôs na livrança em execução, ou até a quantia de € 6.514,93, a que se ateve a sentença de que se recorre, não são devidas.

M) - E por isso, o mutuário D.......... nada deve á recorrida, e por inerência, nada deve a recorrente, seja na qualidade de fiadora do contrato que originou a emissão da livrança em execução, da qual é avalista, seja nesta qualidade.

Nestes termos e nos mais de direito, deverá proceder o presente recurso e, em consequência, ser alterada a douta sentença recorrida por uma outra que considere os embargos de executado inteiramente procedentes pelas razões vindas de invocar, e assim se fará, na opinião da recorrente, inteira Justiça.
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A recorrente C.........., S.A. culminou as suas alegações com as seguintes conclusões:

I) - A douta sentença em crise parte de um vício de raciocínio que a invalida no seu todo, que é o de considerar que a resolução do contrato de financiamento dos autos ocorreu em 3.1.2001., quando é certo que a Embargada e Embargante reconhecem nos seus articulados que a resolução do contrato ocorreu em 09.04.2003.

II) – A carta enviada em 03.01.2001 é um convite à regularização de uma situação de incumprimento, não configurando uma resolução contratual, antes a possibilidade dada aos mutuários para a regularização do contrato e a manutenção daquele vínculo.

III) – A venda ou alienação do bem financiado, não implica que o contrato de financiamento deixe de produzir efeitos, pois, embora conexos, este é completamente distinto e autónomo daquele outro contrato de compra e venda relativo ao bem financiado, cujo objecto é o motociclo identificado nos autos.

IV) – O valor comercial da mota tem um carácter meramente indicativo e de referência, não tendo esse valor qualquer outra leitura que não esse, interessando apenas o valor efectivo da venda, no valor de € 2.348,09, provado nos autos.

V) - O interesse da venda da mota pelo maior valor possível parte precisamente d recorrida, pois, quanto mais depressa e melhor vender o bem, mais depressa obtém pagamento da dívida, que até à data não logrou obter.

VI) – As citações doutrinais e de direito comparado constantes da douta sentença referem-se à compra e venda internacional de mercadorias sem qualquer conexão com o contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros do autos regulado por lei específica, distinto e autónomo do contrato de compra e venda e de toda a sua regulamentação jurídica.

VII) – A douta sentença em crise parte de um duplo vício de raciocínio que é o de considerar que a resolução ocorreu em Janeiro de 2001 e não em Abril de 2003 e que o montante da dívida à data da alegada resolução ocorrida em 3.1.2001 era de € 4.697,65, o que implica que a liquidação da dívida efectuada na douta sentença não seja a correcta.

VIII) – A douta sentença recorrida é nula, nos termos do art. 668°, nº1, do Código de Processo Civil por não especificar os fundamentos de facto que a levaram a concluir que o valor de € 14.697,65 representa o valor da dívida dos mutuários à data de 03.01.2001.

IX) – A douta sentença recorrida violou, entre outras, as normas constantes dos art. 432° do Código Civil e art. 668°, nº1, do Código de Processo Civil.

X) - Como tal, deverá ser substituída por Douto Acórdão que, julgando os embargos de executado totalmente improcedentes, ordene o prosseguimento da execução pelo valor peticionado no requerimento executivo.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se os embargos de executado totalmente improcedentes, ordene o prosseguimento da execução pelo valor peticionado no requerimento executivo.

Dessa forma, e como sempre, será feita inteira e sã Justiça.

Os recorrentes contra-alegaram.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir tendo em conta a seguinte matéria de facto:

1) - A exequente é portadora de uma livrança, na qual constam os seguintes dizeres:

- Vencimento: 03.05.11;
- Local e data de emissão: Porto 03.04.21;
- Importância: € 9.005,3
[conforme doc. de fls. 4, dos autos principais e cujo restante teor se dá por reproduzido] – (facto assente a).

2) - Essa livrança foi entregue à embargada com os restantes elementos do seu rosto, com excepção das assinaturas por preencher, como garantia do cumprimento de um contrato celebrado com os embargantes, constante de fls. 16 cujo restante teor se dá por reproduzido – (facto assente b).

3) - Nesse acordo a embargada comprometeu-se a financiar a aquisição de uma motorizada marca Kawasaki, modelo .........., de 1999, matrícula ..-..-CE, no valor global de 1.100.000$00, mediante a restituição desse capital acrescido de juros à TAEG de 26,13 %, em 48 prestações mensais de 35.464$00, perfazendo o montante de 1.732.272$00 – (facto assente c).

4) - Na cláusula 14ª desse acordo ficou estabelecido que “Os mutuários e avalistas autorizam expressamente a C.........., S.A. a preencher os títulos de crédito (...), designadamente no que respeita às datas de emissão e de vencimento, ao local de pagamento, ao valor e à importância” – (facto assente d).

5) - Nos termos desse acordo a embargante, enquanto avalista, comprometeu-se a garantir o pagamento de cada uma dessas prestações na data do respectivo vencimento – (facto assente e).

6) - As 48 prestações desse acordo venciam-se em 5.6.1999, e no mesmo dia dos meses seguintes – (facto assente f).

7) - Em Abril de 2000 a embargada recuperou a motorizada referida em C) – (facto assente g).

8) - Essa mota foi vendida pela embargada pelo valor de 2.348,09 euros, em 13.4.2000 – (facto assente h).

9) - Em 3.1.2001 a embargada enviou a carta de fls. 19, ao executado D.........., cujo restante teor se dá por reproduzido, na qual afirmou que se não regularizar de imediato a situação de incumprimento, que abaixo se descreve (...) consideramos vencido a totalidade do crédito” – (facto assente i).

10) – O executado D.......... faleceu em 20.7.2001 – (facto assente j).

11) - Na data da venda, o valor comercial da mota no mercado de veículos usados era de € 4.000 a 4.500 – (resp. facto nº1).

12) - A embargante propôs à embargada conseguir um comprador para a mesma pelo valor de € 4.000 – (resp. facto nº2).

13) - A embargada nunca comunicou aos embargantes os preços de venda dessa motorizada – (resp. facto nº4).

14- A embargada comunicou aos embargantes, em Abril de 2003, que face ao não pagamento das prestações procederia à “resolução” do acordo referido em C) – (resp. facto nº8).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações da recorrente que, em regra, se afere do objecto o recurso, a embargante sustenta que nada deve pagar pelo facto do contrato celebrado entre o executado D.......... e a exequente ter sido definitivamente incumprido por esta.

Vejamos:

A embargante, ora recorrente, como se alcança da livrança de fls. 175, deu o seu aval ao subscritor D.........., no âmbito de um contrato de crédito ao consumo – DL. 359/91, de 21 de Setembro – em que aquele, para aquisição de uma motorizada, pelo preço total de 1.732.272$00, contratou com a exequente um financiamento a pagar em 48 mensalidades.

Para garantia das obrigações do mutuário foi acordada a prestação de aval cambiário pela ora embargante que deu o seu acordo à – C.........., S.A. – para em caso de incumprimento do subscritor, preencher a livrança apondo-lhe a data da emissão, vencimento, e valor em dívida.

Estamos perante livrança em branco com estipulação de pacto de preenchimento.

A livrança em branco é um título que se destina a ser preenchido de harmonia com um contrato de preenchimento.

No caso dos embargos, a embargante entrou a discutir, não a violação do pacto de preenchimento estabelecido entre ela e a tomadora C.........., S.A., mas a relação subjacente ou extracartular, que teve como sujeitos o mutuário do financiamento e a C.........., S.A. financiadora.

Apesar de não ser esta a causa de pedir, a sentença proferida nos embargos não versou sobre a alegada responsabilidade da avalista/embargante no contexto da violação do pacto de preenchimento da livrança, mas, desenvolvidamente, apreciou a questão como se se tratasse de acção declarativa, em que se discutisse o incumprimento do contrato por parte da exequente, não enquanto tal, mas como mutuante do crédito.

Com o devido respeito, tal perspectiva de abordagem da questão dos embargos contagiou embargante e embargado que, no recurso, desfocam a questão que devia ser dirimida no contexto cambiário e na responsabilidade do avalista e seus meios de defesa, para na perspectiva da sentença, a porem em crise reportando-se a à relação extracartular.

Por isso e sem embargo de algumas consideração que “a latere” faremos sobre a relação extracartular, enfocaremos a decisão na perspectiva que reputamos correcta, em função do título executivo e da causa a pedir nele envasada – a responsabilidade da avalista e saber que meios pode opor enquanto tal.

Assim:

“Livrança em branco é aquela a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais mencionados no art. 75° da LULL, destinando-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado “acordo ou pacto de preenchimento”.
Esse acordo pode ser expresso – quando as partes estipularam certos termos em concreto – ou tácito – por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.
O título deverá ser preenchido de harmonia com tais estipulações ou cláusulas negociais, sob pena de vir a ser considerado tal preenchimento como “abusivo”.
O ónus da prova desse preenchimento abusivo impende, nos termos do artigo 342° nº 2 do Código Civil, sobre o obrigado cambiário, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito” – Acórdão do STJ, de 11.11.2004, in www.dgsi.pt de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Dr. Ferreira de Almeida.

Essa livrança em branco, visou garantir à C.........., S.A., o cumprimento do mutuário do financiamento e, como consta da Cláusula 14ª, nº3, do contrato de fls.41 e verso, a avalista “sem necessidade de novo consentimento autoriza expressamente a C.........., S.A. a preencher e a completar os títulos de crédito que lhes entregaram … não integralmente preenchidos, nomeadamente quanto á data, local de pagamento e valor o qual corresponderá ao saldo em dívida de capital, juros de mora e demais encargos e despesas emergentes do contrato, podendo a C.........., S.A. fazer o uso que quiser na defesa do seu crédito…”.

A embargante não sendo sujeito da relação extracartular, mas simples avalista, não pode opor à exequente as excepções pessoais dela como garante.

O avalista não pode opor, como meio de defesa ao primeiro portador do título, os meios de defesa que, no caso, competiriam ao subscritor avalizado, excepção feita ao pagamento.

O aval é, nos termos do art. 30° da LULL, o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra (ou livrança) garante o pagamento desse título, por parte de um dos respectivos subscritores.

O Professor Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial”, vol. III, 1956, pág. 197 e segs., defende que a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado, mas solidária, pelo que o avalista não goza do benefício da excussão prévia.

Nos termos do § 2° do art. 32° a obrigação do avalista mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

O aval se não confunde com a fiança, não obstante admitir a natureza garantística do primeiro, cuja acessoriedade, por tais razões, apelidou de “imprópria” (obra citada págs. 200/201.

“O aval representa, desse modo, um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma de honrar o título, ainda que só caucione outro co-subscritor do mesmo – princípio da independência do aval - (art. 32°, aplicável “ex-vi” do art. 77°, ambos da LULL)” – cfr. Acórdão citado.

Em nota ao art. 32º da LULL - “Letras e Livranças” - França Pitão, pág. 196, pode ler-se:

“[…] Mas sendo a autonomia do aval a regra – e não a acessoriedade – então não se justifica, como entende a doutrina de longe prevalente (apud. Paulo Sendim, “Letra de Câmbio”, Vol. II, págs. 834 e segs.) que o avalista possa defender-se com a excepção … do avalizado, salvo, ao que parece, a do pagamento.
Em suma: não é viável recorrer-se à ideia de acessoriedade – que não tem…”.

Ora, o que a embargante faz nos embargos é opor meios de defesa que competiriam ao avalizado, como sejam a resolução do contrato de que discutem a data e a impossibilidade de cumprimento da obrigação por conduta abusiva da embargante.

Apenas, por mera cautela, cumpre dizer que, ao invés do sentenciado a resolução do contrato, ocorreu em Abril de 2003, como mais adiante explicitaremos.

A embargante escreveu ao mutuário uma carta, datada de 3.1.2000, tendo por assunto o contrato de mútuo e a resolução do contrato, mas do seu teor literal, resulta uma intimação para pagar de imediato as prestações em dívida, advertindo se, caso tal não acontecesse, “consideramos vencida a totalidade do crédito e consequentemente preencheremos a Livrança na nossa posse”.

Ora, na interpretação que fazemos, pese embora se aludir a “resolução do contrato” o que a carta verdadeiramente encerra é intimação para pagamento, sob pena de vencimento imediato da dívida e preenchimento da livrança.

Com efeito, sendo a dívida – o mútuo – amortizável em prestações, o incumprimento do devedor implicava a perda do benefício do prazo.

O art. 779º do Código Civil (Beneficiário do prazo) estabelece:

“O prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente”.

Se se considerar o crédito ao consumo como mero contrato de mútuo, hipótese que não subscrevemos, o prazo ter-se-ia por estipulado a favor do credor e do devedor – art. 1147º do Código Civil.

Mas, dada a finalidade e o objectivo de tal contrato, ligado ao de compra e venda, temos que, no caso, o benefício do prazo é estabelecido a favor do devedor.

Ademais, nos termos do art. 781º do Código Civil – “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.

“No caso previsto neste artigo o credor tem de interpelar o devedor para exigir antecipadamente as prestações vincendas” – Almeida Costa, Obrigações, 4ª, 716.
A disciplina deste artigo só se aplica às obrigações de prestação fraccionada — quando se trata de simples cumprimentos parciais de uma mesma dívida; e nunca quando a situação se analise em diferentes dívidas que se vão sucedendo no tempo, embora relacionadas entre si (ob. cit., 717)”.

Tal carta não foi a exigida para comunicação da resolução do contrato, desde logo, por não se quadrar ao preceituado para a resolução, na Cláusula 13ª e seu nº2, que obriga à notificação do mutuário com a antecedência de 10 dias.

No que concerne à interpretação da declaração negocial rege o art. 236º do Código Civil que dispõe:

“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

“Na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, "a vontade real do declarante", sempre que for conhecida do declaratário.
Faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)”. – Ac. do STJ, de 14.1.1997, in CJSTJ, 1997, 1, 47.

O declaratário normal deve ser uma pessoa com “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” – Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita”, 1995, 208.

Um declaratário normal colocado na posição do real declaratário – o executado D.......... – dado o contexto pré-negocial e a execução do contrato teria de concluir que a carta de 3.1.2001 apenas visava compeli-lo a pagar imediatamente as prestações em atraso, sob pena da exequente preencher a livrança, e não sob pena de resolução do contrato.

A resolução do contrato operou em Abril de 2003 – como resulta, até, da resposta ao quesito 8º.

Argumenta a embargante com o facto da embargada, estando o mutuário em mora, ter recuperado a motorizada, em Abril de 2000, sem autorização daquele, acabando por vendê-la, em 13.4.2000, pelo valor de € 2.348,09, daí concluindo que, mesmo que fosse posto termo à mora com o pagamento, a prestação se tinha tornado impossível face à actuação da embargada.

Repetimos que esta defesa é incompatível com a qualidade em que a apelante é demandada – a de avalista – já que se trata de defesa pessoal do subscritor da livrança.

Por outro lado, a impossibilidade da obrigação em relação à C.........., S.A. não está na fruição da motorizada, mas antes na obrigação do pagamento do financiamento, pelo que a conduta da embargada sendo insólita, dizemos, – já que recorreu à acção directa para se apoderar da motorizada, não interferiu no pactuado entre o financiado e a financiadora.

Neste ponto importa referir que consta do contrato que a favor da C.........., S.A. foi estabelecida cláusula de reserva de propriedade.

A cláusula de reserva de propriedade é estabelecida a favor do vendedor como forma de garantir o pagamento integral, funcionando em relação ao contrato como condição suspensiva – a propriedade do bem, só é adquirida pelo comprador com reserva de propriedade, se e quando tiver pago, integralmente, o preço ao vendedor.

O art. 409º do Código Civil (Reserva da propriedade) estatui:

“1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros”.

“No caso de venda de veículo automóvel, com reserva de propriedade, o vendedor continua a ser o proprietário, já que o negócio se considera celebrado sob condição suspensiva (pagamento integral do preço) - art. 409°, n.º1, do Código Civil” - Acórdão do STJ, de 8.1.1991, in BMJ 403-327.

Ora se o vendedor estivesse numa relação de cooperação comercial com a financiadora da aquisição do bem, poder-se-ia admitir que ela mesmo beneficiasse da reserva de propriedade até ao integral pagamento, já que a parte final do nº1 do art. 409º do Código Civil, mantém a eficácia da cláusula até “à verificação de qualquer outro evento”, que no caso poderia ser o pagamento da dívida à financeira.

Mas tal interligação, entre o vendedor do bem e a entidade que financiou a aquisição, não se acha demonstrada nos autos o que, a nosso ver, torna dificilmente defensável a estipulação de tal cláusula a favor de quem não foi vendedor.

Mas a transmissão da reserva de propriedade não segue o regime de transmissibilidade do penhor ou da hipoteca – arts. 676º e 727º do Código Civil.

Acerca da (in)transmissibilidade da reserva de propriedade, concluindo pela sua inadmissibilidade, o Professor Pinto Duarte, in “Alguns Aspectos Jurídicos dos Contratos Não Bancários de Aquisição e Uso de Bens”, in Revista da Banca, n°22, pág. 54, escreveu:

“…Seguindo o entendimento tradicional de que a reserva de propriedade nada mais é do que uma cláusula contratual que difere a transmissão da propriedade para momento posterior ao do contrato (e eventualmente a subordina a algo), a reserva não gera um direito diverso do de propriedade e, portanto, a reserva, em si mesma, não é transmissível.
O que é facto, porém, é que as situações de créditos garantidos pela reserva de propriedade são tendencialmente equivalentes às de créditos garantidos por garantias reais transmissíveis (hipoteca e penhor, nomeadamente) e que, para que essa equivalência fosse consequente, a reserva deveria ser transmissível como aquelas garantias o são.
Isto é: se um crédito garantido por um penhor ou uma hipoteca é transmissível conjuntamente com o penhor ou a hipoteca, a situação de garantia de créditos através da reserva de propriedade, para ser equivalente àquelas, deveria ser transmissível em termos paralelos.
Na ausência de disposição legal sobre o ponto e tendo em conta o artigo 409° do Código Civil, não parece que tal transmissibilidade exista.
Noutros direitos, nomeadamente o alemão, porém, a reserva é tida por transmissível” […].
“A reserva de propriedade é tratada como um ónus, ou seja, o adquirente sob reserva é tratado como proprietário e o alienante como titular de um direito de garantia sobre o bem em causa”.(sublinhámos).

É certo que o art.6º, nº3, f) do DL.359/91, de 21.9 (crédito ao consumo) – estabelece:

“O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda… O acordo sobre a reserva de propriedade”.

Cremos que este normativo apenas obriga a tal indicação, no caso previsto no art. 12º nº1 do citado diploma, que prevê a existência de conexão comercial entre o vendedor e a entidade financiadora, já que aí, a cláusula de reserva de propriedade constitui uma garantia que directamente beneficia o vendedor e, indirectamente a financiadora, que tem interesse em que o contrato seja pontualmente cumprido, já que podem até pertencer ao mesmo grupo económico. [“1. Se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito. 2. O consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições: a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último; b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior. 3- O disposto nos números anteriores é aplicável, com as necessárias adaptações, aos créditos concedidos para financiar o pagamento do preço de um serviço prestado por terceiro.”]

Como a hipótese dos autos não é essa – nenhuma prova se fez a tal respeito – temos que concluir que a inserção de tal cláusula de reserva de propriedade nunca poderia beneficiar em termos de “garantia” a embargada.

A “acção directa” de que lançou mão para se apoderar da motorizada e vendê-la, apenas poderia ser discutida pelo subscritor da livrança – os seus herdeiros já que faleceu – e não pela avalista, no contexto da relação cambiária.

Todavia, tendo-se provado que a motorizada foi vendida, em 13.4.2000, pela embargante, o produto dessa venda deve ser amortizado à divida do executado e garantes, no caso a embargante, sob pena de manifesto abuso do direito – art. 334º do Código Civil.

Se a embargada fosse admitida a peticionar a totalidade da dívida, tendo já obtido pela venda, parte do preço, que como resulta de toda a sua actuação, se destinava a amortizar as prestações em mora, sairiam violados os princípios da boa-fé e o sentimento de justiça ínsitos no agir de boa-fé, com lisura, e na ponderação de interesses do outro contraente.

A sanção para a conduta abusiva do direito, no caso em apreço, deve reflectir-se na exoneração dos obrigados cambiários, no pagamento da quantia arrecadada pela exequente pela venda (independentemente da sua legalidade).

Assim, ao valor da dívida exequenda – onde se incluem as prestações em dívida e as consequências legais e contratuais resultantes da violação do contrato – deve ser abatido aquele montante.

Improcede, neste entendimento, o recurso da embargante, já que pretendia ver julgados os embargos totalmente procedentes.

Quanto ao recurso da Embargada.

Em função das conclusões das suas alegações a questão a decidir é saber se a embargante deve ser responsabilizada pelo pagamento integral da quantia exequenda – € 9.116,87, acrescida dos juros de mora vincendos, contados à taxa legal e se a sentença e nula, por omissão de fundamentação, ao decidir que a dívida dos mutuários é de € 4.697,65 à data de 3.1.2001, considerada na sentença recorrida a data da resolução do contrato.

Sobre a 1ª questão colocada no recurso da embargada, por já ter sido antes abordada no recurso da embargante, remetemos para quanto aí foi dito, reconhecendo que a resolução do contrato ocorreu em Abril de 2003 e que ao valor exequendo deve ser abatido o montante arrecadado pela embargada pela venda da motorizada – tendo em conta a data em que tal ocorreu.

Quanto à nulidade – art. 668º, nº1, b) do Código de Processo Civil.

Tal normativo estabelece que é nula a sentença “quando não especifique os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão”.

Salvo o devido respeito a sentença indica os fundamentos que serviram de base à referida indicação –cfr. fls.122 e 113.

O recurso merece provimento parcial.

Decisão:

Nestes termos acorda-se em:

1. Julgar improcedente o recurso da executada/embargante.

2. Julgar parcialmente procedente o recurso da embargada, revogando a sentença recorrida, decretando que a execução deve prosseguir devendo ser abatida à quantia exequenda o valor de € 2.348,09, resultante da venda da motorizada, em 13.4.2000, consignando-se que a resolução do contrato ocorreu, em Abril de 2003.

As custas do recurso da embargante serão por si suportadas.

As custas do recurso da embargada serão suportadas, por si e pela embargante, na proporção do decaimento, tal como as dos embargos.

Porto, 11 de Julho de 2005
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale