Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0846092
Nº Convencional: JTRP00041944
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: DIFAMAÇÃO
PROVA DA VERDADE DOS FACTOS
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP200812100846092
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REENVIADO O PROCESSO.
Indicações Eventuais: LIVRO 345 - FLS 74.
Área Temática: .
Sumário: Não se aplica o princípio in dubio pro reo em relação à prova da verdade dos factos no âmbito da alínea b) do nº 2 do art. 180º do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 6092/08-04

Relator - Ernesto Nascimento.


Processo comum singular …/07.1PASJM do .º Juízo do Tribunal Judicial de S. João da Madeira



Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I.1. No processo supra em epígrafe identificado, foram os arguidos B………., C………. e D………., submetidos a julgamento, depois de acusados pelo MP, pela prática, enquanto co-autores materiais, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º/1 e 184º, por referência ao artigo 132º/2 alínea l), todos do C Penal, tendo a final sido, todos eles, absolvidos.

I. 2. Inconformado, com o assim decidido, interpôs o Magistrado do MP, o presente recurso, sustentando as seguintes conclusões:

1. o Tribunal a quo absolveu os arguidos B………., C………. e D………. da prática do crime de difamação agravada de que vinham acusados, em co-autoria material;
2. não o fez por ter optado por uma das versões apresentadas em sede de audiência de julgamento, ou por insuficiência de prova no que toca aos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal pelo qual os arguidos vinham acusadas;
3. com efeito, o Tribunal considerou encontrarem-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de difamação agravada;
4. porém, veio dizer que, na impossibilidade de optar por uma das versões apresentadas - a dos arguidos, ou a do ofendido - porque igualmente credíveis, não poderia condenar os mesmos;
5. não vemos porquê;
6. dado por assente que as expressões produzidas pelos arguidos são ofensivas da honra e da consideração do agente E………. (o que os mesmos sabiam), apenas uma eventual ocorrência de uma causa de justificação seria susceptível de excluir a antijuridicidade do comportamento protagonizado pelos arguidos;
7. porém, para que se possa verificar se a situação em análise se mostra abrangida pelo nº. 2 do artigo 180º do C. Penal, exige-se que estejamos perante uma imputação de factos, não se mostrando abarcada pela norma a formulação de juízos ofensivos, a atribuição de epítetos ou palavras a que se alude no crime de injúrias, bem como a imputação de factos genéricos ou abstractos (nesse sentido, vd., entre outros, o Ac. da RC. de 23 de Abril de 2008, CJ, XX. III, Tomo II, 64, o Ac. da RG. de 11.10.2004, e o Ac. da RG. 8.01.2008, disponíveis in www.dgsi.pt);
8. ora, in casu, as expressões constantes de 9) dos factos provados substanciam verdadeiros juízos de valor, uma vez que têm ínsitas uma valoração que ultrapassa o juízo da realidade, transformando-se em juízo sobre o carácter e a actuação profissional do agente E………. enquanto agente de autoridade;
9. pelo que não poderia a situação em concreto considerar-se abrangida pela norma do nº. 2 do artigo 180º do C. Penal, a qual se mostra violada;
caso assim não se entenda, e se considere que, não obstante os "juízos conclusivos" constantes da participação, ainda assim, estes espelham os factos também na mesma descrita, sempre se dirá que:
10. os requisitos das alíneas a) e b) do nº. 2 do artigo 180º do C. Penal são cumulativos, como bem se deduz do uso da conjunção ”e” a interligá-las;
11. pelo que o interesse referido na alínea a) apenas se pode ter por legítimo" (e independentemente de ser um interesse privado ou público) se exactamente se der por provado, no caso concreto, o referido na alínea b) do n°. 2 do mesmo preceito legal;
12. isto é: invocando os arguidos que se limitaram a dar conhecimento ao superior hierárquico do ofendido de que o mesmo tinha actuado com grave abuso de autoridade, caso efectivamente tal tivesse resultado provado, outra não podia ser a conclusão que não esta: os arguidos haviam provado a verdade da imputação efectuada, pelo que o interesse prosseguido - o de dar conta de uma situação que não poderia existir, ao nível das forças policiais - seria inequivocamente legítimo;
13. ora, se não resulta provado comportamento por parte do agente que permita justificar a participação efectuada, temos sérias dúvidas que, nesta situação, se possa falar de um interesse legítimo;
14. nesse sentido, vd. o Ac. da RC. de 25 de Janeiro de 2006 (www.dgsi.pt), na parte em que refere "ao denunciar a situação descrita, caso a mesma seja verídica, atentos os valores em causa, a arguida cumpre um interesse legítimo";
15. assim, ao considerar não provado qualquer comportamento, por banda do agente E………., susceptível de justificar a actuação dos arguidos, não poderia o Tribunal a quo, sem mais, considerar verificado o preceituado no artigo 180º/2 alínea a) do C. Penal;
caso assim não se considere,
16. ainda que déssemos por assente que os arguidos tiveram por objectivo realizar um interesse legitimo, ainda assim, consideramos não se encontrar preenchido o requisito da alínea b) do nº. 2 do artigo 180° do C. Penal;
17. não pode, no nosso entender, aplicar-se o princípio in dubio pro reo a uma causa de exclusão da punibilidade;
18. com efeito, a materialização de tal princípio desdobra-se em dois vectores essenciais:
o primeiro é de que o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram um ilícito criminal cabe a quem acusa;
o outro consiste que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal deve decidir a favor arguido, (vd. nesse sentido, o Ac. da R.P. de 11.01.2006, disponível in www.dgsi.pt);
19. ora, não questionamos a aplicação deste princípio aos elementos do tipo legal de crime, nas suas vertentes objectiva e subjectiva; questionamos sim a sua aplicação aos elementos susceptíveis de excluir a punibilidade da conduta;
20. isto porque este princípio impõe-se ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, que nada mais são do que as condutas susceptíveis de se integrarem no tipo legal de crime;
21. por outro lado, o nº. 2 do artigo 180° do C. Penal, ao prever a não punibilidade da conduta exige expressamente que o agente prove a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento para, em boa fé, a reputar verdadeira (vd., entre outros, o Ac. do S.T.J. de 20 de Setembro de 1995, in CJ, III, Tomo 3, pág. 186; o Ac. da RC. de 19 de Junho de 1996, CJ, XXI, Tomo III, pág. 52); o Ac. do STJ de 8 de Abril de 1999, SASTJ, nº. 30, pág. 71); o Ac. da R.P. de 06.07.93, in www.dgsi.pt) e o Ac. da R.P. de 26.11.97, in www.dgsi.pt);
22. também o Ac. da RG. de 11.10.2004, disponível in www.dgsi.pt. na parte que ora interessa: “... passemos à questão da alegada causa de justificação a que se refere o artigo 180°/2 do C. Penal. Pois bem, relativamente a esta questão não há muito a dizer ... De facto, já anteriormente frisámos que o recorrente não logrou fazer prova dos pressupostos exigidos pelo citado preceito para que a punibilidade da difamação pudesse ser efectivamente excluída.
Daí que, tendo-se por assente que as imputações de facto e os juízos formulados pelo arguido nas circunstâncias que foram dadas como provadas são ofensivas da honra e consideração dos assistentes, e que nada se provou no sentido de excluir a antijuridicidade do comportamento protagonizado pelos arguido, então outra alternativa não resta senão a de considerar como preenchidos os crimes que eram imputados ao arguido.
Tanto basta para o considerar responsável pelos três crimes acusados, nos termos dos artigos 26° e 30°, do Código Penal, uma vez que o arguido não comprovou qualquer causa geral ou especial que excluísse a culpa ou a ilicitude do seu comportamento";
23. consideramos assim, que a dúvida quanto ao preenchimento da alínea b) do nº. 2 do artigo 180° do C. Penal não pode ter como consequência a absolvição dos arguidos, sob pena de se ultrapassar totalmente a letra e o espírito da lei;
24. ao concluir da forma que o fez, o Tribunal a quo violou o preceituado na alínea b) do n°. 2 do artigo 180° do C. Penal;
25. por fim, inexiste, no nosso entender qualquer “causa suplementar” de exclusão da ilicitude relativamente ao arguido D……….;
26. com efeito, a boa fé não pode significar uma pura convicção subjectiva na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva;
27. ao arguido, como Provedor da F………., entidade para a qual as arguidas exerciam actividade profissional, competia-lhe certificar-se da veracidade do escrito que assinava, tanto mais quando o mesmo não se encontrava presente aquando da ocorrência dos factos que terão motivado a participação;
28. impondo-se-lhe, até, um “dever acrescido” de se assegurar do que se havia passado, face às circunstâncias concretas;
29. pelo que, também este argumento não pode colher para fundamentar a "dupla absolvição" do arguido, mostrando-se violado o preceituado na alínea b) do nº. 2 do artigo 180° do C. Penal;
30. provando-se os elementos objectivos e subjectivos do crime que se indiciava, e a sua prática pelos arguidos, e não se provando qualquer causa susceptível de excluir a ilicitude ou a culpa da conduta, como entendemos que não se provou, deveriam os arguidos terem sido condenados como co-autores do crime de difamação agravada;
31. o que se peticiona;
32. ao absolver os arguidos, violou a sentença recorrida o disposto no artigo 180°/2 do C. Penal.

I. 3. Responderam os arguidos, pugnando pelo não provimento do recurso, sustentando as seguintes conclusões:

1. a douta sentença proferida nos autos deve ser de manter em toda a sua extensão, devendo o recurso da mesma interposto, ser julgado improcedente, pois que;
2. são de indeferir todas as suas conclusões;
3. pois não enferma de qualquer nulidade ou erro de apreciação e/ou fundamentação;
4. a sentença recorrida proferida e produzida no estrito respeito pelos princípios cognitivos, de imediação da prova, rigor de análise dos factos com incidência criminal e adequação do direito aplicável e aplicado;
5. faz plena e cuidada análise de toda a prova testemunhal junta aos autos;
6. não houve violação ou afrontamento das regras da experiência comum;
7. em consequência faz total e correcta aplicação do direito aplicável, de acordo com os critérios estabelecidos;
8. a motivação de recurso do MP alicerçada na violação do preceituado no artigo 180º/2 C Penal e tecendo considerações e interpretações subjectivas que não podem, nem devem conduzir a qualquer alteração da sentença recorrida;
9. certo é que o MP, ora recorrente, não logrou em sede própria fazer a prova dos elementos típicos constitutivos do crime de que os arguidos vinham acusados, tal como se infere da sua motivação;
10. tendo a sentença recorrida feito plena justiça;
11. assim, a sentença recorrida não viola o disposto no nº. 2 do artigo 180º C Penal;
12. termos em que, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida, farão Vs. Exas. inteira Justiça.

II. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se o Sr. Procurador Geral Adjunto, igualmente, no sentido da procedência do recurso, louvando-se na motivação apresentada pelo MP na 1ª instância.

No cumprimento do estatuído no artigo 417º/2 C P Penal, nada mais foi acrescentado.

Teve lugar o exame preliminar, onde se decidiu nada obstar ao conhecimento do recurso.

Seguiram-se os vistos legais.

Foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.
No caso presente, de harmonia com as conclusões apresentadas, suscita-se, para apreciação, tão só a questão de saber se se mostra violada a norma contida no nº. 2 do artigo 180º C Penal.

III. 2. Vejamos, no entanto, primeiro, a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido:

FACTOS PROVADOS

“No dia 23 de Fevereiro de 2007, pelas 11h55, E………., Agente da Polícia de Segurança Pública, encontrava-se uniformizado e em serviço de fiscalização aos parquímetros na ………., sita em São João da Madeira;
Nessa ocasião e na mesma ………., as arguidas tinham parado o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-PD, pertença da F………. de ………. e como tal identificado em lugar sujeito a pagamento, saindo da viatura e não deixando no seu interior talão comprovativo daquele pagamento;
Por motivos relacionados com o facto de o Sr. Agente E………. estar fazer a autuação, as arguidas abordaram-no;
Nesse contexto explicaram ao Sr. Agente que estavam ao serviço da F………. de ………. e que haviam parado o carro para levantar material da G………., situação de rápida resolução, o que não o demoveu de continuar a autuação;
Ainda nesse contexto questionaram o Sr. Agente E………. para o facto de estar a pedir os dados da condutora quando a viatura era de uma instituição;
No âmbito da conversa que com ele mantiveram, as arguidas deram-lhe conta que não concordavam com o modo como aquele actuava para com elas, no exercício das suas funções;
Em dada altura de tal conversa o Sr. Agente E………., dirigindo-se a uma das arguidas, disse-lhe: Está-me a chamar limitado? Se calhar até sou;
No dia 14 de Março de 2007 deu entrada na Esquadra de São João da Madeira, dirigida ao Sr. Comandante H………., uma participação de má conduta por parte do agente E………., datada de 9.03.2007, assinada pelas arguidas e ainda pelo arguido D………., Provedor da F………. de ………., cuja cópia consta a fls. 9 e 10 e que aqui se dá por reproduzida;
Em tal participação os arguidos deram conta ao superior hierárquico do Sr. Agente E………. que este revelara, na situação descrita, uma atitude pouco cívica e profissional, e abuso de autoridade e desrespeito pelo cidadão;
A dita participação foi elaborada pelas arguidas e subscrita por estas e pelo arguido D………., todos tendo actuado de comum acordo, bem sabendo que as expressões referidas em 8) e 9) se reportavam à actuação do visado enquanto agente da P.S.P. e que lesavam a sua honra e consideração;
Actuaram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente;
O arguido D………. subscreveu a participação por confiar no relato das arguidas, funcionárias desde 2001 da F………. de ………. e que o arguido, enquanto Provedor da instituição, conhece bem e que tem como pessoas sérias e honestas;
Os arguidos actuaram com intenção de alertar o superior hierárquico do Sr. Agente E………. para o comportamento deste, na sequência de conversa que tiveram com o Sr. Comandante da P.S.P. de São João da Madeira, que lhes transmitira os procedimentos a seguir caso tivessem nisso interesse e designadamente que ele próprio nada poderia fazer sem uma comunicação escrita.
A arguida B……….:
trabalha como assistente social para a F………. de ………. desde 2001, auferindo uma quantia líquida mensal de cerca de € 800,00;
vive em união de facto com um companheiro que também trabalha;
o agregado em que está inserida suporta por mês cerca de € 600,00 de prestação do crédito para habitação e cerca de € 160,00 de prestação pela aquisição de veículo próprio;
não tem antecedentes criminais.
A arguida C……….:
- tem formação superior em psicologia e trabalha desde 2001 como técnica superior para a F………. de ………., auferindo a quantia mensal líquida de € 815,00;
- vive com o marido, que trabalha, e um filho de quatro anos;
- o agregado em que está inserida suporta por mês uma prestação de crédito-habitação de cerca de € 900,00 e uma outra, relativa à aquisição de veículo próprio, de € 250,00;
- não tem antecedentes criminais;
14) O arguido D……….:
- é provedor da F………. de ………., actividade que exerce de forma não remunerada;
- aufere a título de reforma, relativa ao exercício da sua profissão de arquitecto, a quantia mensal de cerca de € 1.500,00;
- vive com a esposa, que é doméstica;
- não tem antecedentes criminais”.

FACTOS NÃO PROVADOS

“que o Sr. Agente E………. disse às arguidas, nas circunstâncias de tempo e lugar em causa, num tom autoritário e arrogante, o seguinte: não quero saber se é de uma instituição, se é do pai ou da mãe, não fez pagamento, tem que ser autuado…Por acaso estão a querer ensinar-me a fazer o meu trabalho?...Aqui quem faz as perguntas sou eu, eu é que sou a autoridade...;
que nas circunstâncias de tempo e lugar em causa o Sr. Agente E………. não disse às arguidas, num tom autoritário e arrogante, as expressões referidas em a)”.

Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que em sede de fundamentação se deixou exarado no que concerne à convicção assim formada pelo Tribunal.

“A nossa convicção assentou no conjunto da prova produzida, interpretada em função das regras da experiência comum.
Cumpre-nos em todo o caso sublinhar alguns aspectos.
No que diz respeito à sequência de acontecimentos que se apurou efectivamente terem sucedido nos dia, hora e local em apreço, tivemos em atenção o conjunto de todos os depoimentos prestados em audiência por parte de quem neles interveio ou a que assistiu - as arguidas B………. e C………., o Sr. Agente E………. e a testemunha I………., funcionário da empresa que tem a concessão do parquímetro em causa.
Quanto à assinalada matéria não se vislumbra entre as declarações dos visados quaisquer discrepâncias significativas.
Por outro lado, dúvidas não há também, quanto ao teor da participação em si, que ressalta de fls. 9 e 10, e quanto à intervenção dos arguidos na feitura em sentido geral da mesma: as arguidas B………. e C………. redigiram-na e estas e ainda o arguido D………. assinaram-na – todos o reconheceram, em moldes tais que nos não mereceram qualquer reserva.
Não tivemos ainda qualquer hesitação em ter por assente que o Sr. Provedor assinou a dita participação por ter confiado, segundo disse em termos convincentes, no relato que lhe fora feito pelas arguidas, pessoas que conhece desde há anos por força do exercício das respectivas funções, e que vê como sérias e honestas.
Na verdade, se confiava em tal relato e se o episódio se desenvolvera numa altura em que as arguidas se achavam ao serviço da F………. por si dirigida, não é de estranhar que tenha querido associar-se à participação, enquanto Provedor da instituição.
No que tange ao potencial ofensivo das expressões em apreço para a honra e consideração do Sr. Agente E………., trata-se de algo que decorre da natureza das próprias expressões, aferida em função da conotação negativa que socialmente lhes é reconhecida, desde logo pela dimensão ética que ao nível dos comportamentos se dirige a quem exerce funções policiais.
A intenção com que os arguidos actuaram – alertar o superior hierárquico para o comportamento do Sr. Agente visado – deriva não só do próprio texto da participação, e concretamente do penúltimo parágrafo do mesmo, como ainda da posição assumida em audiência pelos arguidos.
Demos por não provado que o Sr. Agente E………. tenha dito, num tom autoritário e arrogante, as expressões há pouco descritas sob a alínea a), como demos por não provado que as não haja dito.
Impõem-se a este propósito algumas palavras explicativas.
As arguidas B………. e C………. imputam ao Sr. Agente E………. o ter pronunciado tais dizeres, como lhe imputam ainda um tom autoritário e arrogante aquando dos mesmos.
O Sr. Agente E………. nega que tenha dito a generalidade dessas expressões, no que é corroborado pelo depoimento da testemunha I………., que o acompanhava na acção de fiscalização.
A questão que se põe neste domínio é a de saber se há ou não razões que nos permitam optar por alguma dessas versões: a defendida pelas arguidas ou a defendida pelo Sr. Agente E………. e pela testemunha I………. .
Como se percebe pela circunstância de simultaneamente não termos dado por assente que o Sr. Agente E………. tenha dito o que as arguidas dizem que ele disse, e como não provado que o não haja dito, o que sucede é que persistimos numa situação de dúvida, que nos parece razoável, e que não vislumbramos que fosse ultrapassável pela realização de qualquer outra diligência probatória.
Num esforço de explicitação dos fundamentos da nossa dúvida com um pouco mais de pormenor, atentemos no em seguida referido.
Em primeiro lugar, a participação está em si mesma razoavelmente bem estruturada, contendo o relato de um conjunto de factos descritos com significativo detalhe, e em que a imputação da conduta concreta sobrepõe-se, no espaço que ocupa, à adjectivação da mesma; nota sintomática disso mesmo é a inserção dos dizeres constantes da douta acusação apenas no penúltimo parágrafo do texto, como que em jeito de conclusão – a forma bem estruturada da participação em apreço, sobretudo do ponto de vista factual, não sendo obviamente em si mesma suficiente para aferir da sua pertinência, não deixa contudo de constituir um primeiro sinal da sua seriedade, do mesmo modo que uma participação que fosse, ao invés, profundamente rica na adjectivação e pobre na descrição fáctica seria um primeiro sinal da sua falta de fundamento.
Em segundo lugar, há que considerar que existe uma certa dilação temporal entre a ocasião em que sucedeu o episódio na ………. e a data aposta na participação, dilação que é ainda maior entre aquele episódio e o dia em que a participação deu efectiva entrada na Esquadra de São João da Madeira; o facto de a participação não ter sido elaborada e entregue no próprio dia dos factos, ou nos dias imediatamente subsequentes, inculca a ideia de que não terá sido redigida na base de uma irritação do momento, mas antes pensada, o que, não sendo em si mesmo um garante de fidedignidade do relato feito, é um factor que se apresta a indiciar alguma seriedade do mesmo, sobretudo se tivermos em conta que antes de apresentada a participação as arguidas tiveram ainda um contacto com o Sr. Comandante da Esquadra, que as elucidou sobre os procedimentos a seguir, como o próprio confirmou em audiência.
Por outro lado, as arguidas que estiveram presentes no local e que fazem o relato da situação são pessoas com formação superior, que trabalham para uma instituição de referência e que têm uma postura, tanto quanto se lhes conhece, irrepreensível, o que abona decerto em favor da credibilidade da participação que elaboraram.
Acresce que os depoimentos das arguidas pareceram-nos também eles consistentes e credíveis, para além de concordantes entre si.
Por fim, há que notar que o Sr. Agente E………., no seu depoimento, não deixou de se referir ao nível de voz com que normalmente fala, que rotulou de alto, nível esse que, associado a determinadas expressões, pode na verdade transportar um tom que as arguidas tenham entendido como autoritário e arrogante; de resto, durante o seu depoimento, não divisámos honestamente o tom alto de voz a que o Sr. Agente E………. aludira como sendo-lhe habitual.
Para além disso, uma das expressões que as arguidas fizeram constar da participação como tendo sido proferida pelo Sr. Agente E………., este, bem assim como o Sr. funcionário da empresa que tem a concessão do parquímetro reconheceram-na como tendo sido dita, a saber, a referida sob o ponto 7).
Tudo quanto vimos de dizer concorre pois no sentido da credibilização da versão das arguidas.
É certo, porém, que existem também elementos que nos fazem pensar que não é de excluir que o Sr. Agente E………. esteja a ser genuíno quando afiança que não deu azo a qualquer razão de queixa por parte das arguidas: o seu depoimento não nos suscita também, em linhas gerais, especiais reservas quanto à sua credibilidade, e foi corroborado pelo depoimento do funcionário da empresa que tem a concessão dos parquímetros, cuja veracidade também nos não merece particular desconfiança.
Eis portanto porque demos por não provada a matéria em questão e por não provada ainda a sua não verificação.
Quanto aos aspectos relativos à condição económica e social dos arguidos, tivemos em atenção o que deriva dos seus depoimentos, que nos pareceram a este respeito consistentes e verosímeis, o mesmo se dizendo a respeito dos seus antecedentes criminais, no que foram aliás corroborados pelo resultado da pesquisa nos respectivos registos, vertidos a fls. 57 a 59”.

III. 3. Vejamos, então, não sem antes reproduzirmos, o teor da participação, pois que nem a acusação, nem a sentença, o fizeram, porventura por entenderem não ter interesse, que o justificasse, para a apreciação da questão jurídico-penal subjacente.
É do seguinte teor:

“Exmo. Sr. Comandante H…….
Comando da Polícia de Segurança Pública
De S. João da Madeira

Assunto: Participação de má conduta por parte do agente E……….

À semelhança do que já foi feito pessoalmente junto da sua pessoa no dia dos acontecimentos, vimos agora por escrito manifestar o nosso desagrado face à actuação de um agente da vossa esquadra, passando a relatar o acontecido no dia 23 de Fevereiro do corrente ano.
As técnicas da F………. de ………., B………. e C………., ao serviço da mesma, dirigiram-se cerca das 11.30 horas à G………., em São João da Madeira, para levantar material (colchão para cama articulada) destinado a uma utente. Estacionámos em frente ao estabelecimento referenciado e tratando-se de uma situação de rápida resolução e tendo que se carregar o material para a carrinha em que nos fazíamos transportar, note-se que, identificada como sendo da Instituição atrás referida, não colocámos tiquet de estacionamento pago. Note-se também que já com o material carregado e enquanto uma das técnicas foi dentro do estabelecimento para levantar as facturas e respectivas guias a outra ficou perto da viatura apercebendo-se de imediato da aproximação do Agente que verificando a ausência de tiquet, apontou no livro de multas a matrícula da viatura. De imediato as Técnicas abordaram o Agente e explicaram a situação acima descrita, perante o que o Agente num tom autoritário e arrogante respondeu que: "não quero saber se é de uma Instituição, se é do pai ou da mãe, não fez pagamento tem que ser autuado…” Tentámos novamente explicar a situação e sensibilizá-lo para a mesma, mas o Agente manteve a sua atitude de arrogância deturpando as nossas palavras. Uma das Técnicas alertou-o para o facto de ele estar a ser pouco compreensivo para com a situação ao que ele replicou " está-me a chamar limitado? Veja lá que se calhar até sou…” De seguida, pediu à condutora para se identificar e solicitou-lhe a sua morada correcta e actualizada. Não sabendo quais os procedimentos nestas situações, questionámo-lo sobre o facto de estarmos ao serviço e como tal a morada deveria ser a da Instituição. Uma vez mais, revelou uma atitude pouco cívica e profissional dizendo que: "Por acaso estão a querer ensinar-me a fazer o meu trabalho?...” Nós respondemos-lhe que apenas não sabíamos o procedimento e que queríamos que nos explicasse o porquê da coima ir para a morada do condutor e não para a Instituição. Novamente respondeu: "Aqui quem faz as perguntas sou eu, eu é que sou a autoridade”. demonstrando novamente uma postura totalmente incorrecta, a nosso ver, que vem denegrir a imagem de um agente de autoridade que pelo que sabemos não deve actuar apenas como agente de repressão, mas também como agente educativo e formador no sentido de implementar atitudes cívicas aos cidadãos.
É de referir que foi necessário perguntar ao referido agente o seu nome, uma vez que ele não se encontrava devidamente identificado, tal como seria o seu dever. Quando questionado sobre a sua identidade disse que se chamava E………. .
Como cidadãs temos a noção que infringimos a lei, contudo, lamentamos a atitude do agente de autoridade, pouco correcta e pouco cívica, revelando abuso de autoridade e desrespeito pelo cidadão.
O objectivo desta participação é dar-lhe a conhecer o desempenho de um agente que está sob o seu comando no sentido de o alertar para o respeito e dever de cidadania que deve ter no desempenho das suas funções, o que não aconteceu quando fomos abordadas pelo mesmo.
Renovando os nossos cumprimentos, nos subscrevemos com estima e consideração”

III. 3. 1. O Tribunal considerou encontrarem-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de difamação agravada, porém, entendeu que, na impossibilidade de optar por uma das versões apresentadas - a dos arguidos, ou a do ofendido - porque igualmente credíveis, não poderia condenar aqueles, daí que tenha decretado a sua absolvição.

Perante esta decisão mostra-se o MP inconformado, pois que ao ter-se julgado como provado os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal e, não se provando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, ou causa de justificação seria susceptível de excluir a antijuridicidade do comportamento protagonizado pelos arguidos, pelo que defende que devem ser condenados com vinham acusados, enquanto co-autores matérias, de um crime de difamação agravada.
Defende o recorrente que para que se possa verificar se a situação em análise se mostra abrangida pelo nº. 2 do artigo 180º do C. Penal, se exige, estarmos perante a imputação de factos, pois que a norma não abarca a formulação de juízos ofensivos, a atribuição de epítetos ou palavras a que se alude no crime de injúrias, bem como a imputação de factos genéricos ou abstractos:
Como, entende o recorrente que as expressões produzidas pelos arguidos, na participação que enviaram ao superior hierárquico do agente, que este “revelara, na situação descrita, uma atitude pouco cívica e profissional, e abuso de autoridade e desrespeito pelo cidadão”, consubstanciam verdadeiros juízos de valor, uma vez que têm ínsitas uma valoração que ultrapassa o juízo da realidade, transformando-se em juízo sobre o carácter e a actuação profissional do visado, enquanto agente de autoridade, a situação não poderia considerar-se abrangida pela norma do nº. 2 do artigo 180º do C. Penal.
Continua o recorrente, afirmando que, ainda que se pudesse considerar que não obstante os "juízos conclusivos" constantes do escrito, estes espelhavam os factos também ali descritos, uma vez que os requisitos das alíneas a) e b) do nº. 2 do artigo 180º do C. Penal são cumulativos, o interesse referido na alínea a) apenas se pode ter por legítimo", se se julgar provado - como ínsito na alínea b) do n°. 2 do mesmo preceito legal - a verdade da imputação, donde se concluiria, então, que “o interesse prosseguido, pela actuação do arguidos - o de dar conta de uma situação que não poderia existir, ao nível das forças policiais, seria, inequivocamente legítimo”.
Como entende o recorrente, que não se provou o alegado comportamento por parte do agente, que à luz do objectivo da actuação dos arguidos, permitisse justificar a participação, tem sérias dúvidas que, nesta situação, se possa falar de um interesse legítimo.
Avança, o recorrente, defendendo que ao julgar como não provado qualquer comportamento, por parte do agente E………., susceptível de justificar a actuação dos arguidos, não poderia o Tribunal a quo, sem mais, considerar verificado o preceituado no artigo 180º/2 alínea a) do C. Penal.
Entende, ainda, o recorrente, que mesmo que se tivesse provado que os arguidos tiveram por objectivo realizar um interesse legitimo, ainda assim, não se encontra preenchido o requisito da alínea b) do nº. 2 do artigo 180° do C. Penal, isto, porque defende, que a dúvida quanto ao preenchimento da previsão ali contida, não pode ter como consequência a absolvição dos arguidos, pois que se não aplica o princípio in dubio pro reo a uma causa de exclusão da punibilidade.
Finalmente, insurge-se o recorrente, com um argumento adjuvante, no tocante à decretada exclusão da ilicitude relativamente ao arguido D………., pois que, entende que a boa fé não pode significar uma pura convicção subjectiva na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva e que, a este arguido, como Provedor da F………., entidade para a qual as arguidas exerciam actividade profissional, competia-lhe certificar-se da veracidade do escrito que assinava, tanto mais quando o mesmo não se encontrava presente aquando da ocorrência dos factos que terão motivado a participação, donde, se lhe impunha, até, um ” dever acrescido" de se assegurar do que se havia passado, face às circunstâncias concretas.

III. 3. 2. O artigo 180º C Penal dispõe que:
“1. quem dirigindo a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, ofensivos da sua honra e consideração ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”
2. a conduta não é punível quando:
a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos e,
b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira;
(…)
4. a boa fé(…) exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”.
Por sua vez o artigo 184º, dispõe que” as penas previstas no artigo 180º (…) são elevadas de metade no seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas, na alínea j) ao tempo e actualmente por força da recente alteração introduzida pela Lei 59/2007 de 4SET, alínea l) – onde se incluem os agentes das forças de segurança - do nº. 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas (…)”.

III. 3. 3. As razões concretas da discordância do recorrente em face do concretamente decidido estruturam-se e desdobram-se, então, nas seguintes questões:
1. o nº. 2 do artigo 180º do C. Penal, exige, estarmos perante a imputação de factos, não abarcando a formulação de juízos ofensivos, a atribuição de epítetos ou palavras a que se alude no crime de injúrias, bem como a imputação de factos genéricos ou abstractos.
Uma vez que as expressões produzidas pelos arguidos, na participação que enviaram ao superior hierárquico do agente, que este “revelara, na situação descrita, uma atitude pouco cívica e profissional, e abuso de autoridade e desrespeito pelo cidadão”, consubstanciam verdadeiros juízos de valor, uma vez que têm ínsitas uma valoração que ultrapassa o juízo da realidade, transformando-se em juízo sobre o carácter e a actuação profissional do visado, enquanto agente de autoridade, a situação não poderia considerar-se abrangida pela norma do nº. 2 do artigo 180º do C. Penal.

2. Ainda que se pudesse considerar que não obstante os "juízos conclusivos" constantes do escrito, estes espelhavam os factos também ali descritos, sendo os requisitos das alíneas a) e b) do nº. 2 do artigo 180º do C. Penal cumulativos, o interesse referido na alínea a) apenas se pode ter por legítimo", se se julgar provada a verdade da imputação,
Uma vez que se não provou o alegado comportamento por parte do agente, que à luz do objectivo da actuação dos arguidos, permitisse justificar a participação, não se pode ter como verificado o requisito contido na alínea a) do nº. 2 do artigo 180º C Penal.

3. O nº. 2 do artigo 180° do C. Penal, ao prever a não punibilidade da conduta exige expressamente que o agente prove a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento para, em boa fé, a reputar verdadeira.
Uma vez que os arguidos não lograram fazer tal prova - não se podendo recorrer aqui ao princípio in dubio pro reo – não se mostra preenchido o requisito da alínea b).

4. A questão da boa fé.

Defende o recorrente que a boa fé não pode significar uma pura convicção subjectiva na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva e que, a este arguido, como Provedor da F………., entidade para a qual as arguidas exerciam actividade profissional, competia-lhe certificar-se da veracidade do escrito que assinava, tanto mais quando o mesmo não se encontrava presente aquando da ocorrência dos factos que terão motivado a participação, donde, se lhe impunha, até, um “dever acrescido" de se assegurar do que se havia passado, face às circunstâncias concretas.
Uma vez que não consta que o tenha feito, não se pode considerar verificada, em relação a este arguido o argumento suplementar para a sua não punição.

III. 3. 4. Apreciando.

III. 3. 4. 1. Factos versus juízos de valor.

É um dado assente e inquestionável, resultante da mera leitura do texto legal, que a prova da verdade da imputação, apenas é possível se o crime tiver sido cometido através da imputação de factos e não, já, se o foi através da expressão de um juízo de valor ou palavras ou expressões ofensivas[1].
Entendimento que não colide com os princípios e preceitos constitucionais[2].

A “exceptio veritatis”, não é admissível nos casos de formulação de juízos ofensivos, pois que a salvaguarda do interesse legítimo (requisito essencial da causa da causa de justificação em apreço), exige a imputação dos factos desonrosos[3].
O legislador equiparou, para efeito de criminalização, ambas as circunstâncias, quer a imputação de um facto, quer de um juízo.
Tanto importa, pois, fazer uma imputação desonrosa de um facto,”fulano tirou-me a carteira”, como formular um juízo, de igual sorte, desonroso, “fulano é um ladrão”.
O interesse real e efectivo na distinção (tarefa, as mais das vezes, plena de dificuldades) entre facto e juízo surge com a propósito da verificação da causa de exclusão do ilícito, previsto no nº. 2 do artigo 180º C Penal, em que a noção de facto constitui, o ponto nuclear.
A propósito da distinção facto versus juízo, refere o Prof. Faria Costa in Comentário Conimbricense:
“facto é o que se traduz naquilo que é ou que acontece, na medida em que se considera como um dado real da existência, facto é um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, um juízo de existência.
Um facto é um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos, distinguindo-se, neste sentido, dos acontecimentos, que são também factos, mas que se expressam por conjunto de cações que se protelam no tempo.
Por sua vez, o juízo, independentemente dos domínios em que pode operar (juízos psicológico, lógico, axiológico, jurídico) deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa a existência de uma ideia ou de uma coisa, mas ao seu valor”.

Se é verdade que tendo os arguidos dado ao escrito em questão, o título de “participação de má conduta”, concluindo, a final com a qualificação, adjectivação - do entretanto descrito factual comportamento e postura do ofendido - como de “atitude pouco cívica e profissional” e “abuso de autoridade e desrespeito pelo cidadão”, seguramente que não estamos na presença, nem no título, nem na conclusão, da imputação de factos, mas fundamentalmente, perante a formulação de juízos e valor, sobre aquele comportamento e postura do visado.
Não será menos verdade, que numa situação como esta, escrito, em que a par da descrição/narração, da realidade factual, esta é acompanhada do titulo e em sede de conclusão do escrito, que contém, adjectivos “má”, “pouco correcta” e “pouco cívica” e juízos conclusivos e de valor “abuso de autoridade” e “desrespeito pelo cidadão”, reportados ao factos descritos, estando estes e aqueles, numa relação necessária, intrínseca e inequívoca, de causa e efeito, não pode deixar de se entender - sob pena de se cindir a própria realidade do escrito (afinal o corpo de delito), de se estar a valorar a árvore em detrimento da floresta, de se apreciar os factos truncados e descontextualizados, desinseridos da realidade envolvente, em prejuízo, naturalmente, do apuramento da verdade material, e em última análise, dos interesses do arguido - não ser de excluir totalmente uma apreciação e consequente valoração, acerca da verdade dos factos subjacentes à exteriorização dos referidos juízos e adjectivação.
A não ser assim, incorrer-se-ia na distracção de quem está menos atento, de em vez de olhar para as estrelas, olhar para o dedo que aponta para elas.
Obviamente que o direito não pode fica indiferente à circunstância de os juízos valorativos ofensivos se basearem ou não em factos verídicos, contemporâneos, insertos no mesmo escrito.
O julgamento afirmativo poderá ser decisivo para o entendimento sobre a verificação da causa de justificação prevista no artigo 180º/2 C Penal e de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, previstas no artigo 31º e ss. C Penal[4].
Donde, no caso concreto, sempre seria admissível como foi entendido na decisão recorrida, a prova da verdade da imputação, improcedendo, neste segmento, o recurso.

III. 3. 4. 2. A não prova da verdade da imputação.

Se no C Penal de 1886 não era admitida, em princípio, a prova da verdade das imputações, com o C Penal de 1982, parte-se do princípio oposto: é admitida, embora com as excepções contidas no nº. 3 do artigo 164º então, que corresponde, hoje, depois da reforma de 1995, ao artigo180º.
Esta alteração foi justificada pelo autor do Projecto, Prof. Eduardo Correia, com a ideia da paz social – que numa visão superficial deveria impor a proibição da prova – não deve ser conseguida com o sacrifício da verdade nas relações sociais, aliás a única base viável de uma paz autêntica entre os homens[5].
O nº. 2 do artigo 180º consagra uma causa de justificação específica do crime de difamação e de injúrias por remissão do artigo 181º/2, excluindo-se, no entanto, a possibilidade da exceptio veritatis, nos termos do nº. 3, aos factos atinentes à esfera da intimidade da vida privada e familiar[6].
As disposições contidas no artigo 180º são gerais, pensadas para uma universalidade de possíveis autores e não para uma particular categoria de infractores, maxime, os jornalistas. (se bem que as imputações feitas nos termos da alínea a) terão o seu campo de eleição no domínio da imprensa e em geral da informação). Da mesma forma estes dispositivos não prejudicam a aplicação das normas contidas na parte geral do C Penal, maxime das causas de exclusão da ilicitude e da culpa, previstas no artigo 31º e ss[7].

Já na vigência do C Penal de 1886, dispunha o artigo 409º que nos casos em que era admissível tal prova, se o acusado provasse a verdade dos factos imputados seria isento de pena e se o não fizesse, seria punido como caluniador.
A expressão “isento de pena” resultava de uma técnica legislativa deficiente, pois do que se tratava era de uma causa justificativa, dirimente da responsabilidade[8].
Nos casos em que era admissível a prova da verdade dos factos e o agente consegue fazer essa prova, deve ser absolvido[9].
Se bem que outro entendimento do preceito era defendido, no sentido que, de acordo com a letra da lei, do que se tratava era de uma verdadeira de isenção de pena, no sentido rigoroso da expressão e não de qualquer dirimente[10].
Dúvidas, no entanto, não existiam de que sobre o arguido impendia o ónus da prova do facto de as imputações serem verdadeiras ou como tais tomadas depois de cumprido o dever de esclarecimento[11].
A justificação do facto devia supor o ter-se conseguido a prova positiva de que foi cumprido o dever de verificação da veracidade das imputações[12].
Não obstante, o entendimento de que sobre o agente corre o risco da prova de que as imputações feitas correspondem à verdade, ou de que o agente só as tomou como tais depois de cumprido o dever de esclarecimento, no entanto não se pode entender estarmos perante uma manipulação arbitrária e injustificável do princípio in dubio pro reo, determinante de uma inconstitucional presunção de culpabilidade[13].

Como é consabido, em processo penal, vigora o princípio da presunção de inocência do arguido, com consagração constitucional, artigo 32°/2 da Constituição da República Portuguesa e ainda na Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, “cuja primeira grande incidência, assenta fundamentalmente, na inexistência de ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem de provar a sua inocência para ser absolvido; um princípio in dubio pro reo; e ainda que o arguido não é mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele.
Na verdade, e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual parece imposta (ou ficcionada) pela lei, o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação.
Em segundo lugar, do referido princípio da presunção de inocência do arguido - embora não exclusivamente dele - decorre um princípio in dubio pro reo, princípio que procurando responder ao problema da dúvida na apreciação do caso criminal (não a dúvida sobre o sentido da norma, mas a dúvida sobre o facto) e, partindo da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, determina que na dúvida quanto ao sentido em que aponta aprova feita, o arguido seja absolvido”[14],
O princípio do in dubio pro reo, é, assim, uma imposição dirigida ao juiz, segundo o qual, a dúvida sobre os factos favorece o arguido.
Quer isto dizer, que a sua verificação pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, reportada à decisão da matéria de facto e, sem qualquer restrição.
Aplica-se não apenas aos elementos constitutivos do tipo, mas ainda ao elementos fundamentadores da pena e agravantes da incriminação, às atenuantes modificativas ou gerais, como também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa e na prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão susceptível de desfavorecer, objectivamente, o arguido, vg. nulidades, pressupostos processuais e critérios de aplicação de uma lei de amnistia[15].

A prova da verdade da imputação ou da confiança na verdade, são elementos de justificação - não como mera causa de exclusão da culpa – naturalmente vocacionada a alargar o seu âmbito de intervenção ao universo das incriminações que protegem bens jurídicos marcados pela sua particular vinculação social, devendo de resto o centro do debate, ser colocado na imputação de factos desonrosos em que o agente não logra fazer a prova da verdade e, não como no direito germânico, a questão da prossecução de interesses legítimos[16].

Se o entendimento da Doutrina mais autorizada, tem sido o de exigir que o arguido prove a verdade da imputação, também na Jurisprudência, se entende que para o funcionamento da causa de justificação contida no artigo 180º/2 C Penal, é necessário que o arguido prove a verdade da imputação ou tenha fundamento sério para, e, boa fé, a reputar de verdadeira[17].

Donde, acolhendo estes ensinamentos, que temos por os mais adequados de harmonia com o texto legal e com os interesse subjacentes à questão, entendemos que em matéria de julgamento sobre os factos atinentes à prova da verdade dos factos, no âmbito do artigo 180º/2 alínea b) C Penal, se não pode aplicar o princípio in dubio pro reo.
Antes pelo contrário, se o arguido não lograr fazer a prova da verdade da imputação, não pode vir a considerar-se verificada a causa de justificação ali prevista.

Não merece qualquer discussão, em face do texto legal, o entendimento sufragado no recurso, de que os requisitos das alíneas a) e b) do nº. 2 do artigo 180º do C. Penal são, não só de verificação simultânea ou cumulativa, mas essencialmente, a norma deve ser interpretada no sentido de que o agente não é punido, se a imputação for feita para realizar interesses legítimos, desde que prove a verdade da mesma.
Isto é a expressão “e”deve ser lida como sinónimo da expressão “desde que”.
Assim, em resumo, neste segmento do recurso, uma vez que os arguidos não lograram fazer a prova da verdade da imputação - não se podendo recorrer aqui ao princípio in dubio pro reo – não se mostra preenchido o requisito da alínea b) do nº. 2 do artigo 180º C Penal e, desde logo, não pode ter-se como verificada a causa de justificação do facto, ali prevista.

III. 3. 4. 3. A boa fé

A lei impõe, como acabamos de ver, que o agente prove a verdade da imputação ou que haja tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar de verdadeira.
A convicção do autor da imputação tem de assentar numa base objectiva não lhe bastando louvar-se sobre “o que se dizia”. Se era difícil ou impossível colher dados sobre a imputação, impunha-se que não veiculasse a notícia[18] - naturalmente a propósito de crime cometido através da imprensa, campo privilegiado de aplicação da norma.
Ainda no mesmo âmbito, a boa fé referida na alínea b) do nº. 2 do artigo 180º, deve considerar-se afastada sempre que o autor da notícia não realiza, podendo fazê-lo, todas as diligências possíveis tendentes à sua comprovação e se demonstre que factos importantes nela narrados não correspondem à verdade[19].

O que é decisivo não é a boa fé subjectiva mas a boa fé objectivamente fundada quanto a uma verdade que seria igualmente admitida por uma pessoa de consciência recta e de pensamento equitativo, colocada na mesma situação[20].
Se isto é assim, em sede de comunicação social, até por obediência ao Código Deontológico e Estatuto dos jornalistas, deve este requisito ser entendido, cum granu salis, fora daquele âmbito, onde se não verificam os interesses, natureza e condicionantes do direito à informação.

No caso, o arguido Provedor da F………., confiou no que lhe disseram as duas funcionárias da instituição, que, como vem provado, “conhece bem e que tem como pessoas sérias e honestas”, que lhe relataram os factos denunciados e, naturalmente o facto de terem falado com o superior hierárquico do agente E………, e do facto de este lhes ter transmitido os procedimentos a seguir caso tivessem nisso interesse e designadamente que ele próprio nada poderia fazer sem uma comunicação escrita.

Perante este quadro fáctico e contexto motivacional, não se vislumbra que se pudesse mais exigir, tivesse o arguido - enquanto homem médio ou bom pai de família - naquela situação concreta, feito.
Não havia outras fontes para o seu conhecimento dos factos, não lhe sendo exigível que procedesse a averiguações preliminares, junto do visado ou do seu superior hierárquico (que nada sabia dos factos), para se inteirar do que se tinha passado, para só, então estar habilitado, a de forma segura subscrever a participação.
Confiou e subscreveu o relato dos factos que lhe foi feito não por 1, mas por 2 funcionárias que conhece bem e que tem por mulheres sérias e honestas. Se não se bastasse com a credibilidade dos relatos, ainda hoje e, porventura, nunca, a participação seria por si subscrita, pois que não teria chegado a conclusão alguma sobre a forma como em concreto se passaram os factos.
Isto por que nem o Tribunal, a essa conclusão chegou, ainda eu no âmbito de um processo de natureza criminal, onde prontificam o princípio da investigação e do contraditório.

Assim, se no caso, se pode concluir que o arguido actuou tendo fundamento sério para, em boa fé, (sem consciência de estar a prejudicar alguém) reputar como verdadeira a imputação dos factos, sendo que nos autos ainda se não logrou julgar, tida como verdade ou não (antes foi emitido um juízo de non liquet, em relação às 2 vertentes do mesmo facto, como veremos adiante), o certo é que no caso, a acrescer, como vimos já, à questão da imputação de factos concretos, existe ainda a emissão de juízos de valor, que necessariamente têm que ficar fora do âmbito de aplicação, também, da 2ª parte da norma contida na alínea b) do nº. 2 do artigo 180º C Penal, donde não se poder, desde já, emitir qualquer juízo, designadamente de censura jurídico-criminal, também, em relação ao arguido.

III. 3. 4. 4. A estrutura e a lógica internas, da decisão recorrida.

III. 3. 4. 4. 1. No caso concreto temos que na participação que assinaram, os arguidos começam por descrever o que se terá passado com o agente E………., (relato, como vimos já, omitido quer na acusação, quer na sentença, curiosamente) e terminam, referindo que o agente “revelara, na situação descrita, uma atitude pouco cívica e profissional, e abuso de autoridade e desrespeito pelo cidadão”.

Se é verdade que as expressões contidas na acusação e na sentença, assumem a natureza de verdadeiros juízos de valor, onde os arguidos procedem á qualificação, valoração da conduta, anteriormente descrita do agente E………., transformando-se em juízo sobre o carácter e a actuação profissional do visado, enquanto agente de autoridade, não se pode olvidar, que as mesmas acompanham, a descrição factual do que se passara, ié., a imputação de factos a dito agente.

Esta percepção ou entendimento das coisas, está presente na decisão recorrida, onde se refere que, “o que importava verdadeiramente apreciar era se eram ou não verdadeiros os factos concretos que os arguidos imputaram ao Sr. Agente E………., na certeza de que, sendo verdadeiros, o título dado à participação e os juízos conclusivos nela vertidos não seriam de todo descabidos”.
Só que perante e, não obstante, esta assumida importância e o arrogado carácter decisivo da questão, os factos em que os arguidos fizeram assentar os juízos em causa foram julgados como não provados, cfr. alínea a) dos factos não provados, “que o Sr. Agente E………. disse às arguidas, nas circunstâncias de tempo e lugar em causa, num tom autoritário e arrogante, o seguinte: não quero saber se é de uma instituição, se é do pai ou da mãe, não fez pagamento, tem que ser autuado…Por acaso estão a querer ensinar-me a fazer o meu trabalho?...Aqui quem faz as perguntas sou eu, eu é que sou a autoridade...; da mesma forma, que, o facto negativo, da mesma versão dos factos, também foi julgada não provada, cfr. alínea b) dos factos não provados, “que nas circunstâncias de tempo e lugar em causa o Sr. Agente E………. não disse às arguidas, num tom autoritário e arrogante, as expressões referidas em a)”.

III. 3. 4. 4. 2. Por outro lado, não obstante alegado na acusação pública, cfr. nºs. 7 e 8, os elementos em que se desdobra o elemento subjectivo do tipo, no caso, o dolo e seus momentos intelectual, volitivo e emocional, o certo é que na sentença omitiu-se qualquer apreciação sobre os factos em que o mesmo se estrutura, não constando, nem dos factos provados, nem dos não provados, que “ainda assim, não se abstiveram de actuar e que bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.
Isto apesar de como vimos já, se ter considerado, a propósito da fundamentação de Direito, estarem verificados, os elementos constitutivos, (objectivos e subjectivo) do tipo de difamação agravada.

III. 3. 4. 4. 3. Por outro lado, ainda, resulta agora da fundamentação de facto, que vem provado, nº. 10, que “a dita participação foi elaborada pelas arguidas e subscrita por estas e pelo arguido D………., todos tendo actuado de comum acordo, bem sabendo que as expressões referidas em 8) e 9) (participação de ma conduta por parte do agente E………. e atitude pouco cívica e profissional e abuso de autoridade e desrespeito pelo cidadão) se reportavam à actuação do visado enquanto agente da P.S.P. e que lesavam a sua honra e consideração” e, mais adiante no nº. 13, vem provado que, “os arguidos actuaram com intenção de alertar o superior hierárquico do Sr. Agente E………. para o comportamento deste, na sequência de conversa que tiveram com o Sr. Comandante da P.S.P. de São João da Madeira, que lhes transmitira os procedimentos a seguir caso tivessem nisso interesse e designadamente que ele próprio nada poderia fazer sem uma comunicação escrita”.

III. 3. 4. 4. 4. Cremos evidenciar-se daqui, estarmos perante, uma manifesta situação de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na 2ª situação e, por outro lado, perante uma contradição insanável na fundamentação, nas 1ª e 3ª situações.

Vícios previstos no artigo 410º/2 alíneas a) e b) C P Penal, qualquer deles, da decisão e não de julgamento, que tem que resultar evidenciados do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos a ela estranhos, a não ser por apelo às regras da experiência comum, situando-se, por outro lado, no plano da lógica jurídica ao nível da matéria de facto, seja da confecção técnica do decidido, cuja verificação impedem uma decisão logicamente correcta, justa e conforma à lei.

Senão atentemos.

Verifica-se a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, artigo 410º/2 alínea a) C P Penal, quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ié., quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Concretizando, só se pode falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
O vício da insuficiência para a decisão – reportada à justa que devia ter sido proferida e não à decisão recorrida[21] - da matéria de facto determina a formação de forma incorrecta de um juízo, porque a conclusão não é suportada pelas premissas: a matéria de facto não é a suficiente para fundamentar a solução de direito, correcta, legal e justa.
A insuficiência releva-se em termos quantitativos porque o tribunal não esgotou todos os seus poderes de indagação em matéria de facto. Na descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais além. Não o tendo feito, a decisão formou-se incorrectamente por deficiência da premissa menor. O suprimento da insuficiência faz-se com a prova de factos essenciais, que fazem alterar a decisão recorrida, já na qualificação jurídica os factos, já na medida concreta da pena ou em ambas as situações, conjuntamente. Se os novos factos não determinarem alguma dessas alterações, não são essenciais - o vício não será importante, podendo ser sanado no tribunal de recurso.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada[22], quer porque não permite integrar todos os elementos materiais do tipo legal, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena.
A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto.
Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto[23].

Omitir, em sede de matéria de facto provada e não provada, se os arguidos “agiram de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem proibidas as suas descritas condutas”, facto alegado na acusação pública e fundamental para o suporte da decisão, integra o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Por contradição insanável da fundamentação, entende-se a omissão de 2 proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras ou falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo, diferem na quantidade ou na qualidade.
Para os fins desta norma, constitui contradição só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação, quando, de acordo com o raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Estamos perante a contradição entre factos objectivos não provados, ié, a afirmação como não provado de um facto objectivo e do facto objectivo contrário, que manifesta e inequivocamente integra o citado vício[24].

Seguramente que as constatadas situações,
de omissão de apreciação do dolo,
de contradição entre ambos os factos julgados não provados e,
de se julgar provado que “a dita participação foi elaborada pelas arguidas e subscrita por estas e pelo arguido D………., todos tendo actuado de comum acordo, bem sabendo que as expressões de “má conduta por parte do agente E………. e atitude pouco cívica e profissional e abuso de autoridade e desrespeito pelo cidadão”, se reportavam à actuação do visado enquanto agente da P.S.P. e que lesavam a sua honra e consideração”, ao mesmo tempo que se julgou provado que, “os arguidos actuaram com intenção de alertar o superior hierárquico do Sr. Agente E………. para o comportamento deste, na sequência de conversa que tiveram com o Sr. Comandante da P.S.P. de São João da Madeira, que lhes transmitira os procedimentos a seguir caso tivessem nisso interesse e designadamente que ele próprio nada poderia fazer sem uma comunicação escrita”, patenteadas da simples leitura da sentença recorrida, integram os apurados vícios da decisão.

Qualquer deles, só por si, a demandar o reenvio do processo para novo julgamento, se no tribunal de recurso não for possível decidir da causa, artigo 426º/1 C P Penal, o que se decide.

IV. DISPOSITIVO.

Nos termos e com os fundamentos indicados, acorda-se em revogar a decisão recorrida e ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, limitado aos pontos de facto acima enunciados, cumprindo-se no mais, o disposto no artigo 426º-A C P Penal.

Sem tributação.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2008.Dezembro.10
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Olga Maria dos Santos Maurício

______________________
[1] Neste sentido cfr. Ac,s. RC de 1.7.87 e de 19.12.88, in BMJ, respectivamente 369º, 613 e 382º, 539, a propósito do artigo 164º C Penal versão de 1982, que regulava a matéria em questão da mesma forma, que a actual e no âmbito do artigo 180º/2 C Penal, Acs. Do mesmo Tribunal de2.10.96 in BMJ 460º, 817 e de 23.4.98, in CJ, II, 64.
[2] Decidiu o Tribunal Constitucional através do Ac. 201/2004 de 24MAR que a norma do artigo 180º/2 C Penal, interpretada em termos de não abranger juízos de valor, não viola qualquer princípio ou preceito constitucional.
[3] Cfr. Ac RG de 11.10.2004, consultável no site da dgsi.
[4] cfr. neste sentido, Oliveira Mendes, in O direito à honra e a sua tutela penal, citado no Ac. RC de 22.2.2006, consultável no site da dgsi.
[5] citado por Maia Gonçalves, in C Penal Português, 8ª edição, em anotação ao artigo 180º.
[6] Maia Gonçalves, idem, defende que que se pode entender, que a alínea a) contém antes um afloramento de uma causa geral de exclusão da ilicitude.
[7] Ibidem.
[8] Maia Gonçalves, in C Penal Português, 6ª edição.
[9] Luís Osório, in Notas, III, 399 e Beleza dos Santos, in RLJ 92º, 215.
[10] Pinheiro Farinha, in C Penal Português actualizado e anotado.
[11] Ac. STJ de 20.9.1995, in CJ, S, III, 186, numa situação de ofensa cometida através da imprensa.
[12] Como resultava, ao tempo, ano de 1982, do artigo 28º/3 da Lei de Imprensa, aprovada pelo Decreto Lei 85-C/75 de 26FEV “a justificação só terá lugar se o autor da ofensa fizer a prova dos factos imputados, quando admitida”.
[13] a propósito de o crime ter sido cometido através da imprensa ainda, Prof. Figueiredo Dias, in RLJ, 115º,172.
[14] Rui Patrício, in “O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português”, Ass. Académica da FDL, 2000, 93/94.
[15] Ac. STJ de 4.11.1998, in CJ, III, 201.
[16] Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 365, 366 e 368.
[17] Ac,s. RC de 19.6.1996, in CJ, III, 52 e de 18.5.2005 e deste Tribunal de 27.11.2002, ambos consultáveis no site da dgsi.
[18] Ac. deste Tribunal de 20.1.88, in CJ, I, 231.
[19] Ac. RL 4.5.2000, in CJ, III, 133.
[20] cfr. Roeder, Heinitz-FS, 237, citado pelo Prof. Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 357.
[21] cfr. neste sentido o Ac. STJ de 13.5.98, in CJ, S, II, 199, que vimos seguindo de perto.
[22] Cfr. Ac. STJ de 1.4.1998, no processo 338/98.
[23] cfr. Ac STJ de 13.7.2005, consultável no site da dgsi.
[24] Assim, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário, ao C P Penal, 2ª edição, 1082.