Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0456896
Nº Convencional: JTRP00039519
Relator: CURA MARIANO
Descritores: TELEMÓVEL
PRESCRIÇÃO
APRESENTAÇÃO
PRAZO
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
Nº do Documento: RP200610020456896
Data do Acordão: 10/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 273 - FLS 194.
Área Temática: .
Sumário: I - Na vigência da Lei 23/96, de 26.7 – na parte aplicável ao serviço de telefone móvel – o legislador estabeleceu dois regimes de prescrição de natureza e objecto diferenciados:
a) - O regime geral, respeitante à prescrição de prestações (em geral de natureza pecuniária), previsto no artigo 300° e seguintes do Código Civil, cuja interrupção apenas se pode produzir com a interpelação judicial do devedor;
b) - um regime especial, apenas aplicável aos serviços prestados por operadores de telecomunicações de uso público, respeitando à prescrição do direito de exigir o pagamento, que se impede com a apresentação de cada factura ao devedor e que tem natureza extintiva, atenta a forma como está consagrado na lei.
II - O prazo de seis meses de prescrição é extintivo do direito do prestador do serviço, mas a apresentação da factura relativa ao respectivo crédito nesse prazo de 6 meses é impeditiva da prescrição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Autora: B………, S.A.

Réus: C……….
D……….
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A Autora propôs a presente acção declarativa, com processo sumário, pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe €. 5.654,29, acrescidos de juros de mora vincendos.
Alegou que forneceu aos Réus serviços de telefone móvel, no valor de €. 3.942,73, que estes não pagaram, tendo-se vencido juros de mora, no valor de €. 1.711,56.

Contestou apenas a Ré D………., alegando a sua ilegitimidade, negando que tenha contratado ou utilizado os serviços que a Autora invoca ter prestado e invocando a prescrição da dívida reclamada.
Concluiu pela procedência das excepções de ilegitimidade e prescrição e, subsidiariamente, pela sua absolvição do pedido.

Respondeu a Autora, defendendo a legitimidade da Ré e a ausência de prescrição da dívida cujo pagamento reclama.
Concluiu pela improcedência da defesa deduzida.

Foi proferido despacho saneador, com valor de sentença, que relegou o conhecimento da excepção de ilegitimidade para momento ulterior e julgou procedente a excepção de prescrição, absolvendo os Réus do pedido formulado pela Autora.

Desta decisão recorreu a Autora, com os seguintes argumentos:
“- Pela sua essencialidade ou complementaridade, o Estado sempre estabeleceu regime jurídicos diferentes para os SFT e os STM;
- A prestação do SFT é considerada como um serviço essencial e a do STM como um serviço complementar;
- Como os STM são um serviço complementar, não se lhes aplica a Lei 23/96, de 26/07, pelo que o Tribunal "a quo" praticou um erro na determinação da norma aplicável;
- Devia o ter o Tribunal “a quo" ter antes aplicado o artº 310, da al. g), do C. Civil.
- Caso assim não se entenda, a prescrição prevista no artº 10, nº1, da Lei 23/96, de 26/07, tem natureza presuntiva e não extintiva, pelo que devia ter sido interpretada pelo Tribunal "a quo" como uma prescrição presuntiva.
- O prazo de seis meses ali aludido, refere-se unicamente ao direito a enviar a factura e não ao direito de exigir judicialmente o crédito pelo serviço prestado pelos operadores dos SMT;
- Após o envio da factura dentro daquele prazo de seis meses, o direito de exigir o pagamento pelos serviços prestados operadores dos SMT, prescreve no prazo de cinco anos, nos termos do al. g) do artº 310, do C. Civil, norma que devia ter sido aplicada ao caso sub judice;
- Assim, e contrariamente ao decidido pelo "Tribunal a quo" o crédito da apelante não prescreveu”.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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1. Do objecto do recurso
Estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
É aplicável ao crédito resultante do fornecimento de serviços de telefone móvel o prazo prescricional constante do artº 10º, nº 1, da Lei 23/96, de 26/7?
Sendo aplicável esse prazo o mesmo respeita a uma simples prescrição presuntiva?
Esse prazo reporta-se apenas ao direito de reclamar extrajudicialmente o pagamento do preço, pelo envio da respectiva factura ao cliente, interrompendo este acto o decurso do prazo prescricional comum de 5 anos?

2. Da aplicação do prazo de prescrição de 6 meses aos créditos resultantes do fornecimento de serviços de telemóvel
A sentença considerou que a regulamentação estabelecida na Lei 23/96, de 26 de Julho, era aplicável à prestação de serviço de telefone móvel, pelo que o direito de exigir o pagamento do preço de serviço prestado pela Autora aos Réus prescrevia no prazo de seis messes após a sua prestação.
A Lei 23/96, de 26 de Julho, criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente dos serviços públicos essenciais.
Ora, o conceito de serviço público essencial, na área das telecomunicações, era apenas aplicável, em 1996, à utilização da rede fixa, explorada pela Portugal Telecom e agora também pelas novas operadoras da rede fixa.
O serviço prestado pela Apelante que é reclamado nesta acção era expressamente qualificado de serviço de telecomunicações complementares –serviço móvel terrestre (Portaria 240/91, de 23 de Setembro).
E esta denominação de complementar (aquele que completa, que acresce ao que é essencial) ao tempo da Lei 23/96, manteve-se após a publicação deste diploma, tendo a Portaria 240/91, que regia este serviço, sido alterada pela Portaria 443-A/97, de 4 de Julho, sem que a denominação de serviço fosse alterada.
Além disso, em contrapartida ao regime aplicável aos operadores do SFT, claramente norteado por interesses públicos, tendo em consideração a importância fundamental deste serviço para as cidadãos, o regime do serviço móvel terrestre conformava-se com uma natureza meramente complementar, com uma reflexão muito menor de interesses públicos na sua regulamentação.
Daí que o serviço de telecomunicações complementar – serviço móvel terrestre – prestado pela Apelante, ao contrário do que acontece com o SFT, não era um serviço público essencial e, por isso, não lhe poderia ser aplicado o disposto na Lei 23/96, de 26 de Julho [Vide, no mesmo sentido, os seguintes Acórdãos:
- da Relação de Lisboa, de 9-7-1998, na C.J., Ano XXIII, tomo 4, pág. 100, relatado por PAIS DO AMARAL.
- da Relação de Lisboa de 3-11-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por ILÍDIO SACARRÃO.
- da Relação de Lisboa, de 23-2-2006, no site www.dgsi.pt, relatado por GRANJA DA FONSECA.].
Mas a entrada em vigor do DL 381-A/97 introduziu uma alteração de concepção do serviço móvel, estabelecendo, também, um regime específico quanto à prescrição do preço dos serviços prestados aos clientes. Este diploma, no seu artigo 16º, n.º 2, contém norma idêntica ao citado n.º 1, do artigo 10º, da Lei 23/96, dispondo que “o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”. Esclarecendo no n.º 3 do mesmo artigo que, “para efeitos do número anterior, considera-se exigido o pagamento com a apresentação de cada factura”. No mesmo sentido dispõe o artigo 9º do mesmo diploma, em cujo n.º 4 se estabelece que “o direito de exigir o pagamento do preço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”. E no n.º 5 que, “para os efeitos do número anterior, tem-se por exigido o pagamento com a apresentação de cada factura”.
Era esta a legislação que se encontrava em vigor [O D.L. 381-A/97 foi entretanto revogado pela Lei 5/2004, de 10 de Fevereiro.] na época em que se teriam constituído os créditos reclamados na presente acção e em que teria decorrido o referido prazo de prescrição de 6 meses, pelo que é ela a aplicável.

3. Da natureza dos prazos de prescrição
Quer isto dizer que o legislador estendeu o regime até então aplicável aos serviços de telecomunicações públicos essenciais a todos os operadores de telecomunicações de uso público, incluindo, portanto, a Apelante, tendo introduzido uma norma interpretativa daquela disposição: “para os efeitos do n.º anterior, tem-se por exigido o pagamento com a apresentação de cada factura (artigo 9º, n.º 5), afastando claramente a necessidade de interpelação judicial para interrupção do efeito da prescrição do direito de exigir o pagamento (artigo 323º, n.º 1 CC).
Poder-se-á, portanto, considerar que o legislador estabeleceu dois regimes de prescrição de natureza e objecto diferenciados:
a) – O regime geral, respeitante à prescrição de prestações (em geral de natureza pecuniária), previsto no artigo 300º e seguintes do CC, cuja interrupção apenas se pode produzir com a interpelação judicial do devedor;
b) – Um regime especial, apenas aplicável aos serviços prestados por operadores de telecomunicações de uso público, respeitando à prescrição do direito de exigir o pagamento, que se impede com a apresentação de cada factura ao devedor e que tem natureza extintiva, atenta a forma como está consagrado na lei.
Não esteve na mente do legislador pretender reduzir um prazo de prescrição, que era de cinco anos, para um exíguo prazo de seis meses, fazendo, na prática, coincidir o prazo para a remessa da factura com o prazo para exigir judicialmente o pagamento do crédito por ela titulado.
O que o legislador pretendeu foi que, para além do prazo de cinco anos, como prazo de prescrição comum, existisse um outro prazo para que os serviços de telefone apresentassem aos seus clientes as facturas correspondentes aos serviços prestados [Criou-se um regime semelhante aos diferentes prazos de caducidade dos direitos do dono da obra no contrato de empreitada em caso de realização de obra defeituosa, em que existe um prazo para a denúncia do defeito e outros prazos para o seu exercício judicial.]. Isto por não se justificar que, estando aqueles serviços munidos de toda a tecnologia e só eles dispondo dos elementos concretos, estivessem largos meses sem enviar a factura dos serviços prestados.
O prazo de 6 meses de prescrição é extintivo do direito do Autor, mas a apresentação da factura relativa ao respectivo crédito nesse prazo de 6 meses é impeditiva da prescrição [Vide, neste sentido, MENEZES CORDEIRO, em “Da prescrição do pagamento dos denominados serviços públicos essenciais”, em “O Direito”, Ano 133(2001), nº 4, pág. 769-810, e os seguintes Acórdãos:
- da Relação do Porto, de 11-3-2002, no site www.dgsi,pt, relatado por COUTO PEREIRA.
- da Relação do Porto, de 25-3-2004, no site www.dgsi.pt, relatado por JOÃO BERNARDO.
- do S.T,J., de 13-5-2004, no site www.dgsi.pt, relatado por SILVA SALAZAR.
- da Relação do Porto, de 28-6-2004, no site www.dgsi.pt, relatado por SOUSA LAMEIRA.
- da Relação do Porto, de 21-9-2004, no site www.dgsi.pt, relatado por CAIMOTO JÁCOME.
- da Relação do Porto, de 3-3-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por PINTO DE ALMEIDA.
- da Relação do Porto, de 4-4-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por ORLANDO NASCIMENTO.
- da Relação do Porto, de 12-4-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por MARQUES CASTILHO.
- da Relação do Porto, de 21-4-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por GONÇALO SILVANO.
- da Relação de Lisboa, de 12-5-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por ILÍDIO SACARRÃO.
- da Relação do Porto, de 23-5-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por PINTO FERREIRA.
- da Relação do Porto, de 7-6-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por MARQUES CASTILHO.
- da Relação do Porto, de 7-7-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por PINTO DE ALMEIDA.
- da Relação de Lisboa, de 23-2-2006, no site www.dgsi.pt, relatado por GRANJA DA FONSECA.
- da Relação do Porto, de 14-3-2006, no site www.dgsi.pt, relatado por EMÍDIO COSTA.
- da Relação de Lisboa, de 20-6-2006, no site www.dgsi.pt, relatado por ESPÍRITO SANTO.
- da Relação do Porto, de 10-7-2006, no site www.dgsi.pt, relatado por FONSECA RAMOS.].

4. Conclusão
Ora, na presente acção, proposta em 6-6-2003, a Autora, reclama o pagamento de serviços de telefone móvel que alega ter fornecido em 1999 e 2000, tendo enviado aos Réus as respectivas facturas dentro do referido prazo de 6 meses. Como os Réus foram citados ainda no decurso do ano de 2003, segundo a versão dos factos apresentada pela Autora não se verifica o decurso de qualquer dos prazos de prescrição acima referidos, pelo que não podiam os créditos reclamados serem julgados prescritos, em sede de despacho saneador, sem oportunidade de produção de prova sobre as datas de fornecimento dos serviços em causa e da apresentação das respectivas facturas.
Deste modo, deve ser julgado procedente o recurso interposto pela Autora, revogando-se a decisão que julgou procedente a excepção de prescrição dos créditos peticionados, por não estarem apurados todos os elementos necessários ao seu julgamento, e determinando-se o prosseguimento da acção para apuramento do mérito das defesas apresentadas pela Ré e do pedido formulado pela Autora.
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DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pela Autora e, em consequência, revoga-se a decisão que julgou procedente a excepção de prescrição, determinando-se o prosseguimento da acção para apuramento do mérito das defesas apresentadas pela Ré e do pedido formulado pela Autora.
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Custas do recurso pelo vencido a final.
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Porto, 2 de Outubro de 2006
João Eduardo Cura Mariano Esteves
José Rafael dos Santos Arranja
Maria do Rosário Marinho Ferreira Barbosa