Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRP00037687 | ||
| Relator: | SIMÕES DE CARVALHO | ||
| Descritores: | SEGURANÇA SOCIAL ASSISTENTE | ||
| Nº do Documento: | RP200502160316410 | ||
| Data do Acordão: | 02/16/2005 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO. | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social tem legitimidade para se constituir assistente por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal (1ª) do Tribunal da Relação do Porto: No Processo n.º ../02 do -º Juízo do Tribunal Judicial da....., o ofendido/lesado Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, por não se conformar com o despacho de 01-10-2003 (cfr. fls. 11 e 12), de indeferimento da sua constituição como assistente, dele interpôs o presente recurso. A respectiva motivação é rematada com as seguintes, e únicas, conclusões (cfr. fls. 2 a 8) que se transcrevem: «1. As cotizações dos beneficiários são receitas próprias do sistema da Segurança Social e fonte de financiamento do mesmo (artigo 84, a), D.L. 17/2000, de 8 de Agosto - Lei de Bases do Sistema de Solidariedade e Segurança Social). 2. A arrecadação e cobrança das cotizações referidas na conclusão precedente compete, exclusiva e autonomamente, ao Instituto de Gestão Financeira de acordo com o preceituado no artigo 3°, n.° 2 alínea b), do D.L. 260/99, de 7 de Julho (Estatuto do I.G.F.S.S.). 3. O I.G.F.S.S. é um Instituto Público dotado de autonomia administrativa e financeira, personalidade jurídica e património próprio - artigo 1° do citado estatuto, tendo, deste modo, um interesse próprio, directo e individualizado no ressarcimento dos prejuízos efectivamente por ele sofridos aquando da não entrega pelos contribuintes das aludidas cotizações nos prazos e termos legais (vide artigo 3º, n.º 2, alínea b), do invocado estatuto), ao contrário do que acontece com a administração fiscal que mais não é do que um serviço simples do Ministério das Finanças, sem personalidade jurídica distinta do Estado, consubstanciada na estrutura da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, sendo esta sim representada pelo Ministério Público a quem cabe defender a legalidade e promoção do interesse público, sendo por aquela via titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. 4. À data dos factos em causa no processo pendente, o diploma legal que estava em vigor era o RJ.I.F.N.A. (D.L. 20-A/90, de 15 de Janeiro), o qual, no seu artigo 46º, n.º l, previa expressamente a possibilidade de a Administração Fiscal se constituir, querendo, Assistente no processo crime em que fosse ofendido/lesado. 5. Na esteira desta orientação legislativa, surgiu o R.G.I.T. (Lei n.º 15/01, de 5 de Junho), o qual, no seu artigo 50°, prevê expressamente a assistência técnica (sem definir os limites da mesma) do Ministério Público pela Segurança Social em todas as fases do processo, inclusive na sua fase Judicial (dizemos nós). 6. A referida assistência técnica a prestar pela Segurança Social ao Ministério Público não coarcta a possibilidade de se poder exprimir, também, na sua intervenção como Assistente, nos termos da alínea a), do n º l, do artigo 68º, do C.P.P., aplicável ex vi do artigo 3° do R.G.I.T.. 7. Não há qualquer incompatibilidade entre estas duas disposições normativas. 8. Nesta conformidade, mesmo que academicamente se admitisse que o artigo 50º do R.G.I.T. veio proibir a prerrogativa processual do artigo 46º do R.J.I.N.F.A., o que não se concede, sempre o I.G.F.S.S. teria a possibilidade processual de se constituir Assistente no processo crime em que fosse ofendido/lesado (tal e qual como o caso sub judice) nos termos do artigo 68º, n.º l, alínea a) do C.P.P., porque, em virtude de ser directo e imediatamente ofendido/lesado com a prática deste crime, tem um interesse próprio, imediato e individualizado que o legitima, à face da lei processual em vigor, a usar de tal prerrogativa - O interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação prevista no artigo 107º, do R.G.I.T. - O bem jurídico protegido é o erário da Segurança Social, independentemente de nestes crimes existir um interesse mediato, ou “de dever” que assume natureza pública. 9. Atente-se, ainda, que a norma do artigo 50° do R.G.I.T., ao contrário do que é dito no despacho recorrido, não reveste natureza adjectiva, mas antes substantiva e, por isso, de aplicação que não tem que ser imediata - artigo 5º, n.º do C.P.P. “a contrario senso”. 10. O Venerando Tribunal ad quem já se pronunciou sobre esta questão no âmbito do recurso nº 2227/03/1ª de 13/05/2003, onde se lê: “...o que a lei nº 15/2001 fez, foi uma coisa muito singela: tirou do seu articulado o que não devia lá estar, pois era óbvio que a Segurança Social, sendo ofendida, quando se trata de crimes contra o seu património (maxime contribuições de trabalhadores), não é preciso preceito nenhum especial para lhe permitir ser assistente no processo: basta o artigo 68º, CPP.” IV Nestes Termos e nos melhores de Direito deve o despacho recorrido ser revogado e, em consequência, ser substituído por outro que admita o I.G.F.S.S. a constituir-se Assistente e intervir nos autos nessa qualidade, fazendo-se deste modo inteira JUSTIÇA!» Admitido o recurso a subir em separado e com efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 13) e efectuadas as necessárias notificações, apresentou resposta apenas o Mº Pº, na qual conclui (cfr. fls. 14 a 17), conforme se transcreve: «Termos em que, V. Ex., Senhores Desembargadores, revogando o despacho recorrido, farão JUSTIÇA». Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, detalhado (cfr. fls. 175 a 182), defendendo que o recurso merece provimento. Apesar de ter sido dado cumprimento ao disposto no Art.º 417º, n.º 2 do C.P.Penal, nem o recorrente nem os arguidos se pronunciaram Colhidos os necessários vistos, cumpre apreciar e decidir. * Com vista a apreciação e decisão do presente recurso, e compulsados os autos, há a destacar o seguinte:- Em 04-07-2003, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social requereu a sua intervenção como assistente, nos termos e para os efeitos do Art.º 68º, n.º 1 do C.P.Penal; - Analisando esta pretensão, foi proferido o despacho recorrido (cfr. fls. 11 e 12) que, no que agora interessa, assim reza: «... Pretende o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social ser admitido a intervir nos autos como assistente. O requerente está em tempo e mostra-se representado por advogado, mas resta averiguar se gozará da indispensável legitimidade para se constituir assistente. Os presentes autos referem-se a um crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 27º-B, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de Junho, e pelo artigo 24º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15.01, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24.11, e agora previsto e punido pelo artigo 105º, n.º 1, e 107º, da Lei n.º 15/01, de 5 de Junho. Tal crime tributário assume natureza pública, porque destinado a proteger um bem jurídico supra individual de interesse comunitário, a saber: a preservação da liquidação, entrega e pagamento de prestações da Segurança Social pelas entidades devedoras, ou seja, acautela-se a necessária relação de verdade entre os contribuintes e a Segurança Social, uma das funções soberanas do Estado. Dispõe o artigo 68º, n.º l, do Código de Processo Penal, que podem constituir-se assistentes, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Ora, no caso dos autos, o titular dos interesses que constituem o objecto imediato da incriminação, tal como vimos, é o Estado, representado pelo Ministério Público, e não a requerente, que apenas se apresenta como lesada, e, por isso, com legitimidade para deduzir pedido cível, pois, do ponto de vista jurídico-criminal, “ofendido” não é a mesma coisa que “lesado” (cfr. Acórdão 12.11.2002, CJ, 2002, tomo V, página 253). E, na inexistência de lei especial, os casos de crimes públicos em que a lei admite a constituição de assistentes por particulares, são os previstos no artigo 68º, n.º l, alínea e), o que não sucede no caso dos autos. * Pelo exposto, não admito a constituição do requerente como assistente.* Sem custas, dada a isenção subjectiva prevista no artigo 2º, n.º l, alínea a), do Código das Custas Judiciais.Notifique.» * Vejamos:São as “conclusões” formuladas na motivação do recurso que definem e delimitam o respectivo objecto - art.ºs 403º e 412º do C.P.Penal. Como resulta das transcritas conclusões do recurso, a questão que se nos coloca, fundamentalmente, é a seguinte: Tem o supra aludido ofendido/lesado legitimidade para se constituir assistente quanto ao crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social? Apreciemos a apontada questão. Desde já, não podemos deixar de referir que sobre a mesma problemática se pronunciou, em termos que se têm como inequivocamente correctos, o Acórdão desta Relação de 03-11-2004, de que foi relator o Exm.º Desembargador Brízida Martins, cuja fundamentação iremos seguir de perto, por a ela aderirmos na sua globalidade. Ora, conforme resulta dos autos foi deduzida acusação pública imputando ao arguido B..... a prática de factos integradores de um crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social, p. e p. pelos art.ºs 27º-B do Decreto-Lei n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 140/95 de 14 de Junho e 24º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 20-A/90, com a redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 394/93 de 24 de Novembro e com referência aos art.ºs 6º e 9º do mesmo diploma legal e actualmente pelos art.ºs 105º, n.º 1 e 107º da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, com referência ao Art.º 6º do mesmo diploma legal Na mesma peça processual, considerou-se, também, a arguida C....., Ld.ª como responsável nos termos dos art.ºs 7º e 9º do citado Decreto-Lei n.º 20-A/90 e, actualmente, nos termos do Art.º 7º da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho. No âmbito do Decreto-Lei n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro, que aprovou o regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras (RJIFNA), o respectivo art.º 46º previa a constituição como assistente por parte da administração fiscal. A este propósito, Alfredo José de Sousa (Infracções Fiscais - Não Aduaneiras - Anotado e Comentado, Edição de 1990, pág. 153, na anotação 3. ao Art.º 46º) referia que «sendo a administração fiscal, um serviço simples do Ministério das Finanças, sem personalidade jurídica distinta do Estado, consubstanciada na estrutura da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, deveria ser representada pelo Ministério Público a quem cabe defender a legalidade e promover o interesse público. Nos processos contenciosos fiscais cabe à estrutura da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, nos seus diversos escalões hierárquicos defender os legítimos interesses da Fazenda Pública (art.ºs 72º e 73º do ETAF) nos tribunais fiscais. O legislador optou, todavia, nos processos por crimes fiscais, pelo regime da constituição de assistente por parte da administração fiscal.» E acrescenta o mesmo autor, na anotação 4. ao mesmo preceito legal: «Todavia, se o Ministério Público se abstiver de deduzir acusação pelo crime fiscal objecto do processo de averiguação, o assistente em representação da administração fiscal não poderá fazê-lo, uma vez que os crimes são públicos. Só se o Ministério Público deduzir acusação é que o assistente pode deduzir acusação dentro do condicionalismo do art.º 284º do C.P.Penal pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles». O legislador reconhecendo, por um lado a ineficácia do quadro sancionatório dos regimes de segurança social para prevenir a violação dos preceitos legais relativos ao cumprimento das obrigações dos contribuintes perante a segurança social, e por outro lado, considerando quer a natureza dos interesses humanos e sociais que estão em causa, quer a indispensável tomada de medidas que combatessem eficazmente tal situação e conduzissem à consciencialização dos cidadãos quanto a tais valores sociais, bem como ao afastamento da convicção de uma certa impunidade pelas infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social, veio alargar o campo de aplicação do RJIFNA às infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social pelos respectivos contribuintes, definindo e penalizando os crimes contra a segurança social, através do Decreto-Lei n.º 140/95 de 14 de Junho (vide o respectivo preâmbulo). Nesta conformidade, veio ser aditado o Capitulo II, do Decreto-Lei n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro, «Dos Crimes Contra a Segurança Social» pelo mencionado Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de Junho, no qual se incluem os art.ºs. 27º-A a 27º-E, ao RJIFNA, que prevêem precisamente os crimes de fraude à segurança social (art.º 27º-A), abuso de confiança em relação à segurança social (art.º 27º-B), frustração de créditos da segurança social (art.º 27º-C) e violação de sigilo sobre a situação contributiva (art.º 27º-D). A Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, veio aprovar o Regime Geral das Infracções Tributárias, (RGIT), revogando o regime anterior (RJIFNA).Assim, incluem-se no âmbito de aplicação do RGIT os crimes relativos às normas reguladoras das contribuições para a segurança social, ficando, porém, fora do seu âmbito de aplicação as respectivas contra-ordenações que venham a ser reguladas por lei especial. Os crimes contra a segurança social vêm previstos no Capítulo IV do RGIT, designadamente nos art.ºs 106º e 107º, sendo o processo penal tributário regulado nos art.ºs 35º a 50º. No âmbito do mencionado diploma não se prevê agora a constituição como assistente por parte quer da administração tributária quer da Segurança Social, prevendo apenas a assistência técnica ao Ministério Público em todas as fases do processo, por parte da administração tributária ou da segurança social, através da designação de um agente da administração ou de um perito tributário (art.º 50º). Aqui chegados, após esta breve resenha legislativa dos crimes de natureza tributária e dos crimes contra a segurança social, importa, pois, saber se o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pode ou não intervir como assistente em processos penais em que estão em causa crimes contra a segurança social, tendo em atenção que o actual regime (RGIT), contrariamente ao anterior (RJIFNA), não contém qualquer norma que admita a administração tributária ou a segurança social a intervir como assistente nos autos. Importa, pois, definir, à luz do Art.º 68º do C.P.Penal, qual o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime: O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o imediato pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm ofendido particular; só o têm aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou um direito de que é titular um particular. Conforme se refere no Acórdão do S.T.J. n.º 1/2003 de 16-01-2003, para Fixação de Jurisprudência, (in D.R. I-A, de 27-02-2003), o vocábulo «especialmente» usado pela lei significa de modo especial, num sentido de «particular», e não exclusivo. O art.º 68º, n.º l, alínea a) do C.P.Penal, ao utilizar a expressão, que se podem constituir como assistentes «os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação», significa que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido, da supra citada norma, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos. «A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa», sendo, em especial, forçoso «interpretar o tipo incriminador em causa, em ordem a determinar caso a caso, se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime... . E esta análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente» (vide o sobredito Acórdão do S.T.J. para fixação de jurisprudência). Analisando, pois, o bem jurídico protegido pelos tipos legais em causa, ou seja, os crimes contra a segurança social, e, em especial, o crime de abuso de confiança em relação à segurança social, impõe-se, de imediato, referir que a Constituição da República Portuguesa consagra no seu art.º 103º, n.º 3, como princípio geral, que «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição...», e, no seu art.º 63º, n.º l, estatui, ainda, que «Todos têm direito à segurança social», sendo que, nos termos do n.º 2, do mesmo preceito constitucional, «Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários.» Conforme afirma Alfredo José de Sousa (Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, Vol. II, pág. 156), «... todos são obrigados a pagar impostos criados nos termos da Constituição. Ora, para garantir o cumprimento desta obrigação fundamental que impende sobre os cidadãos, o ordenamento jurídico-fiscal teceu a mais complexa rede de cautelas e sanções, envolvendo não só o contribuinte mas todas as pessoas e instituições cujas relações com ele possam revelar capacidade contributiva. Além da obrigação principal de pagar imposto a lei impõe ao contribuinte e a terceiros certos deveres acessórios, tendentes a revelar ou obstar à ocultação da matéria tributável (dever de apresentar declarações à administração fiscal, dever de possuir escrita documentadora das suas actividades económicas, dever de exibir documentos ou de os manter arquivados, etc.). E a lei vai ao ponto de impor a terceiros a obrigação de pagar o imposto depois de o deduzir no rendimento que tem de pôr à disposição do contribuinte de facto. Assim se chega ao conceito de infracção fiscal como a violação culposa das obrigações fiscais acessórias - pelo contribuinte ou terceiros - ou da obrigação principal do pagamento do imposto, quando deva ser o contribuinte a determinar o seu montante e a entregá-lo em certos prazos nos Cofres do Estado, para o qual a lei comina a pena de multa, e por vezes, a pena de prisão, apenas ou cumulativamente com sanções acessórias». Ou seja, nos crimes contra a segurança social, e em especial nos crimes de abuso de confiança em relação à segurança social, se o bem jurídico protegido é de interesse e ordem pública, por via da incumbência atribuída ao Estado, pelo Art.º 63º, n.º 2, da C.R.P., de “organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social”, com vista à defesa dos interesses públicos subjacentes às normas reguladoras dos regimes de segurança social, corporizado num concreto portador, também aí imediatamente se protege o património da segurança social, concretizado na função de arrecadação das contribuições que lhe são devidas. É esse bem jurídico que se verifica ser directamente lesado quando as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, o não entregam às instituições de segurança social. Em suma, o titular do bem jurídico protegido é o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, enquanto titular de interesses legítimos, ou seja, o interesse de ver asseguradas as respectivas prestações sociais, resultantes dos descontos efectuados nas remunerações dos trabalhadores, e que estes venham a beneficiar de tais descontos. Por outro lado, há que não confundir as entidades referidas no Art.º 41º, alínea b) do RGIT, relativamente aos crimes fiscais, - director de finanças que exercer funções na área onde o crime tiver sido cometido ou o director da Direcção de Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária nos processos que venham a ser indiciados por aquela no exercício das suas funções - com o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. Todas aquelas entidades referidas na supra aludida norma estão inseridas num serviço mais amplo que é a respectiva Direcção-Geral dos Impostos que, por sua vez, está inserida na respectiva Secretaria de Estado das Finanças, e esta no respectivo Ministério. O encadeamento desta estrutura hierarquizada resulta do modelo da Administração (neste caso da Administração Tributária) que o nosso sistema constitucional prevê. Daí que estes serviços não tenham autonomia administrativa, não sendo entes dotados de personalidade jurídica distinta da do Estado, nem de qualquer autonomia. Contrariamente, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social não faz parte de nenhuma hierarquia no seio da administração pública, uma vez que está dotado de autonomia administrativa e financeira, de personalidade jurídica e de património próprio (Art.ºs 1º e 3º, n.º l, do Estatuto do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social aprovado pelo Decreto-Lei n.º 260/99 de 7 de Julho), inserindo-se na chamada administração indirecta do Estado, tal como estavam os Centros Regionais de Segurança Social e a quem cabe a gestão financeira unificada dos recursos económicos consignados no orçamento da segurança social. Daqui se conclui que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, enquanto órgão com autonomia administrativa e financeira, dotado de personalidade jurídica e de património próprio, é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, nos crimes contra a segurança social, e em especial, nos crimes de abuso de confiança em relação à segurança social, uma vez que tem por objectivo a gestão financeira unificada dos recursos económicos consignados no orçamento da segurança social, exercendo as suas atribuições nas áreas do planeamento, orçamento e conta dos contribuintes, do património e da gestão financeira do sistema de segurança social e a quem a lei atribui competência para, além do mais, assegurar e controlar a cobrança das contribuições e das formas de recuperação da divida à segurança social e receber as contribuições, assegurando e controlando a sua arrecadação, bem como a dos demais recursos financeiros consignados no orçamento da segurança social - Art.º 3º, n.ºs l e 2, alíneas b) e d)-ii) do já referido Estatuto da Segurança Social, sendo, assim, ofendido, nos termos e para os efeitos do disposto no Art.º 68º, n.º l, do C.P.Penal, e tendo, por isso, legitimidade para intervir nestes processos como assistente. Refira-se, por último, que a lei ao consagrar no Art.º 50º do RGIT a assistência técnica, por parte da administração tributária e da segurança social, ao Ministério Público, não se confunde com o instituto da assistência, previsto nos Art.ºs 68º e 69º do C.P.Penal. Por toda esta argumentação, com a qual inteiramente se concorda, a igual conclusão se tem de chegar no caso sub judice. O recurso merece, pois, provimento. * Por todo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que admita o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a intervir nos autos como assistente. Sem tributação. * Porto, 16 de Fevereiro de 2005José Manuel da Purificação Simões de Carvalho Maria Onélia Madaleno Élia Costa de Mendonça São Pedro |