Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0634739
Nº Convencional: JTRP00039775
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: TRANSACÇÃO
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RP200611230634739
Data do Acordão: 11/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 694 - FLS 197.
Área Temática: .
Sumário: As declarações negociais emitidas na transacção têm de ser interpretadas de acordo com as regras estabelecidas nos artºs 236º e seguintes do CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………. e mulher C………. deduziram embargos de executado por apenso à execução para prestação de facto que lhes moveram D………. e mulher E………. .
Como fundamento, invocaram o cumprimento integral da transacção lavrada nos autos principais. Pediram ainda a condenação dos embargados como litigantes de má fé.
Os embargados contestaram, impugnando os factos alegados pelos embargantes.
Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou os embargos totalmente procedentes e julgou extinta a execução.
Inconformados, os embargados recorreram, formulando as seguintes

Conclusões
1ª – Quer a letra, quer o espírito que assistiram o termo de transacção que regulou e extinguiu o conflito que opunha embargantes e embargados, são bem claros.
2ª – Referem, peremptoriamente, que sobre o muro nada poderá ser colocado, inclusive caleiros.
3ª – Em face do momento em que a transacção foi elaborada, a obra nova era muro novo, e o novo muro era futuro.
4ª – Sendo futuro, como é, nada sobre ele ou sobre o seu espaço aéreo poderia ser colocado.
5ª – A hipótese aludida no final da cláusula 3ª exigia futuro consenso e dispunha, quanto a ela, antecipadamente as condições da sua eventual existência.
6ª – Não contraria toda a intenção das partes em manterem o novo muro livre.
7ª – Aliás, antes da elaboração da transacção, não havia qualquer caleiro sobre o muro velho, nem poderia haver.
8ª – A parte superior do muro velho e o caleiro ali existente, contra o qual se reclamava, distavam, entre si, cerca de um metro e meio.
9ª – Em face disto, a colocação de um novo caleiro, apoiado na parte superior do muro e suportado pela própria chapa que o recobre, é uma violação do acordado.
10ª – Está, como se disse na execução, a causar infiltrações de águas no próprio muro.
11ª – A sua existência, conjugada com a chapa de cobre que cobre o cimo do muro, formam quase uma peça só.
12ª – Isto não está consentido em lado algum.
13ª – Está provado que os embargantes não retiraram o caleiro, nem a cobertura que já existia no respectivo prédio e que propende sobre o muro, em cerca de 4 cm.
14ª – Não é verdade o caleiro que existia sobre o primitivo muro antes de ser alteado ter sido recolocado, ocupando a metade do muro do lado do prédio dos embargantes.
15ª - O caleiro que existia ocupava parte do espaço aéreo do velho muro e não estava colocado sobre ele.
16ª – Sobre o velho muro apenas existiam ferros e rede.
17ª – O artº 16º da petição inicial da acção declarativa di-lo com toda a clareza.
18ª – Por isso, o novo caleiro que os embargantes colocaram sobre o novo e futuro muro é irregular.
19ª – A manutenção da ponta da cobertura e ferros sobre o espaço aéreo do novo muro são irregulares.
20ª – Como os embargantes não regularizam voluntariamente esta situação, deixando o muro livre, quer no seu aspecto físico, quer no espaço aéreo, a execução deverá prosseguir para a regularização coactiva de tais situações.

Os embargantes não contra-alegaram.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
A matéria de facto considerada provada pelo tribunal recorrido não foi impugnada, pelo que se tem como assente.
É a seguinte:

Teor da transacção alcançada na acção ordinária …/99 que se passa a reproduzir:
“1. Autores e réus comprometem-se a altear o muro de vedação dos seus prédios para a altura que a placa da garagem ali existente apresenta actualmente, sendo este, exclusivamente, o objecto da presente transacção.
2. Tal muro será construído em blocos de cimento de 15 cm de largura, rebocado por ambos os lados e terá a extensão compreendida entre a parede da dita garagem e o tranqueiro existente junto aos portões de entrada de ambos os prédios, junto à via pública.
3. O muro terminará ao cimo por uma beirada construída em tijolo de 7 cm de largura, assente, verticalmente, sobre a metade voltada para o prédio dos Autores, de tal forma que se sobre o mesmo muro for colocado algum caleiro, este não seja visível do prédio dos Autores e para ele não caiam quaisquer águas de transbordo.
4. O “ângulo” assim formado no cimo do muro, pela largura disponível deste e pela aludida beirada, será revestido em toda a sua extensão por uma chapa de cobre, que isole toda a largura do muro e o sobrace em 10 cm de cada lado, ou seja, 10 cm para a parte dos autores e 10 cm para a parte dos réus, para que as águas não se infiltrem no interior do mesmo e possam causar danos na sua pintura.
5. O muro de vedação assim construído não poderá ser, futuramente, usado, inclusive no espaço aéreo existente sobre o mesmo, quer pelos autores, quer pelos réus, para o que quer que seja e no mesmo apenas poderão ser realizados trabalhos de reparação e manutenção, ficando, assim, desde já, excluídas quaisquer funções de suporte de estruturas, coberturas, grades, redes, painéis e quaisquer outras.
6. A construção da nova parte do muro será executada por firma ou construtor civil a determinar pelos mandatários dos autores e dos réus e o seu custo final será suportado na proporção de 50% pelos mesmos autores e réus, os quais se comprometem a liquidar nos escritórios dos respectivos mandatários, no prazo de 48 horas a contar da data em que a respectiva quota-parte lhes for exigida, mediante exibição da competente factura.
7. Para que melhor se apresente esteticamente, a parte do muro a construir desenhará, junto ao caminho público, uma reentrância, com as proporções que o construtor entender convenientes, mas nunca de altura inferior a 100 cm do nível do muro actualmente existente.
8. Os autores comprometem-se a limpar, por si ou interposta pessoa, a parte superior do muro ou o caleiro que vier a ser colocado na parte desnivelada contígua à platibanda, sempre que tal se torne necessário e os Réus lhes solicitem, através de qualquer meio, a fim de que o lixo não impeça o livre escoamento das águas das chuvas, salvo se tal trabalho puder ser feito pelos réus sem terem que se servir do prédio dos autores.
9. Como o muro actualmente existente e a parte que ao mesmo será acrescida, termina e terminará no tranqueiro existente junto à via pública, aos réus competirá, em exclusivo, zelar e pintar o mesmo tranqueiro, excepto na parte voltada para o prédio dos autores, que será pintada por estes.
10. Autores e réus poderão revestir e pintar o muro do lado dos respectivos prédios com as matérias e tintas que tiverem por convenientes, cabendo-lhes, no entanto, suportar a meias, o custo de qualquer reparação de que o muro venha a carecer e não seja imputável à acção ou omissão de cada um deles porque, neste caso, quem custeará reparação será a parte que deu causa aos danos
11. Os autores desistem da instância quanto ao pedido formulado na alínea a) da petição Inicial, que os réus aceitam.
12. As custas em dívida serão suportadas por autores e réus em partes iguais, prescindindo ambos de procuradoria na parte disponível e custas de parte.”
Os executados/embargantes não retiraram o caleiro nem a cobertura que já existia no respectivo prédio, e que propende sobre o muro, em cerca de 4 cm.
O caleiro que existia sobre o primitivo muro antes de ser alteado, foi, após a obra, recolocado, ocupando a metade do muro do lado do prédio dos embargantes.
A cobertura existente no prédio dos embargantes já aí se encontra, sem qualquer alteração, há mais de 15 anos.
Ou seja, não foi objecto de qualquer renovação nem alteada.
Em relação à cobertura, ficou tudo da mesma forma.
Os embargantes mantiveram a cobertura que propende cerca de 4 cm sobre o dito muro, na parte onde existe o caleiro para recolher as águas dessa cobertura.
*
III.
Questão a decidir (delimitada pelas conclusões da alegação dos embargados - artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC):
- Se os embargantes não cumpriram as obrigações emergentes da transacção efectuada nos autos principais.

Adiantamos desde já que a sentença recorrida não nos merece qualquer censura, e que pouco mais se nos oferece dizer para além do que dela consta.

A execução de que os presentes embargos são dependência é uma execução para prestação de facto e funda-se em sentença homologatória de transacção.
Pode ser fundamento de oposição à execução para prestação de facto baseada em sentença o cumprimento posterior da obrigação, provado por qualquer meio (artº 933º, nº 2 do CPC – na redacção anterior à entrada em vigor do DL 38/03 de 08.03, aqui aplicável).

Pela transacção efectuada na acção declarativa, os embargantes e os embargados comprometeram-se a altear o muro de vedação dos seus prédios.
Nos termos da cláusula 5ª da transacção, o muro de vedação alteado não poderia, futuramente, ser usado, inclusive no seu espaço aéreo, nem pelos embargantes, nem pelos embargados, para o que quer que fosse, ficando excluídas quaisquer funções de suporte de estruturas, coberturas, grades, redes, painéis e quaisquer outras.
Está provado que os embargantes não retiraram o caleiro nem a cobertura que já existia no seu prédio e que propende sobre o muro em cerca de 4 cm, e que o caleiro que existia sobre o primitivo muro, antes de ser alteado, foi, após a obra, recolocado, ocupando a metade do muro do lado do prédio dos embargantes. Mais se provou que a referida cobertura já existe no prédio dos embargantes há mais de 15 anos, sem qualquer alteração e que não foi objecto de qualquer renovação nem foi alteada.

Sustentam os embargados que a recolocação do caleiro no muro, após este ter sido alteado, viola o disposto na cláusula 5ª da transacção.

A transacção é um contrato, pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (artº 1248º, nºs 1 e 2 do CC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem).
As declarações negociais emitidas na transacção têm de ser interpretadas de acordo com as regras estabelecidas nos artºs 236º e seguintes do CC.
Dispõe o artº 236º, nº 1 que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
A regra geral ali enunciada é a de que a declaração negocial vale com o sentido que seria apreendido por um declaratário normal, entendendo-se por declaratário normal uma pessoa de conhecimento e diligência médios.
Exceptuam-se os casos de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2 do normativo citado) e de não poder ser razoavelmente imputado ao declarante o sentido que um declaratário normal possa extrair da sua declaração (parte final do nº 1 do mesmo normativo).
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[1] consagra-se no artº 236º uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.
A prevalência do sentido objectivo da declaração explica-se pela necessidade de proteger as legítimas expectativas do declaratário e não perturbar a segurança do tráfico.
Como refere Mota Pinto[2], para as posições objectivistas o intérprete não vai pesquisar a vontade efectiva do declarante, mas um sentido exteriorizado ou cognoscível através de certos elementos objectivos. O objecto da interpretação não é a vontade como “facto da vida anímica interior”, mas a declaração como acto significante. É uma interpretação normativa e não uma interpretação psicológica. Não dá relevo à vontade real do declarante, nem sequer necessariamente à vontade real do declaratário.
De entre as doutrinas objectivistas, destaca-se a teoria da impressão do destinatário que é precisamente a que foi acolhida no nº 1 do artº 236º e que acima se enunciou e que “É a mais justa por ser a que dá tutela plena à legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração”[3].
Se as regras do artº 236º não puderem definir o sentido da declaração, aplica-se o disposto no artº 237º: nos negócios gratuitos, prevalece o sentido menos gravoso para o disponente; nos negócios onerosos, o que conduzir a um maior equilíbrio das prestações.
A transacção é um negócio formal (cfr. artº 1250º).
“Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” (artº 238º, nº 1 do CC).
O sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento pode, no entanto, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (nº 2 do mesmo normativo).
Finalmente, nos casos omissos, observar-se-á o disposto no artº 239º: na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta.
Na integração das lacunas da declaração negocial, aquele normativo manda atender à vontade hipotética ou conjectural das partes, ou seja, a que elas teriam se houvessem previsto o ponto omisso. Estabelece todavia que o juiz se deve afastar daquela vontade das partes quando esta contrarie os ditames da boa fé: neste caso, a declaração deve ser integrada de acordo com o que corresponda à justiça contratual (ao que as partes deveriam crer agora e não propriamente ao que deveriam ter querido)[4].

Como se diz na sentença recorrida, a cláusula 5ª da transacção efectuada por embargantes e embargados não pode ser analisada separadamente das restantes.
Interessa-nos então sobremaneira o que as partes consignaram na cláusula 3ª da transacção: se for colocado algum caleiro sobre o muro, este não poderá ser visível do prédio dos autores e para este não devem cair quaisquer águas de transbordo.
Também na cláusula 8ª, as partes fazem referência à limpeza do “caleiro que vier a ser colocado na parte desnivelada contígua à platibanda”.
Na cláusula 5ª, como já acima dissemos, consignaram que o muro e o seu espaço aéreo não podia ser futuramente usado para o que quer que fosse, incluindo para função de suporte de estruturas, coberturas, grades, redes, painéis e quaisquer outras.
Ou seja, na cláusula 5ª, as partes proibiram a utilização do muro e do seu espaço aéreo para “o que quer que seja”, designadamente para função de suporte; na clausula 3ª previram expressamente a construção de um caleiro, submetida apenas a duas condições: que este não seja visível do prédio dos embargados e que para este não caiam quaisquer águas de transbordo; e na cláusula 8ª regularam a forma de limpeza do caleiro que viesse a ser colocado.
Conjugando o teor de todas aquelas cláusulas, parece-nos que as partes expressaram perfeitamente que “o que quer que seja” para que o muro e respectivo espaço aéreo não podem ser usados e as “estruturas” que ali não podem ser colocadas não abrangem os caleiros.
Além disso, o termo “futuramente” não pode deixar de nos sugerir que o que as partes quiseram proibir foi a realização, após a reconstrução do muro, de quaisquer obras novas (com excepção de caleiros) que viessem a ocupar o muro ou o seu espaço aéreo, excluídas da previsão daquela cláusula quaisquer estruturas pré-existentes à reconstrução do muro que o ocupassem.
Nada na letra daquelas cláusulas contratuais nos permite concluir que a colocação de um caleiro teria de ser consentida por ambas as partes, como referem os embargados nas suas conclusões.
Uma tal interpretação contraria a regra do artº 238º, nº 1 e, ainda que houvesse elementos que nos permitissem concluir que seria aquela a vontade real das partes, sempre as razões determinantes da forma da transacção a ela se oporiam (nº 2 do mesmo normativo).
Pelo contrário, há elementos nos autos que reforçam a interpretação que acima demos ao teor da cláusula 5ª da transacção.
Como se diz na sentença recorrida, o que os embargantes pretenderam com a acção declarativa foi perderem de vista a cobertura da garagem do prédio dos embargantes e impedirem a colocação de quaisquer estruturas no muro do lado do seu prédio e o transbordo de águas para o seu prédio.
Toda a transacção foi elaborada com vista àquela finalidade, como se alcança das cláusulas 1ª, 3ª, 4ª.
O que nos permite concluir que a vontade real das partes foi a de permitirem a colocação de um caleiro no muro desde que o mesmo não seja visível do lado do prédio dos embargados, não esteja colocado na parte do prédio dos embargantes nem origine transbordo de águas para este.
Parece-nos ser aquele o sentido evidente da declaração negocial, de acordo com as regras dos artºs 236º e 238º, que não oferece quaisquer dúvidas nem contém omissões, pelo que, na sua interpretação, nem sequer se torna necessário recorrer às regras do artº 237º ou integrar lacunas nos termos do artº 239º.

Provou-se que os embargantes recolocaram no muro o caleiro já ali existente antes da reconstrução, o qual ocupa apenas a metade do muro do lado do prédio dos embargantes; não se provou que o caleiro seja visível do lado do prédio dos embargados nem que, por força da sua existência, as águas das chuvas escoem para este prédio.
Tanto basta para que se tenha por cumprida a obrigação exequenda, tal como ela emerge para os embargantes da transacção efectuada nos autos principais, o que acarreta necessariamente a procedência dos embargos e a extinção da execução.

Improcedem assim totalmente as conclusões dos apelantes, restando confirmar a sentença recorrida.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
***
Porto, 23 de Novembro de 2006
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Manuel Lopes Madeira Pinto
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha

_________________________________________
[1] Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 222.
[2] Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., pág. 443.
[3] Mota Pinto, obra citada, pág. 444.
[4] Mota Pinto, obra citada, págs. 455 e 456.