Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0433048
Nº Convencional: JTRP00037058
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: LETRA
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RP200407010433048
Data do Acordão: 07/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Em face da nova redacção dada à citada alínea c), do n.1, do artigo 46, é admissível que a letra – bem como os cheques e livranças – mesmo não constituindo título cambiário, possa servir de título executivo, enquanto mero documento particular, desde que obedeça aos requisitos mencionados na citada alínea.
II - E esses requisitos passam pela verificação nesse tipo de documentos da assinatura do devedor, pela constituição ou reconhecimento de obrigações e que estas se reportem ao pagamento de quantia certa ou determinável por simples cálculo aritmético, à entrega de coisas móveis ou à prestação de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO.

“Banco X............”, com sede na Rua ............., nºs ... a ..., ..............,
intentou acção executiva, sob a forma ordinária, para pagamento de quantia certa contra

“B.............., Ld.ª”, com sede na Rua ..............., n.º .., ................., ................,
e
“C..............., Ld.ª”, com sede na Rua ............., ......, .............., ..............,

pretendendo a cobrança coerciva da quantia de 4.409,73 euros (1.686.000$00), acrescida de juros de mora vencidos no valor de 1.858,90 euros e dos que se vencerem até integral liquidação daquele primeiro quantitativo, o qual era titulado por uma letra, de que era legítima portadora, do aceite da 1.ª executada e saque da 2.ª executada, não liquidada na data do seu vencimento, ocorrido em 31.1.99.

Citadas as executadas para os termos da execução, apenas a 1.ª executada – “B............., Ld.ª” – deduziu oposição, através de embargos, aduzindo que a mencionada letra não podia servir como título executivo, por se encontrar prescrito o direito de acção cambiária naquela baseado, a que acrescia dever considerar-se aquele título como falso, dado conter rasuras no local designado para o pagamento e domiciliação, para além da co-executada a ter induzido em erro na subscrição do mesmo.

A embargada exequente apresentou contestação, impugnando grande parte da factualidade alegada na petição de embargos e defendendo que o referido título, mesmo a considerar-se prescrito o direito de acção cambiária, podia sustentar o pedido executivo, dado valer como documento particular para os termos do art. 46, n.º 1, al. c), do CPC, assim estando a prescrição do direito invocado sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.
Subsequentemente, realizou-se audiência preliminar em que foi proferido despacho saneador, fixada a matéria de facto tida como assente entre as partes e organizada a base instrutória, peças estas que não foram objecto de reclamação.

Seguiu-se audiência de julgamento, tendo sido proferida decisão da matéria de facto, após o que se conheceu do mérito dos embargos, julgando-se os mesmos procedentes, nessa medida se julgando extinta a instância executiva quanto à embargante.

Para assim se concluir, entendeu-se que o direito de acção cambiária sustentado na aludida letra se encontrava prescrito, nos termos do disposto no art. 70 da LULL, a que acrescia não poder aquela funcionar como documento particular com força executiva, nos termos do art. 46, n.º 1, al. c), do CPC, posto que do mesmo não constava a causa subjacente à sua emissão e também não vinha a mesma alegada no requerimento executivo.

Do assim sentenciado interpôs a embargada recurso de apelação, tendo apresentado alegações em que concluiu pela revogação do decidido, defendendo que a letra dada à execução constituía título executivo bastante, dado tratar-se de documento particular assinado pela embargante, reconhecendo esta ser devedora de quantia determinada, assim estando a coberto da previsão do art. 46, n.º 1, al. c), do CPC e devendo, então, a lide executiva prosseguir os seus termos também contra a mesma.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do recurso, sendo que a instância mantém a sua validade.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

Enunciemos, antes de mais, a matéria de facto que vem dada como adquirida em 1.ª instância, a saber:

- No exercício da sua actividade de instituição especial de crédito, a exequente é dona e legítima portadora de uma letra de câmbio no valor de 1.686.000$00, que corresponde a 8.409,73 €, aceite da primeira executada e saque da segunda executada, junta a fls. 3 dos autos de execução;

- Tal letra não se encontra paga até à data de hoje;

- O embargante confirma que a assinatura constante na letra de fls. 3 do processo executivo é sua;

- A data de vencimento, aposta no título executivo apresentado, é de 31 de Janeiro de 1999;

- Do requerimento executivo consta a data de 26 de Fevereiro de 2002, como data de entrada na secretaria, com a menção "recebido sob registo envelope";

- A letra constante de fls. 3 do processo executivo contém rasuras na data de vencimento, na data de emissão, local de pagamento, banco e localidade e no NIB.

A questão única que constitui o objecto do recurso circunscreve-se no curar de saber se, uma vez prescrita a obrigação cartular representada na letra dada à execução, a mesma continua a valer como título executivo, enquanto escrito particular que consubstancia a obrigação subjacente inerente a tal documento, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 46, n.º 1, al. c), do CPC.

Há que reter, desde já, não ser questionável – por não ter sido posto em causa pela recorrente – que o direito à acção cambiária relativamente à letra em referência se encontra prescrito, em face do estabelecido no art. 70 da LULL, daí se impondo entrar de imediato na apreciação daquela enunciada problemática.

A solução a dar à mesma – ao contrário do que parece resultar da sentença impugnada – não tem sido pacífica quer na doutrina, quer na jurisprudência que sobre o assunto se tem debruçado – discussão que se centra em roda de título cambiário prescrito, normalmente letra ou cheque.

Neste âmbito, contrariando a possibilidade de uma letra (ou cheque) nessas condições poder servir de título executivo, enquanto mero quirógrafo, pronunciou-se Lopes Cardoso, in “Manual da Acção Executiva”, 3. ª ed., págs. 75 a 76, seguindo idêntica tese os Acs. do STJ de 4.5.99 e 29.2.00, in CJ/99, tomo 2, pág. 82 e CJ/00, tomo 1, pág. 124, respectivamente.

Outro entendimento é o daqueles que defendem que qualquer um desses títulos cambiários, enquanto documentos particulares, podem continuar a ter força executiva, desde que o exequente, no requerimento inicial, indique a relação jurídica subjacente – v., neste sentido, Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva”, 2.ª ed., pág. 54, bem assim os Acs. do STJ de 30.1.01 e de 29.1.02, in CJ/01, tomo 1, pág. 85 e CJ/02, tomo 1, pág. 64.

Por fim, pugnam outros que a ordem de pagamento concretizada numa letra ou cheque, implica, em princípio, um reconhecimento unilateral de dívida, nos termos do disposto no art. 458, n.º 1, do CC e, por isso, podendo aqueles funcionar eventualmente como títulos executivos bastantes, atento o disposto no art. 46, n.º 1, al. c), do CPC – v. Ac. do STJ de 11.5.99, in CJ/99, tomo 2, pág. 88; bem assim, na doutrina, Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 1.º, pág. 78; Anselmo de Castro, in “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, pág. 33 e Pinto Furtado, in “Títulos de Crédito”, págs. 82 e 285.

Na sentença recorrida, perfilhou-se a tese da possibilidade de a letra, apesar de prescrita a obrigação cambiária constante da mesma, poder subsistir como título executivo, desde que desse documento conste a causa da obrigação subjacente ou então essa mesma causa seja invocada no requerimento inicial da execução (trata-se da adopção da tese indicada supra em segundo lugar).
Contudo, entendeu-se que a mencionada letra não podia ser título executivo, já que da mesma não resultava a causa da relação subjacente, nem a embargada-exequente havia alegado tal causa no seu requerimento executivo.

A tese para a qual propendemos e já reflectida em outras decisões por nós tomadas vai no sentido de adoptar a posição citada em último lugar.
Analisemos.

O propósito do legislador, ao proceder à Reforma Processual entrada em vigor em 1997, teve em vista ampliar o elenco dos títulos executivos, por forma a decisivamente contribuir para a diminuição do número das acções declarativas condenatórias, assim se evitando a desnecessária propositura de acções que tivessem por alcance o reconhecimento de um direito do credor sobre o qual não havia verdadeira controvérsia, apenas tendo como finalidade facultar ao mesmo um título executivo – v. preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12.12.

Assim é que, pretendendo-se o alargamento do espectro dos títulos com força executiva, a nova redacção dada à al. c), do n.º 1, do art. 46, do CPC veio estabelecer que podem servir de base à execução os documentos particulares que contenham a assinatura do devedor e importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações, reportando-se estas ao pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, à entrega de coisas móveis ou à prestação de facto.

Desta forma, face à nova redacção dada à assinalada al. c), do art. 46, é manifesto que o legislador deixou, propositadamente, de fazer expressa referência ao que na legislação anterior fazia relativamente às letras, livranças, cheques e outros documentos, substituindo-os pela alusão a documentos particulares nas condições e com os requisitos naquela alínea mencionados – v., a propósito, Ac. da RC, de 3.12.98, in CJ/98, tomo 5, pág. 33.

Aliás, já Alberto dos Reis, escrevia, para o caso de letra prescrita, que “extinta a obrigação cambiária por virtude de prescrição, surgem as questões de saber se subsiste a obrigação causal e se, nas relações entre exequente e o executado, o escrito está em condições de valer como título particular de obrigação a que deva atribuir-se força executiva. Tais questões podem discutir-se e resolver-se na oposição à execução; da solução que lhes for dada dependerá o termo ou o seguimento da acção executiva” – in ob. e loc. cits.

Mais recentemente escreve Pinto Furtado que “prescrita a obrigação, deixaremos de estar em presença de um título de crédito … mas nem por isso desaparecerá o papel que, muito embora não seja um título de crédito, constitui decerto, ainda, um escrito particular do qual consta a obrigação de prestação de quantia determinada e a assinatura do devedor.
Ele não documentará, é certo, a inteira obrigação fundamental – mas nem por isso é preciso para poder valer como título executivo, nos termos do ‘facti species’ constante da al. c) do art. 46 do CPC; basta, para tanto, que dele conste, como efectivamente consta, a obrigação do pagamento de uma quantia determinada e esteja assinado pelo devedor executado”;
mais adiantando que “isto é, hoje em dia, particularmente mais claro, em presença da actual versão desta alínea (al.c/, do art. 46 do CPC), a qual, como se sabe, deixou de conter uma enumeração de títulos de crédito típicos … para se limitar a descrever apenas as menções que deverá conter todo o documento de dívida, em geral, para constituir um título executivo”.

E, fazendo expressa alusão ao cheque, acrescenta que “no âmbito das relações imediatas e para execução da respectiva obrigação subjacente, é quanto a nós inegável que o cheque valerá como quirógrafo dessa obrigação, com força de título executivo que lhe é dado pela al. c) do art. 46 do CPC” – in ob. e loc. cits.

Temos, assim, como certo que, em face da nova redacção dada à citada al. c), do n.º 1, do art.46, é admissível que a letra – bem como os cheques e livranças – mesmo não constituindo título cambiário, possa servir de título executivo, enquanto mero documento particular, desde que obedeça aos requisitos mencionados na citada alínea.

E esses requisitos passam pela verificação nesse tipo de documentos da assinatura do devedor, pela constituição ou reconhecimento de obrigações e que estas se reportem ao pagamento de quantia certa ou determinável por simples cálculo aritmético, à entrega de coisas móveis ou à prestação de facto.

Fixando-nos na situação dos autos, necessário se torna avaliar se do mencionado documento – letra – que serviu de base ao pedido executivo resultam todos os aludidos requisitos, de forma a poder ser considerado título executivo.

Como é sabido a letra é um título cambiário que enuncia uma ordem de pagamento que é dado por determinada pessoa (sacador) a outra (sacado) em favor do tomador ou à sua ordem.

Mas a letra, pela sua natureza de título de crédito à ordem, circula por endosso, podendo a pessoa a favor de quem a ordem de pagamento foi dada (o tomador) transmiti-la a um terceiro, que, como portador da mesma, pode exigir o seu pagamento dos anteriores obrigados.

No caso em presença, a letra dada à execução encontra-se no domínio das relações mediatas, pois que, relativamente a embargante e embargada, estas não são concomitantemente os sujeitos da relação causal que esteve na origem da emissão da aludida letra, tanto mais que face aos seus dizeres não é possível concluir-se que se está diante dum endosso impróprio, por procuração ou para cobrança.

E, porque assim sucede, incorporando a dita letra uma obrigação abstracta relativamente à embargada, enquanto beneficiária daquele endosso, cremos que da mesma não resulta o reconhecimento de uma obrigação pecuniária da parte da embargante para com aquela (embargada/exequente), por forma a valer como promessa de cumprimento de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida nos termos do disposto no art. 458 do CC.

É que, para estarmos perante um tal reconhecimento, importaria que do mencionado título resultasse que a embargante-executada se reconhecia devedora à embargada-exequente da quantia que no mesmo vem titulada, o que não sucede no caso em presença, pois que a responsabilidade daquela apenas lhe pode ser assacada por força dos princípios de abstracção e literalidade que caracterizam tal título de crédito.

Ora, tendo a embargada estruturado o seu pedido executivo nessa base e não podendo o aludido documento encerrar o reconhecimento de dívida por parte da embargante para com a embargada, nos termos do disposto no art. 458 do CC, então não é possível concluir-se que o mesmo tem força executiva para os termos do art. 46, n.º 1, al. c), do CPC.

Seguindo este raciocínio e percorrendo caminho algo diferente do expendido na decisão impugnada, levados somos a concluir que a letra dada à execução, já após ter prescrito o direito à respectiva acção cambiária, não pode também servir como documento particular com força executiva, capaz de sustentar o desencadear da acção daquela natureza instaurada contra a recorrida-embargante

3. CONCLUSÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, assim se confirmando, ainda que com argumentação não totalmente coincidente, a sentença recorrida.

Custas a cargo da apelante.
Porto, 1 de Julho de 2004
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho