Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1021/09.3GDGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Nº do Documento: RP201106011021/09.3GDGDM.P1
Data do Acordão: 06/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: ANULADO O PROCESSADO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A acusação particular que, imputando ao arguido um crime de injúria do art.181º, nº 1, do Código Penal, não descreve os factos integrantes do elemento subjectivo da infracção, deve ser rejeitada, por ser manifestamente infundada, mesmo que o Ministério Público, no momento indicado no nº 3 do art. 285º do Código de Processo Penal, acrescente os factos em falta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1021/09.3GDGDM.P1

Acordam em conferência na 1ª secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
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1. Por sentença de 8 de Outubro de 2010, foi a arguida B… condenada nos seguintes termos:
a) Pela prática do crime de Injúria, p. e p. pelo artº 181º, nº 1 do CP na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros), num total de €350,00 (trezentos e cinquenta euros);
A pagar ao demandante civil C… a quantia de €500,00 (quinhentos euros), indo absolvida do demais peticionado.
2. Inconformada, veio a arguida interpor recurso, apresentando, em súmula, as seguintes razões de discórdia:
a) Considera que a acusação particular não narra nem alega qualquer factualidade alusiva à intenção e ao resultado tido em vista e produzido pela alegada conduta da arguida, sendo pois completamente omissa quanto ao elemento subjectivo do tipo legal de crime que pretende imputar à arguida, razão pela qual deveria ter sido rejeitada;
b) Entende que a matéria de facto dada como assente deve ser alterada e dada como não provada, por considerar que ocorreu erro de julgamento;
Consequentemente, pretende que seja revogada a Sentença recorrida e substituída por outra que declare a ilegalidade da acusação particular acrescentada pela acusação do Ministério Público; ou caso assim não se entenda, seja revogada a Douta Sentença recorrida e substituída por outra que, decidindo de forma diversa sobre os concretos pontos da matéria de facto apontados supra, absolva a arguida da prática do crime e do pedido de indemnização civil
3. O Ministério Público respondeu à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.
4. O recurso foi admitido.
5. O Sr. Procurador-Geral Adjunto, quando o processo lhe foi com vista, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
6. Foi cumprido o disposto no artº 417 nº2 do C.P.Penal.
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II – questões a decidir.
A. Da ausência do dolo em sede de acusação particular e seu suprimento pelo MºPº.
B. Reapreciação da matéria de facto dada como provada e não provada.
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iii – fundamentação.
A. Da ausência do dolo em sede de acusação particular e seu suprimento pelo MºPº.
1. É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelo tribunal “a quo”:
1. No dia 14 de Setembro de 2009, da parte da manhã, o assistente encontrava-se junto à sua residência, na esplanada do D…, em Gondomar, quando foi abordado pela arguida que, dirigindo-se a ele, na presença de terceiros e num tom de voz elevado, disse: “Grande filho da puta, corno, vai para a puta que te pariu, quando o meu marido chegar vai-te foder os cornos”.
2. Após ter proferido tais expressões abandonou o local.
3. A arguida actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo ser proibida e punida por lei a sua conduta.
Mais se provou que:
4. No CRC da arguida não se encontra registada qualquer condenação.
5. A arguida não mostrou arrependimento pela sua apurada conduta.
6. A arguida é auxiliar num jardim infantil, aufere €475,00 por mês, é casada, o marido ganha €600,00, tem 2 filhos a cargo, paga €149,00 de renda de casa, tem outros encargos no montante mensal de €200,00, está habilitada com o 9º ano de escolaridade.
7. É respeitada e considerada no seu meio social de inserção.
Do pedido de indemnização civil:
8. Com a conduta supra-descrita o demandante sentiu-se envergonhado e humilhado.
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2. A acusação particular tem o seguinte conteúdo, no que à parte criminal respeita:
No dia 14 de Setembro de 2009, pelas 10 h. 35 m., o assistente encontrava-se junto à sua residência, na esplanada do D…, em Gondomar, acompanhado por dois amigos e a Srª E…, mãe da dona do indicado café, quando inesperadamente foi abordado de forma verbal em termos indecorosos pela arguida.
Ora, a arguida chegada ao referido local onde se encontrava o assistente e, sem discussão prévia, de imediato se dirigiu a este em tom de voz alta, e proferiu os seguintes impropérios: “Grande filho da puta, corno, tu sabes que és corno, vai para a puta que te pariu, quando o meu marido chegar vai-te foder os cornos” e após proferir estas injúrias e ameaças abandonou o local.
O assistente e a arguida habitam o mesmo edifício, sendo que, os insultos e ameaças proferidas por esta se vão repetindo amiúde.
Face ao exposto, a arguida cometeu, em autoria material, um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181 nº1 do C.Penal, pelo qual deve ser condenada.
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3. O MºPº, em vista aberta após a entrada de tal acusação, profere o seguinte despacho:
Nos termos do disposto no artº 285 nº4 do C.P.Penal, o MºPº também faz sua a precedente acusação, acrescentando-lhe que a arguida agiu livre e conscientemente, com a intenção concretizada de ofender o assistente na sua honra e consideração e que a sua atitude é proibida e punida por lei,
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4. O Mº juiz “a quo” proferiu o despacho previsto no artº 311 do C.P.Penal e recebeu a acusação particular “acrescentada dos factos constantes do despacho de acompanhamento do Ministério Público, de folhas 49”.
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5. Na sua contestação, a arguida veio suscitar a questão prévia da rejeição da acusação particular, por ser manifestamente infundada, uma vez que não contém todos os elementos constitutivos do tipo de ilícito (falta o elemento subjectivo bem como a consciência da ilicitude).
Mais defende a ilegalidade do despacho proferido pelo MºPº, por lhe não caber suprir as deficiências da acusação particular, tendo actuado em violação do disposto no artº 285 nº4 do C.P.Penal.
Daqui extrai que o despacho que recebeu a acusação está também ferido de ilegalidade, decorrente da anteriormente exposta.
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6. Em sede de sentença, o Mº juiz “a quo” pronunciou-se a propósito de tal questão, nos seguintes termos:
2. QUESTÃO PRÉVIA
Na acusação particular deduzida, o assistente não aduziu quaisquer factos relativos à estrutura psicológica da actuação da arguida, nomeadamente, quanto à intencionalidade e voluntariedade da sua conduta e ao conhecimento de que a mesma integra um ilícito de natureza criminal.
Todavia, no despacho proferido ao abrigo do disposto no artº 285º, nº 4 do CPP, o MºPº, acompanhando a acusação particular deduzida, acrescentou-lhe, porém, os factos integradores do dolo.
No despacho a que alude o artº 311º do CPP, o tribunal recebeu a acusação particular deduzida, “acrescentada dos factos constantes do despacho de acompanhamento do MºPº de fls. 49”.
Em sede de contestação, a arguida insurge-se contra o referido despacho, defendendo que tal acusação devia ter sido rejeitada ao abrigo do disposto no artº 311º, nº 2, alª a) do CPP, já que manifestamente procedente, isto porque da mesma não constava a factualidade relativa à intenção dolosa da conduta da arguida, não podendo o MºPº suprir essa carência de alegação.
Porque esta questão não foi concretamente apreciada no despacho por nós proferido a fls. 64, não formando, por isso, caso julgado formal, dela passaremos agora a conhecer.
De acordo com o disposto no art: Art.º 285º do CPP:
1. Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em dez dias, querendo, acusação particular.
2. (…)
3. (…)
4. O Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.
O artº 1º, al. f) do CPP, por seu turno, define alteração substancial dos factos como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A questão a decidir é apenas uma: não contendo a acusação particular, em que se imputa ao arguido a prática de um crime injúria, toda a matéria de facto para viabilizar uma decisão condenatória, concretamente os elementos fácticos caracterizadores do elemento subjectivo, será que essa lacuna poder ser colmatada pela respectiva alegação pelo Ministério Público, quando, nos termos do art.º 285º n.º 4 do Código Processo Penal, adere à acusação? (Esta forma de colocação do problema foi utilizada no Ac. RP de 24/3/2004, Nº Convencional JTRP00035132, Des. António Gama, in www.dgsi.pt, pelo que, atenta a absoluta similitude com o caso destes autos, também aqui a utilizamos, até para se ver que os subsídios colhidos deste aresto que a seguir utilizaremos tem por base situação de facto perfeitamente idêntica).
O acompanhamento da acusação pelo Ministério Público, com o simples acrescento do elemento subjectivo- diz-se no acórdão atrás referido-, não teve o condão de imputar ao arguido crime diverso nem de agravar os limites máximos das sanções aplicáveis. O tipo de ilícito imputado ao arguido em ambas as acusações é o mesmo, um crime de injúrias previsto e punido pelo art.º 181º do Código Penal. Logo, e numa primeira abordagem da problemática, não vemos onde se ancora a (…) alteração substancial dos factos.
Por outro lado não nos parece existir qualquer violação do princípio do acusatório. O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento [Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 3ª ed. pág. 205 - 206]. Ora no caso não se vislumbra que o alegado princípio tenha sido posto em crise com o acrescento, com a acusação do Ministério Público.
Dependendo o procedimento de acusação particular, a fase da acusação só acaba depois de transcorrido o prazo para o Ministério Público, acusar ou não pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles, art.º 285º n.º 3 do Código Processo Penal [actualmente nº 4, devendo ter-se em linha que este acórdão foi tirado antes das alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007]. O princípio da imutabilidade da acusação só começa a vigorar depois de escoado o prazo das acusações.
Apesar de o figurino legal permitir dois distintos momentos de acusação, um para o assistente, outro para o Ministério Público, art.º 285º do Código Processo Penal, ou vice versa no caso do art.º 284º do Código Processo Penal, só formalmente é que se pode falar no plural de acusações. No caso, apesar do acrescento do elemento subjectivo por parte do Ministério Público, substancialmente há apenas a acusação, que é o resultado da acusação do assistente e do acrescento do Ministério Público. A alegação pelo Ministério Público do elemento subjectivo, ainda na fase da acusação, é uma correcção admissível que não contende com qualquer direito do arguido. Tanto mais que o elemento subjectivo resulta também como extrapolação e efeito lógico e coerente do conjunto dos factos objectivos que são imputados ao arguido na acusação do assistente.
Ora, e este é um ponto que tem que ser notado, o princípio da imutabilidade da acusação só começa a vigorar depois de escoado o prazo das acusações, de ambas, do assistente e do MºPº. Só nessa altura se cristaliza o pedaço de vida cujo julgamento é pedido ao tribunal. E sendo assim, o arguido não vê beliscado qualquer direito de defesa, posto só nesse momento ser chamado a defender-se (em sede de julgamento, bem entendido).
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, “O princípio da acusação limita (…) o objecto da decisão jurisdicional e essa limitação é considerada como garantia da imparcialidade do tribunal e de defesa do arguido. Imparcialidade do tribunal na medida em que apenas terá de julgar os factos objecto da acusação, não tendo qualquer «responsabilidade» pelas eventuais deficiências da acusação, e garantia de defesa do arguido na medida em que, a partir da acusação, sabe de que é que tem de se defender, não podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspectivas dos mesmos factos para as quais não estruturou a defesa.” – cfr. Curso de Processo Penal, Verbo, I, pág. 71.
Aliás, como bem se faz eco o aresto que vimos transcrevendo, não se argumente com os direitos do arguido, todos os seus direitos continuaram inteira e totalmente resguardados. Notificado da acusação o arguido podia ter contestado ou requerido a abertura de instrução. Repete-se ficam intocados todos os seus direitos.
Aliás, conforme se decidiu no Ac. RP de 16.4.97 (CJ XXII, Tomo II, pág. 233 e segts.), as duas acusações deduzidas, a pública e a particular, têm de ser vistas como partes de um todo. A acusação do Ministério Público, por crime particular, nos termos do art.º 285º n.º 3 do Código Processo Penal deve ser vista como complemento da acusação particular. Daí que, respeitados os direitos de defesa do arguido e desde que não se configure alteração substancial dos factos da acusação particular, nada impede processualmente, que a acusação do Ministério Público aporte validamente para a acusação factos necessários e, até, imprescindíveis, ao triunfo da acusação particular, como é o caso do elemento subjectivo, que na acusação particular não estava suficientemente explícito.
No mesmo sentido pode ver-se o Ac. RP de 13/12/2006, nº Convencional JTRP00039847, Desª. Olga Maurício, in www.dgsi.pt que, de forma categórica, afirma que no caso de crime particular, se o Ministério Público adere à acusação do assistente, e acrecenta os factos que integram o elemento subjectivo da infracção, não descritos na acusação particular, não se pode dizer que o Ministério Público acusa por factos que representam uma alteração substancial dos descritos na acusação do assistente.
E porquê? Ofereçamos para resposta a singeleza da redacção do artº 1º, alª f) do CPP: porque alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Assim, seja pelo momento em que se cristaliza a acusação ser o da acusação pelo MºPº prevista no artº 285º, nº 4 do CPP, seja por a inclusão dos factos atinentes à intencionalidade e previsão da arguida não representar uma vera alteração substancial, cremos, salvo o devido respeito, não ter fundamento a nulidade invocada.
Vai, por isso, indeferida.
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7. Relativamente a esta decisão as razões de discórdia da recorrente são as seguintes, conforme constam na súmula conclusiva:
I – A acusação particular deduzida pelo assistente, a fls. 45 e seguintes dos Autos, contém apenas a narração que num dia e hora, encontrando-se o assistente num determinado local foi abordado pela arguida que lhe dirigiu determinadas palavras.
II – A mesma acusação particular não narra nem alega qualquer factualidade alusiva à intenção e ao resultado tido em vista e produzido pela alegada conduta da arguida, sendo pois completamente omissa quanto ao elemento subjectivo do tipo legal de crime que pretende imputar à arguida.
III – Perante tal omissão, a fls. 49, o Ministério Público, ao abrigo do disposto no art. 285º nº. 4 do C.P.P., “(…) também fax sua a acusação precedente, acrescentando-lhe que a arguida agiu livre e conscientemente, com a intenção concretizada de ofender o assistente na sua honra e consideração e que a sua atitude é proibida e punida por lei”,
IV – Tendo o Juiz a quo recebido a acusação particular de deduzida pelo assistente “acrescentada dos factos constantes do despacho de acompanhamento do MºPº de fls. 49”, o que motivou a Contestação da arguida a fls…, tendo a questão sido decidida na Sentença de que se recorre.
V – Assim, está em causa por um lado apreciar se a conduta da arguida tal como é descrita pelo assistente na sua acusação particular é susceptível de integrar o tipo legal de injúria p. e p. no art. 181º do C.P..
VI – E por outro lado, saber se a omissão, na acusação do elemento subjectivo do dolo implica ser a acusação manifestamente infundada ou se tal omissão é susceptível de ser suprida pela acusação do MP ao abrigo do disposto no art. 285º nº. 4 do C.P.P..
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8. Apreciando.
A questão que agora nos propomos apreciar mostra-se tempestivamente suscitada pela arguida, uma vez que surgiu no seguimento do despacho que designou dia para julgamento – e que, pela primeira vez, se pronunciou sobre a acusação particular apresentada, no sentido de determinar o seu recebimento, nos termos expostos – sendo certo que a decisão realizada pelo tribunal “a quo”, a propósito da existência de tal questão prévia, veio apenas a ser proferida em sede de sentença.
Averiguemos, então, se a acusação particular poderia e deveria ter sido recebida, como entendeu o tribunal “a quo” ou, ao inverso, deveria ter sido rejeitada, como advoga a recorrente.
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9. Determina o artº 285 do C.P.Penal que, no caso de o inquérito ter por objecto um crime de natureza particular, como sucede no caso dos autos, compete ao assistente deduzir acusação, o que deverá ser feito nos termos previstos no artº 283, nºs 3 e 7.
Tal significa que a acusação, para que seja válida, terá de conter (para além de outros requisitos que aqui não relevam) a narração dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena ao arguido.
No caso que apreciamos e tendo em atenção que estamos perante a imputação de um crime de injúrias, tal significa que a acusação terá de conter a descrição de factos que, a provarem-se, permitam concluir mostrarem-se preenchidos os requisitos do tipo previsto no artº 181 do C.Penal.
Neste ilícito, o bem jurídico protegido é a honra, nas suas múltiplas cambiantes, pois que se trata de um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exteriores.
O elemento objectivo deste ilícito criminal é a injúria a outrem, consistente na imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou a prolação de palavras ofensivas da honra ou consideração alheias.
O elemento subjectivo consiste na enunciação factual de uma intenção de actuação ofensiva, uma vez que estamos perante um ilícito de natureza dolosa, mas que não exige dolo específico.
Assim sendo, a acusação a formular terá de contemplar, para que se mostrem cumpridos os requisitos acima enunciados, todos estes elementos factuais.
E o que sucede na acusação particular formulada é que o elemento subjectivo se mostra omisso, uma vez que não se mostra enunciada a intenção, por parte da arguida de, com as descritas expressões, ofender a honra e consideração do assistente. Não há um único facto que, a provar-se, permita consubstanciar o preenchimento do dolo.
Diga-se, aliás, que quanto a este ponto, quer o recorrente quer o tribunal “a quo” estão em sintonia, quanto à ocorrência de tal omissão. A fonte da sua divergência radica numa outra questão – a de saber se a mesma pode ou não ser suprida através da intervenção do MºPº, também por via acusatória.
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10. Prossigamos então.
Como se viu, o MºPº proferiu despacho sequencial à acusação formulada, no qual, invocando o disposto no artº 285 nº4 do C.P.Penal, declara aderir à acusação e aditar-lhe os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo.
O mencionado artigo prescreve que, nos 5 dias posteriores à apresentação da acusação particular, o MºPº pode acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles.
Não restam dúvidas de que, dentro dos parâmetros acima mencionados, o MºPº terá plena legitimidade para formular acusação.
Mas o problema, neste caso concreto, não se reporta à questão de saber se o MºPº pode ou não acusar. A questão é outra.
O que aqui se mostra em discussão é algo diverso, designadamente se pode o MºPº completar uma acusação que, em si mesma, não contém todos os requisitos que a lei expressamente exige.
E a resposta é, adianta-se desde já, claramente negativa.
Expliquemos porquê.
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11. Como já anteriormente deixámos exposto, a acusação particular apresentada não refere factos integradores do elemento subjectivo do tipo.
Ora, tal omissão acarreta, como consequência necessária, a nulidade de tal acusação, como prescreve o nº3 do artº 283 do C.P.Penal (aplicável por força do nº3 do artº 285 do mesmo diploma legal).
Assim, o que aqui resta apurar é se a nossa legislação prevê a possibilidade de suprimento de tal nulidade, através da intervenção correctiva do MºPº, por via acusatória.
E salvo o devido respeito por opinião contrária, cremos que é manifesto que tal não se mostra legalmente admissível.
O que o nº4 do artº 285 prevê e permite é que o MºPº acuse, ele próprio, autonomamente, nos termos acima prescritos. Mas em parte alguma consigna que poderá proceder a um aperfeiçoamento e sanação de uma omissão, que acarreta forçosa nulidade.
Na verdade, aditar os factos relativos ao dolo não integra nenhuma das circunstâncias previstas no mencionado número, pois que o MºPº não se limitou a acusar pelos mesmos factos (aditou-os); nem por parte deles (pois tal pressupõe uma restrição e não um aditamento, face à matéria factual já constante na acusação particular); nem por outros que não importem uma alteração substancial (pois tal implica que haja apenas uma alteração de qualificação jurídica, sem agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis).
Aliás, estranho seria que, ao arrepio de todo o nosso ordenamento jurídico, fosse permitido a um terceiro (neste caso, ao MºPº ou, no caso inverso, ao assistente, caso estivéssemos perante um crime de natureza semi-pública, por exemplo, atento o vertido no artº 284 do C.P.Penal), proceder oficiosamente à correcção de um requerimento acusatório, à revelia do seu autor. Nem em sede cível tal possibilidade se mostra consignada pois, nos estritos casos em que pode haver lugar a aperfeiçoamento, o mesmo depende de despacho elaborado pelo juiz, que convida a parte a, querendo, proceder a tal correcção (como aliás sucede também por exemplo, em sede criminal, nos casos previstos no artº 417 nºs 3 e 4 do C.P.Penal).
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12. Do que se deixa exposto há assim que retirar que a omissão que incontestavelmente se verifica na acusação particular, acarreta a sua forçosa nulidade o que, nos termos previstos no artº 122 do C.P.Penal tem como consequência a invalidade do acto em que se verificou, que não se mostra de passível sanação, por a lei a não prever.
E, neste caso específico, a lei determina que a consequência jurídica de os factos constantes numa acusação serem insusceptíveis de integrarem um crime, como aqui sucede (pois ainda que se provassem todos os factos articulados na acusação, os mesmos seriam insuficientes para condenar a arguida pela prática daquele crime de injúrias, uma vez que faltaria sempre o elemento subjectivo), é a de tal acusação se ter de entender como manifestamente infundada (artº 311 nº3 al. d) do C.P.Penal).
Ora, uma acusação manifestamente infundada deve ser rejeitada, como impõe o nº2 al. a) do atrás mencionado artigo.
Uma vez que estamos face a um crime de natureza particular, falece legitimidade ao MºPº para acusar a arguida, desacompanhado do assistente.
E se assim é, cabe-nos apenas constatar que assiste razão à recorrente, quanto à questão que suscita, pelo que se conclui que se deve declarar nula a acusação particular formulada, inoperante a acusação apresentada pelo MºPº (por falta de legitimidade) e consequentemente há que considerar inválidos todos os actos posteriores à apresentação de tal requerimento acusatório, ao abrigo do disposto no artº 122 nº2 do C.P.Penal.
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13. Atento o que ora se decide, as restantes questões propostas neste recurso mostram-se prejudicadas, razão pela qual das mesmas se não conhecerá.
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iv – decisão.
Face ao exposto, julga-se procedente o recurso interposto pela arguida B… e, em consequência, declara-se nula a acusação particular apresentada, bem como todos os actos posteriormente praticados, incluindo o despacho que designou dia para julgamento, a audiência realizada e a sentença condenatória proferida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo assistente, por ter dado causa à nulidade, em 4 UC.

Porto, 1 de Junho de 2011
Maria Margarida Costa Pereira Ramos de Almeida
Ana de Lurdes Garrancho da Costa Paramés