Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0230707
Nº Convencional: JTRP00032403
Relator: SALEIRO DE ABREU
Descritores: EXECUÇÃO
LETRA
DOCUMENTO PARTICULAR
SACADOR
ASSINATURA
Nº do Documento: RP200206140230707
Data do Acordão: 06/14/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC EXEC.
Legislação Nacional: CPC95 ART46 C.
LULL ART1 N8 ART2 ART11.
Sumário: I - Não tendo qualquer valor os endossos alegados pelo exequente/embargada ter-se-á de concluir que não se operou, para ela, e por essa via, qualquer transmissão de créditos.
II - Consequentemente, os documentos em causa não podem ser considerados títulos executivos, ainda que como simples documentos particulares não cambiários, pois não traduzem o reconhecimento de uma obrigação pecuniária da embargante para com a embargada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
Alda .......... instaurou execução contra Gracinda ....... para pagamento da quantia de esc. 1.020.000$00 e juros vincendos sobre o montante de esc. 940.000$00.
Apresentou, como títulos executivos, “oito letras de câmbio aceites pela executada”, que à exequente foram endossadas - alega - pelo sacador César .......... para pagamento de um empréstimo.
A executada deduziu oposição por embargos, alegando que as letras em causa não estão assinadas pelo sacador, assinatura que é um requisito essencial para que produzam efeitos como letras, e que das mesmas não consta qualquer endosso.
Concluiu pela procedência dos embargos e extinção da execução.
Em contestação, a exequente sustenta que todas as letras em causa lhe foram endossadas; que são títulos executivos, enquanto documentos particulares; e que foram emitidas para pagamento de parte do preço devido por uma cessão de quotas feita por escritura pública pelo referido César ........ à executada.
No despacho saneador, foram os embargos julgados procedentes e a executada “absolvida da instância executiva”.
Inconformada, apelou a exequente/embargada, tendo rematado a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. A exequente, na qualidade de endossada, é legitima portadora de oito letras de câmbio aceites pela executada, do montante de Esc.117.500$00 cada uma, com vencimento em 01/03/2000, 01/04/2000, 01/05/2000, 01/06/2000, 01/07/2000, 01/08/2000, 01/09/2000 e 01/10/2000, respectivamente, no montante total de Esc. 940.000$00.
2. As letras que servem de base à presente execução são títulos executivos, nos termos do artº. 46° do Código de Processo Civil, na medida em que são documentos particulares, assinados pela devedora, que importam a constituição ou reconhecimento de uma obrigação pecuniária, cujo montante é determinado ou determinável nos termos do artigo 805° do Código de Processo Civil.
3. Se os documentos dados à execução não produzem efeito como letra, então produzem efeito como documentos particulares assinados pelo devedor.
4. Existe uma relação causal que suporta as letras, nomeadamente a referida cessão de quota celebrada por escritura pública em 27 de Setembro de 1995.
5. Na reforma processual de 1995, o elenco dos títulos executivos foi significativamente ampliado e segundo se refere no Relatório do D.L. n° 329-A/95, de 12-12, "este regime irá contribuir significativamente para a diminuição do número de acções declarativas de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial".
6. E tal justifica-se por razões de economia processual, evitando-se, deste modo, sobrecarregar os Tribunais.
7. Note-se que na acção executiva, a causa de pedir traduz-se no facto jurídico criador da sujeição do executado à execução, o qual é constituído pela condenação ou por outro facto capaz de, dispensando a acção declarativa, justificar a atribuição de força executiva ao título apresentado com o requerimento inicial.
8. Deste modo, não há lugar à procedência dos embargos de executado, nem tão pouco à absolvição da embargante Gracinda .......
Contra-alegou a embargante, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Os factos:
Com relevo para a decisão, importa considerar os seguintes factos:
- Os documentos dados à execução são, formalmente, oito letras de câmbio, da importância de esc. 117.500$00 cada, em que consta como sacador César ....... e sacada Gracinda ......, cuja assinatura consta no lugar do aceite (transversalmente, na frente, lado esquerdo);
- No verso consta o nome, manuscrito, do referido César .........;
- Nenhuma das letras contém a assinatura do sacador.
III.
Mérito do recurso
Entendeu-se na decisão recorrida que os documentos exequendos não constituem título executivo, dado que não contêm qualquer assinatura no local para o efeito destinado ao sacador.
Prescreve, na verdade, o art. 1º, nº 8, da LULL que a letra contém “a assinatura de quem passa a letra (sacador)”, sendo que, de acordo com o disposto no art. 2º do mesmo diploma, tal falta implica que o escrito não valha como letra: “não produzirá efeito como letra”, diz aquele preceito.
Assim sendo, é manifesto que as “letras” em causa, enquanto título cambiário, não podem servir como título executivo.
A questão que se coloca, porém, é a de saber se, apesar de os documentos dados à execução não produzirem efeito como letras, ainda assim podem valer como título executivo, agora enquanto meros quirógrafos ou simples documentos particulares não cambiários, à luz da al. c) do art. 46º do CPC.
Nos termos desta disposição legal, com a redacção dada pela reforma processual de 1995/96, podem servir de base à execução “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do art. 805º, ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.
Visou-se com alteração introduzida por essa disposição, segundo o preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12, contribuir para a diminuição do número de acções declaratórias de condenação, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, apenas para facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial.
Mas, como vimos, os documentos particulares, para constituírem títulos executivos, devem obedecer aos requisitos mencionados no citado art. 46º, al. c):
- conterem a assinatura do devedor;
- importarem a constituição ou reconhecimento de obrigações;
- reportando-se a obrigações pecuniárias, estas devem ser de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético.
No caso em apreço, não se suscitam dúvidas quanto à verificação do primeiro e do último requisitos.
Já não se poderá dizer o mesmo, porém, quanto ao segundo.
Quanto a nós, as “letras” em causa não traduzem o reconhecimento de uma obrigação pecuniária da embargante para com a embargada.
Como vimos, a exequente alegou ser portadora das “letras” ajuizadas por via do endosso feito pelo sacador.
Só que, como já se salientou, os documentos ou “letras” dados à execução não se encontram assinados pelo sacador, pelo que não produzem efeito como letras.
Ora, sendo o endosso uma forma de transmissão específica dos títulos de crédito (através do endosso transfere-se o título e o crédito que ele representa – vd. art. 11º da LULL), só pode falar-se de endosso quando feito num válido título de crédito, e não num mero documento particular.
O endosso só tem significado e alcance quando feito numa letra ou num cheque. Se assim não acontece, em rigor não se poderá sequer falar em endosso.
Se os documentos dados à execução não valem como letras – o que é líquido -, assim também os endossos neles apostos.
Não tendo qualquer valor os endossos alegados pela exequente/embargada, ter-se-á de concluir que não se operou, para ela, e por essa via, qualquer transmissão de créditos.
Consequentemente, os documentos em causa não podem ser considerados títulos executivos, ainda que como simples documentos particulares não cambiários, pois que não traduzem o reconhecimento de uma obrigação pecuniária da embargante para com a embargada (neste sentido, e para caso semelhante, embora com cheque, Ac. da RE, de 8.3.2001, CJ, 2001, V, 249).
Dir-se-á, ainda, o seguinte:
Tem uma corrente doutrinária e jurisprudencial vindo a entender que, quando um título de crédito é apresentado como título executivo, mas enquanto mero quirógrafo, ou seja, como documento particular, consubstanciador da relação subjacente, causal ou fundamental, tem o exequente de invocar a causa da obrigação, ou seja, os factos que consubstanciam a existência de uma obrigação do executado para consigo, no requerimento inicial da execução (quando não conste do título), para, designadamente, poder ser impugnada pelo executado, não o podendo fazer posteriormente, sem o acordo do executado, por tal implicar alteração da causa de pedir (neste sentido, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª ed., 54; Ac. do STJ, de 30.1.2001, CJ/STJ, 2001, I, 85 e da RP, de 13.1.2000, BMJ, 493º-417, entre outros).
Ora, dos documentos (“letras”) dados à execução não consta a causa da sua emissão, nem ela foi invocada, ainda que a título subsidiário, pela exequente no requerimento inicial da execução. Como não foi alegada uma válida cessão ou transmissão do crédito a favor da exequente. Apenas na contestação dos embargos se alegou que as “letras” foram emitidas para pagamento de parte do preço devido por uma cessão de quotas (de que se juntou fotocópia da respectiva escritura).
Também por essa razão, e a seguir-se aquela corrente, ter-se-ia de concluir pela inexistência de título executivo.
Improcedem, nesta medida, as conclusões do recurso.
IV.
Decisão:
Nestes termos, julga-se improcedente a apelação e confirma-se o saneador/sentença recorrido.
Custas pela apelante.
Porto, 14 de Junho de 2002
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo