Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0453572
Nº Convencional: JTRP00037085
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: LOCAÇÃO
COMPRA E VENDA
VENDA
BENS ALHEIOS
NULIDADE
REGISTO
Nº do Documento: RP200407050453572
Data do Acordão: 07/05/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - No caso de duas vendas do mesmo bem (viatura automóvel) efectuadas pelo mesmo autor a duas pessoas distintas, sendo uma primeira venda efectuada a (A), em 1996, da qual não é efectuado qualquer registo e, posteriormente, em 1997, sendo realizada uma segunda venda a (B), que regista a viatura a seu favor, esta segunda venda é nula por venda de coisa alheia.
II - Sendo a acção de anulação intentada e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (a 2ª venda) os direitos do segundo adquirente (B) não podem ser protegidos, devendo ceder perante o direito de propriedade primeiro adquirente (A).
III - Uma vez ambos os compradores adquiriram o mesmo bem, de um transmitente comum, apesar do segundo adquirente (B) ter registado a seu favor a aquisição do veículo e primeiro adquirente (A) não o ter feito fez, terá de se reconhecer ao primeiro adquirente (A) o direito de propriedade sobre o veículo, por força do artigo 291 n.2 do Código Civil do não obstante o disposto no artigo 5 do Código do Registo Predial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

1- No Tribunal Judicial da Comarca do ..........., a Autora Banco X............... (Portugal) SA, sociedade comercial com sede na Rua .............., n.º .., ............. intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra B................, Lda, com sede na Rua ..............., ..., ......, ............, C................, SA, com sede na Rua ................, ..., ............, e D..............., residente na .................., ............ alegando resumidamente:
Foi celebrado com a primeira R. um contrato de locação financeira que tinha por objecto o veículo automóvel ..-..-HL, contrato esse que a R. não cumpriu pelo que procedeu à resolução do contrato nos termos acordados, com as consequências respectivas.
A R. que, tinha sido igualmente a vendedora do veículo e que devia ter procedido ao registo do veículo a seu favor, não o fez, e, posteriormente, a mesma R. celebrou um contrato de compra e venda do mesmo veículo com a segunda R., venda essa que foi registada e que esta deu de locação financeira ao terceiro R., venda essa nula por incidir sobre coisa alheia.
Conclui pedindo: pela procedência da acção e, referindo ter proposto uma outra acção contra a 1ª R. e um terceiro tendo em vista o registo da propriedade do veículo a seu favor, pede se reconheça o seu direito de propriedade sobre o veículo de matrícula ..-..-HL e se declarem nulos o contrato de compra e venda celebrado entre as 1ª e 2ª RR. e o contrato de locação financeira celebrado entre as 2ª e 3ª RR., se considere judicialmente resolvido o contrato de locação financeira celebrado entre ela e a 1ª R., se considere que tem direito a conservar suas as rendas vencidas e não pagas e se ordene a restituição do veículo e o cancelamento dos registos dos contratos de compra e venda e de locação financeira celebrados entre as 1ª, 2ª e 3ª RR., bem como o registo da aquisição do veículo a seu favor.

2 - Devidamente citados os Réus contestaram apenas as 2ª e 3ª RR. alegando, também em síntese, a 2ª R. excepcionando com a sua ilegitimidade e a de ilegal coligação de RR. e impugnando os factos articulados pela A., mais aduzindo que adquiriu o veículo a título oneroso efectuando o competente registo da aquisição e, após, deu o veículo de locação financeira ao 3º R., desconhecendo qualquer negócio anterior, e beneficiando da presunção do registo, devendo a A. peticionar eventual indemnização da 1ª R. no que se refere ao incumprimento do contrato de locação financeira entre ambos celebrado, terminando pela improcedência da acção, e, por sua vez, o 3º R., excepcionando com a ilegitimidade da A., impugna os factos alegados pela A. no que respeita à aquisição do veículo e à outorga do contrato de locação financeira que ela diz ter celebrado com a 1ª R., e terminando pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido mais peticiona a condenação da A. como litigante de má fé por usar de dolo processual e substancial.

3- Na réplica a Autora manteve as posições já assumidas e defendeu-se do pedido de condenação por litigância de má-fé.

4- O processo prosseguiu termos tendo sido elaborados despacho saneador e a base instrutória, após o que se realizou julgamento proferindo-se sentença que julgou a acção improcedente.
Apelou a Autora dessa decisão tendo a Relação proferido acórdão a anular a decisão da matéria de facto, ordenando a repetição do julgamento nos termos constantes de fls. 306 a 312.
Em obediência a esse acórdão repetiu-se o julgamento tendo as partes acordado, de novo, em que fosse dada como provada toda a matéria de facto constante da base instrutória com o esclarecimento de que, no que se refere à resposta à matéria do art.º 6º, a A. adquiriu o veículo à 1ª R. “B..............., Ldª” tendo celebrado com a mesma R. o contrato de locação financeira.
Na sequência do despacho de fls. 334 veio a A. prestar o esclarecimento de fls. 338 e 339 em resposta ao qual a 2ª R. nada disse e o 3º R. declarou aceitar o esclarecimento.
Foi de novo proferida sentença que julgou a acção improcedente.

5 - Apelou novamente a Autora, nos termos de fls. 374 a 381, formulando as seguintes conclusões:
1- Por manifesto lapso, na douta sentença, no facto provado 2.2.13., omitiu-se no início “Em 10/Dezembro/1996”, pelo que deverá rectificar-se a douta sentença em conformidade.

2- Ficou provada toda a matéria de facto alegada pelo A., pelo que a acção tem de ser julgada necessariamente procedente.

3- Está provado que o A. é o proprietário do veículo em causa.

4- A constituição ou transmissão de direitos reais dá-se por mero efeito do contrato – art.º 408.º, n.º 1, do Cód. Civil.

5- O registo não tem efeito constitutivo, destinando-se essencialmente a dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis – art.º 1.º, n.º 1, do Cód. Reg. Propriedade Automóvel.

6- O registo de um direito constitui apenas presunção de que o direito existe – art.º 7.º do Cód. Reg. Predial -, pelo que, tal presunção pode ser ilidida – art.º 350.º, n.º 2, do Cód. Civil.

7- O negócio realizado entre a 1.ª R. e a 2.ª R., configura uma venda de bens alheios, pelo que é nula, não produzindo efeitos, dando-se a invalidade subsequente dos negócios que se lhe seguem sobre os mesmos direitos – arts.º 892.º e 289.º, do Cód. Civil.

8- No caso concreto, fica imediatamente afastada a protecção de terceiros de boa fé prevista no art.º 291.º, n.º1, do Cód. Civil, uma vez que foram cumpridos os requisitos do n.º 2 desse preceito.

9- Ainda, a 2.ª R. nunca poderia beneficiar de uma aquisição pelo registo, dado que o veículo nunca esteve registado a favor da 1.ª R.; sendo que a preexistência de um registo desconforme com a realidade substantiva e a actuação do terceiro adquirente com base no registo preexistente são a razão de ser e, como tal, pressupostos essenciais, de uma eventual aquisição pelo registo.

10- A douta sentença violou a Lei, entre outros, o disposto nos arts.º 291.º, n.º 2, 350.º, n.º 2, e 408.º, n.º 1, do Cód. Civil, e nos arts.º 1.º, n.º 1, do Cód. Reg. Propriedade Automóvel.

Conclui pedindo a procedência do presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e, consequentemente, se decida pela procedência da presente acção.

6 – A Recorrida C................, SA formulou contra-alegações (fls. 420 a 424) defendendo a manutenção do decidido tendo o Recorrido D.................. formulado igualmente contra-alegações (fls. 440 a 444) a defender a manutenção do decidido.

II - FACTUALIDADE PROVADA

Encontram-se provados os seguintes factos:
1- Por escritura pública de trespasse outorgada no dia 1 de Fevereiro de 1999 no .. Cartório Notarial de .............., “E..............., S.A.” transmitiu à A. o direito de propriedade e compropriedade de que fosse titular relativamente a todos os bens por si locados e co-locados e que fossem objecto dos contratos de locação financeira mobiliária por ela celebrados e descritos e identificados no documento complementar I, documento esse do qual consta o contrato de locação nº .... por ela outorgado com a 1ª R. e relativo ao veículo ..-..-HL.
2- Por escritura pública de 23 Abril 1999 outorgada no mesmo Cartório Notarial a A. alterou a sua denominação social para “Banco X.............. (Portugal), S.A.”.
3- O veículo automóvel de matrícula ..-..-HL, marca ............., tem registo de propriedade a favor da R. "C................, S.A.” desde 20NOV97.
4- Com a mesma data referida em 3 encontra-se registado o contrato de locação financeira a favor do 3º R..
5- A A. e a R. “C................, S.A.” exercem a actividade de locação financeira mobiliária.
6- A “E..........., S.A.” teve conhecimento de que a “C..............., S.A.” tinha celebrado com o 3º R. um contrato de locação financeira com início em 1MAR97 e fim em 1MAR00.
7- No exercício da sua actividade a “E..........., S.A.” celebrou com a R. “B................., Ldª”, em 9DEZ96, o contrato de locação financeira n.º ...., junto a fls. 21 a 24 e relativo ao veículo automóvel ..-..-HL.
8- Através desse contrato essa R. obrigou-se a pagar à locadora 12 rendas trimestrais no montante unitário de Esc. 549.387$00, acrescidos de IVA à taxa legal, vencendo-se a primeira renda na data do início da vigência do contrato e cada das restantes no dia 5 do mês de acordo com a periodicidade acordada.
9- A R. não procedeu ao pagamento da renda vencida em Setembro de 1998 nem as subsequentes, apesar de diversas vezes interpelada.
10- A locadora enviou à R. as cartas registadas com a.r. juntas a fls. 28 a 31, registadas de 30.10.98 e de 23.12.98 e por ela recepcionadas em 2.11.98 e 24.12.98, respectivamente.
11- Apesar dos reiterados contactos de empregados e representantes da “E..........., S.A.” a R. não pagou as quantias em dívida nem restituiu o veículo objecto do contrato.
12- A “E.............., S.A.” adquiriu, em 10.12.19996, à locatária o veículo, pagando o preço de Esc. 7.000.000$00, e entregou-lho.
13- Havia sido acordado entre a “E.............., S.A.” e “B..............., Ldª” que era esta que procederia ao registo de propriedade a favor da 1ª.
14- Em Novembro de 1998 a “E............., S.A.” teve conhecimento de que “B.............., Ldª” celebrou com a R. “C..............., S.A.”, em Novembro de 1997, um contrato de compra e venda relativa ao veículo ..-..-HL.
15- A “C..............., S.A.” adquiriu o veículo ..-..-HL de quem o possuía registado a seu favor pagando o preço.
16- Após a aquisição celebrou com o 3º R. um contrato de locação financeira relativo ao veículo, sem oposição de ninguém, recebendo as rendas respectivas.
17- E possibilitou ao 3º R. que usasse e fruísse o veículo.
18- Desconhecia qualquer anterior contrato de compra que tivesse por objecto o mesmo veículo.

III – DA SUBSUNÇÃO - APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, artigo 684 nº 3 do Código de Processo Civil.

A) A questão a decidir é fundamentalmente uma, a saber:
O contrato de compra e venda celebrado entre a primeira Ré e a segunda Ré encontra-se ferido de nulidade por configurar uma venda de bens alheios, não devendo a segunda Ré beneficiar da protecção conferida pelo registo existente a seu favor atento o disposto no artigo 291 nºs 1 e 2 do CC?
Vejamos.
Nos termos do artigo 874 do Código Civil “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.
Dispõe o art.º 892º do Código Civil, que “é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso”.
Estipula o n.º 1 do art.º 5º do CRP84 que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
Este preceito é aplicável ao registo de veículos automóveis "ex-vi" do artº 29º do C. R. Automóvel, introduzido pelo DL 54/75, de 24/2, o qual dispõe "serem aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respectivo regulamento...".
E o n.º 4 do art.º 5º do mesmo diploma, com a redacção que lhe foi dada pelo DL 533/99 de 11/12, passou a estipular que "terceiros para efeitos de registo são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si".
“O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, artigo 7 do CRP.
Estatui o artigo 350 n.º 1 do CC que “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”.
Mas logo acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que “as presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”.
Nos termos do art.º 498º, n.º 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei".
Dispõe ainda o art.º 291°, n.º 1, do C. Civil que "a declaração de nulidade... que respeite a... bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação...".
Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que "os direitos de terceiro não são todavia, reconhecidos se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio".
Ponderando estes princípios jurídicos relembremos a essencialidade dos factos provados.
A autora, ora recorrente adquiriu, em 10.12.96, à primeira Ré uma viatura automóvel tendo celebrado com a mesma Ré “B................, Ldª”, em 9.12.96, um contrato de locação financeira relativo ao mesmo veículo automóvel.
Nem esta venda nem o contrato de locação financeira foram registados.
Posteriormente, em Novembro de 1997, a 1ª Ré “B.............., Ldª” celebrou com a 2ª Ré “C..............., S.A.” um contrato de compra e venda relativa ao veículo em causa nos autos, de matrícula ..-..-HL.
A 2ª Ré “C................, S.A.” tem registo de propriedade daquele veículo a seu favor da desde 20.12.1997 tendo, após a aquisição celebrado com o 3º R. um contrato de locação financeira relativo a esse veículo, sem oposição de ninguém, recebendo as rendas respectivas e possibilitando ao 3º R. que usasse e fruísse o veículo.
A 2ª Ré “C.............., S.A.” desconhecia qualquer anterior contrato de compra que tivesse por objecto o mesmo veículo.
Estamos, no caso concreto, perante duas vendas do mesmo bem efectuadas pelo mesmo autor a duas entidades distintas. Uma primeira venda é efectuada à Autora/Recorrente em 1996, sendo que não é efectuado qualquer registo e posteriormente, decorrido um ano, em 1997, é realizada uma segunda venda da mesma viatura automóvel à 2ª Ré que regista o bem a seu favor.
Sabe-se que o contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, produzindo-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato. [Neste sentido Ac. STJ de 19.02.2004, proferido no Proc. N.º 2925, do qual é Relator o Conselheiro Ferreira de Almeida “É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (artºs 874° e 879º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal”; cfr. ainda Acs. STJ de 24/2/77, BMJ n.º 264, pág. 179; Ac. STJ de 24.4.91, BMJ 406, p.629; Ac. STJ de 13.2.96, CJ, T.I p.88; Ac. do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117 e Ac. R. Porto de 10.07.2003, do qual é Relator o Desembargador João Vaz]
A prova do contrato de compra e venda de veículos automóveis pode fazer-se por qualquer meio admitido em direito – artºs 874, 875 e 879º al. a) do C. Civil.
A primeira Ré em 1996 transmitiu de forma válida para a Autora/Recorrente a propriedade veículo em causa nos autos, de matrícula ..-..-HL. Quando em 1997 vende de novo à 2ª Ré o mesmo veículo estava a efectuar uma venda de um bem que já não lhe pertencia, ou seja estava a proceder à venda de um bem alheio.
Afigura-se-nos ser manifesto que esta venda (por se tratar de um bem alheio) se encontra ferida de nulidade, Cfr. arts. 892 e 289 ambos do CC.
È certo que a 2ª Ré procedeu ao registo dessa aquisição. Quais as consequências desse facto?
O registo destina-se, no nosso ordenamento jurídico, essencialmente a dar publicidade a determinado acto, podendo os factos constantes do registo ser ilididos (artigos 1º e 7º do CRP e 350 do CC). [“ O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «iuris tantum») da existência do direito ....bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes”, Ac. STJ de 19.02.2004, supra referido. No mesmo sentido o Ac. desta Relação supra referido, de que é Relator o Desembargador João Vaz]
O registo não tem eficácia constitutiva mas apenas declarativa, sendo a presunção derivada do registo automóvel, por força das disposições conjugadas dos arts. 29º do DL. 54/75, de 12.2 e 7º do CRP uma presunção "iuris tantum", que pode ser ilidida por prova em contrário.
Podemos afirmar que não é só pelo registo que determinamos o verdadeiro proprietário.
Porém, como se viu é aplicável à aquisição de veículos automóveis o disposto no n.º 1 do art.º 5º do CRP84, ou seja “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”.
Sendo a Autora/Recorrente e a 2ª Ré “terceiros” para efeitos de registo [Nos termos do Ac. Uniformizador de Jurisprudência, de 18.5.99, D.R. 1ª Série de 10.07.99, “terceiros para efeitos do disposto no artigo 5 do C. R. Predial são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”], uma vez que adquiriram um mesmo bem de um transmitente comum, porque a 2ª Ré registou a seu favor a aquisição do veículo e a Autora/Recorrente não o fez parece que por força daquele artigo 5º e do disposto no artigo 291 do CC se teria de reconhecer à 2ª Ré o direito de propriedade sobre o veículo.
Todavia como se referiu a primeira venda efectuada pela 1ª Ré à Autora/Recorrente foi validamente efectuada, transmitiu-se para esta a propriedade do veículo.
Se a Autora/Recorrente era a proprietária do veículo quando a 1ª Ré efectuou a venda à 2ª Ré já não o podia fazer uma vez que não era proprietária. Esta segunda venda estava ferida de nulidade.
Esta nulidade não poderia, em princípio, ser oposta à 2ª Ré uma vez que nos termos do referido art. 291 n.º 1 "a declaração de nulidade... que respeite a... bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação...".
Porém, não podemos esquecer que o n.º 2 do mesmo preceito estabelece que "os direitos de terceiro não são todavia, reconhecidos se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio".
Ora, a 2ª Ré adquiriu o veículo em 1997 e a presente acção deu entrada em juízo, tendo sido registada, em 1999 pelo que os seu eventuais direitos não podem ser protegidos, devendo ceder perante o direito de propriedade da Autora/Recorrente.
E nem se argumente que este entendimento não respeita o artigo 5 do CRP ou que este preceito revogou (ainda que tacitamente) o n.º 2 do art. 291 em apreço.
Ambos os preceitos são conciliáveis, aplicando-se a situações distintas.
Como bem refere o Ac. desta Relação, referido nas notas 1 e 2 “a regra contida no art. 5 do CRP é de aplicar, mas sem prejuízo dos casos em que não tenha decorrido o período de três anos, entre a data do negócio impugnado e a data da propositura da acção e o seu registo”. [No mesmo sentido Ac. de 19.02.2004 supra referido; Ac. STJ de 14.11.96, CJ T.III, p. 104]
Deste modo, não tendo ainda decorrido o prazo de 3 anos a que se refere o artigo 291 n.º 2 do CC à Autora/Recorrente assiste o direito de, apesar do disposto no artigo 5 do CRP, ver reconhecido o seu direito de propriedade do veículo em causa nos autos, de matrícula ..-..-HL.
Impõe-se deste modo a procedência do presente recurso, com a consequente procedência da acção.

B) CONCLUSÃO
Em suma, no caso de duas vendas do mesmo bem (viatura automóvel) efectuadas pelo mesmo autor a duas pessoas distintas, sendo uma primeira venda efectuada a A em 1996, da qual não é efectuado qualquer registo e posteriormente, em 1997, sendo realizada uma segunda venda a B que regista a viatura a seu favor, esta segunda venda é nula por venda de coisa alheia.
Esta nulidade, em princípio, não poderia ser oposta ao segundo adquirente (B) – artigo 291 n.1 do CC.
Todavia, sendo a acção intentada e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (a 2ª venda) os direitos do segundo adquirente (B) não podem ser protegidos, devendo ceder perante o direito de propriedade primeiro adquirente (A).
Ou seja, uma vez que adquiriram um mesmo bem de um transmitente comum, apesar do segundo adquirente (B) ter registado a seu favor a aquisição do veículo e primeiro adquirente (A) não o ter feito fez, terá de se reconhecer ao primeiro adquirente (A) o direito de propriedade sobre o veículo, por força do artigo 291 n.º 2 do CC do não obstante o disposto no artigo 5º do CRP.

IV- DECISÃO
Por tudo o que se deixou exposto e nos termos dos preceitos citados, acorda-se em:
1 - Julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida;
2 - Em consequência julga-se a acção inteiramente procedente e, consequentemente:
- se reconhece o direito de propriedade da Autora sobre o veículo de matrícula ..-..-HL;
- declaram-se nulos o contrato de compra e venda celebrado entre as 1ª e 2ª RR. e o contrato de locação financeira celebrado entre as 2ª e 3ª RR.;
- considera-se judicialmente resolvido o contrato de locação financeira celebrado entre a Autora e a 1ª R., tendo a Autora direito a conservar suas as rendas vencidas e não pagas
- ordena-se a restituição do veículo e o cancelamento dos registos dos contratos de compra e venda e de locação financeira celebrados entre as 1ª, 2ª e 3ª RR., bem como o registo da aquisição do veículo a seu favor.
Custas pelos Réus.
Registe e Notifique.
Porto, 5 de Julho de 2004
José António Sousa Lameira
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
Baltazar Marques Peixoto