Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0630374
Nº Convencional: JTRP00039089
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ACÇÃO
Nº do Documento: RP200604200630374
Data do Acordão: 04/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 667 - FLS. 1.
Área Temática: .
Sumário: I- No procedimento cautelar e a acção (a propor ou já proposta) a que respeita não tem que haver coincidência de pedidos, mas sim quanto às partes e às causas de pedir.
II- Assim, nada obsta a que na providência cautelar se formule pedido idêntico ao da acção principal, mesmo que esse pedido implique obrigação de facere ao requerido.
III- A providência não tem lugar quando já se tenha verificado a consumação da violação do direito, salva a hipótese de lesões futuras.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

B…… e mulher C……, residentes no Loteamento ……. instauraram no Tribunal Judicial de Mirandela, providência cautelar não especificada, a que coube o nº 1338/04.3 TBMLD, contra D……, L.da, com sede na Praça do ….., loja …., …., Mirandela, pedindo que esta seja condenada a, a expensas suas e com os cuidados de engenharia necessária de forma a não causar prejuízos, acabe de tirar as rochas na parte mais a norte do lote 47 e coloque o solo à cota do dos requerentes, de forma que não provoquem perigo para os requerentes e para os seus bens.

Alegam , para tanto, em síntese:
- Que a requerida é proprietário do terreno contíguo ao dos requerentes, onde estes têm implantada a sua habitação, sendo que aquela, por volta de 23 de Maio de 2003, desaterrou o seu lote para ficar com a parte que confronta com a rua à cota desta, deixando o extremo norte do terreno, no fundo, constituído por rochas, por desaterrar, e com cota superior ao terreno dos requerentes;
- Que tal desaterro fora feito com caterpillar com giratória e alguns tiros de dinamite, tendo destruído, por força do tipo de solo, a latada dos requerentes, e danificado a solidez das rochas situadas na extremidade norte;
- Que o solo mais a norte da requerida, colocado a nível superior aos lote dos requerentes, sendo rocha, apresenta fissuras e oferece perigo de derrocada sobre o prédio dos requerentes, o que não acontecia antes do desaterro feito;
- Que apesar de interpelada para tal perigo, a requerida nada fez, considerando inexistir qualquer perigo;
- Que tal derrocada pode causar acidente mortal, para além de destruir obras realizadas pelos requerentes no seu lote, o que muito receiam estes, levando-os a não utilizarem o jardim do lado da casa contíguo ao lote da requerida.

Citada a requerida, veio esta deduzir oposição, pugnando pela improcedência da providência, no essencial impugnando a matéria de facto alegada pelos requerentes, designadamente o uso de dinamite, que as fissuras de rocha invocadas sejam devidas a obras suas, antes oriundas de obras de desaterro dos requerentes para implantação da sua moradia, com isso colocando o seu lote a cota inferior ao da requerida, sendo a única forma de obviar ao desmoronamento a implantação de um muro de suporte, à semelhança do que já fizeram no lado norte do seu lote/prédio urbano.

Depois de ouvir as testemunhas, e realizada peritagem, veio a ser proferida decisão nos termos seguintes:
“…, condena-se a requerida a, em 20 (vinte) dias e expensas suas e com os cuidados de engenharia necessária de forma a não causar prejuízos, acabar de retirar as rochas existentes na parte mais a norte do lote nº 47 e a colocar o solo do mesmo à cota do lote dos requerentes, de forma a erradicar qualquer perigo de desmoronamento”.

Inconformada, veio a requerida agravar dessa decisão, oferecendo as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões:
1 – Deverá atribuir-se efeito suspensivo à decisão ora recorrida, conforme razões e motivos expendidos no requerimento de interposição do recurso da agravante;
2 – Dada a natureza cautelar, urgente, instrumental, excepcional e provisória dos procedimentos cautelares, tal é incompatível com o deferimento da presente providência, uma vez que com esta os requerentes agravados obtiveram e esgotaram já a sua pretensão, não necessitando sequer de instaurar acção principal ou de se preocuparem com o seu desfecho;
3 – O despacho recorrido não demonstra que se verificou o requisito da lesão grave e dificilmente reparável do direito dos requerentes agravados;
Por outro lado, a lesão parece ter-se já verificado.
E o que pretendem com o presente procedimento, não é diferente do que possam obter de uma acção declarativa;
4 – Quer o depoimento testemunhal, quer o relatório pericial e documentos juntos vão no sentido do indeferimento do presente procedimento.
Reapreciando a prova gravada, nada aí se encontra no sentido de que foi a escavação da requerida agravante que criou ou potenciou o perigo de desmoronamento das rochas;
5 – Do art. 1348º do CC só se pode retirar que é aos proprietários dos prédios inferiores, no nosso caso os requerentes, que compete evitar com muros de suporte o deslocamento de terras e rochas dos prédios superiores.

Termina no sentido da revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que julgue improcedente a procedimento requerido.

Os requerentes agravados vieram contra-alegar, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Apontemos as questões objecto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Antes, porém, reunamos a matéria de facto que foi considerada sumariamente provada:

1 – O requerente é legítimo proprietário do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 6090, que confronta a norte terreno, sul rua, nascente lote 47 e poente lote 45, inscrito no registo predial, sob a ficha 01665/090993, nele tendo construído a sua casa de habitação com um jardim e um anexo (cfr.doc.1);
2 – A requerida é proprietária do lote de terreno contíguo pelo lado nascente, nº 47 (doc. Nº 2)
3 – Por força das características do terreno a requerida andou a desaterrar aquele lote por volta de Maio de 2003, para ficar a parte que confronta com a rua às cotas desta, deixando o terreno do lote, no fundo (extremo norte) por desaterrar e com uma cota superior, constituindo estes terrenos rochas;
4 – Fizeram-no com um Caterpilar com giratória e alguns tiros de dinamite, tendo danificado a solidez das rochas existentes na extremidade Norte;
5 – Porém, algum do solo na parte mais a norte, que ficou a nível superior ao prédio dos requerentes, e sendo rochas, ficou em vários pontos rachada, apresentando fissuras e oferecendo perigo de derrocada sobre o prédio do requerente, o que não acontecia até então e que se encontra a cota inferior por força do desaterro efectuado quando construiu a casa de habitação;
6 – Apesar de os requerentes interpelarem a R. e os seus sócios para tomar providências perante p perigo que constituía as rochas fissuradas, esta nada fez até hoje, e com tal atitude consideram que não havia qualquer perigo para as pessoas e bens contíguos àquele;
7 – O perigo de derrocada era e é evidente, aponto de já no dia 18 de Outubro do corrente ano, por força do tempo, parte das rochas caíram para o prédio do requerente e partiram uma pia e destruíram o muro, não tendo destruído a churrasqueira e anexo por muito pouco, continuando a existir esse risco numa próxima derrocada (doc. nº 4);
8 – Continua a existir perigo de derrocada e a requerida nada fez apesar de lhe ter sido solicitado. O requerente tentando evitar o recurso à via judicial ainda solicitou à Câmara Municipal a sua intervenção, no sentido de evitar outros danos futuros, mas esta também nada fez (doc. nº5);
9 – Derrocada que perante o tipo de solo (rocha) em causa e o grande desnível (cerca de 3,50 m) e a dimensão das mesmas, qualquer derrocada pode provocar, além dos danos materiais, um acidente mortal;
10 – Além de poder destruir a obra que existe nesse lado e contíguo ao referido lote, nomeadamente uma churrasqueira e um forno, assim como o cabanal, obras previstas no loteamento para aquele local mais a norte dos lotes;
11 - Agora que a rocha fissurou ainda mais, maior é o perigo e iminência de derrocada, sendo porém imprevisível a hora e a data, o que aumenta o perigo e tipo de dano e a utilização e normal aproveitamento das edificações contíguas;
12 O requerente a sua família têm um enorme receio do que possa acontecer a ponto de não utilizarem a churrasqueira, nem os arrumos, com medo de que a qualquer momento possa acontecer um acidente;
13 – Assim como não utilizam o jardim do lado da casa contíguo com o lote nº 47

APRECIANDO:

1ª QUESTÃO

Como vimos, suscitou a agravante a alteração do efeito do recurso, requerendo que ao mesmo seja fixado efeito suspensivo, questão esta que já por nós foi analisada e decidida a fls. 65, mantendo-se o efeito devolutivo.

2ª QUESTÃO

Num segundo momento, sustenta a agravante que a presente providência é incompatível com a natureza cautelar, urgente, instrumental, excepcional e provisória dos procedimentos cautelares, uma vez que com o deferimento da mesma os requerentes agravados obtiveram e esgotaram já a sua pretensão, não necessitando sequer de instaurar acção principal ou de se preocuparem com o seu desfecho.

Como é sabido, e decorre dos disposto no art. 383º do CPC, o processo cautelar pressupõe necessariamente um outro processo (principal ou definitivo) já pendente ou que vai ser instaurado, surgindo para servir o fim deste processo, sendo a relação entre aquele e este de “instrumentalidade” ou “instrumentalidade hipotética”, o que significa que a providência cautelar é emitida na pressuposição ou na previsão da hipótese de vir a ser favorável ao autor a decisão a proferir no processo principal.

As questões a debater no procedimento cautelar e a acção (a propor ou já proposta) a que respeita não tem que haver coincidência de pedidos, mas sim quanto às partes e às causas de pedir [Ac. RC de 19.2.1992, in BMJ 414, 646].

Assim, nada obsta a que na providência cautelar se formule pedido idêntico ao da acção principal, mesmo que esse pedido implique obrigação de facere ao requerido.

Não tem sentido também a afirmação da agravante de que escusam os requerentes agravados de instaurar a acção principal, uma vez que já estão satisfeitos com o deferimento da providência.
Tanto tal não corresponde à realidade que, se a acção principal não for instaurada pelos requerentes no prazo de 30 dias contados da data em que lhe tiver sido notificada a decisão que a tenha ordenado, tal providência caduca (cfr. art. 389º nº 1 al. a) do CPC), e após a sua instauração, se o processo estiver parado por mais de 30 dias por negligência dos requerentes, do mesmo modo se verifica aquela caducidade (art. 389º nº 1 al. b).
Resulta também daqui bem patente a relação de instrumentalidade, e também de interdisciplinaridade, entre o procedimento cautelar e a acção principal de que aquele depende, assumindo a decisão ali proferida carácter eminentemente provisório em relação à decisão definitiva que venha a ser tomada na acção principal ou definitiva.
Aliás, se esta decisão definitiva não reconhecer o direito acautelado com o procedimento cautelar, este procedimento caduca (cfr. art. 389º al. c) do CPC).
E nesse caso, se for considerada injustificada, ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, este responde pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal (art. 390º do CPC).

No caso vertente, se a acção definitiva vier a ser julgada improcedente, como tal considerando inadequada e injustificada a providência cautelar já ordenada, poderão os requerentes vir a ser responsabilizados pelos prejuízos culposamente causados à requerida, designadamente pagando todas as despesas causadas com a execução das obras desaterro que fora compelida a executar, e bem assim, se for caso disso, os prejuízos inrentes à alteração desnecessária da morfologia do seu terreno.

Prevendo a lei esta situação, determina no art. 390º nº 2 do CPC., que “sempre que o julgue conveniente em face das circunstâncias, pode o juiz, mesmo sem audiência do requerido, tornar a concessão da providência dependente da prestação de caução adequada pelo requerente”.

No caso vertente, o Senhor Juiz não entendeu conveniente tal prestação de caução, nem a requerente tal solicitou, sendo que com essa mesma caução poderia acautelar os prejuízos que eventualmente venha a sofrer com a execução da providência, caso esta venha a ser considerada inadequada pela decisão definitiva.

Do mesmo modo, não seremos nós a decretar a prestação de caução pelos requerentes, porquanto essa questão não é visada no presente agravo.

Em conclusão, diremos que o decretamento da providência em nada dispensa os requerentes de instaurar a acção definitiva, não obstando àquele decretamento a circunstância de a execução do procedimento assumir contornos fácticos idênticos à execução da sentença definitiva.
Do mesmo modo não, tal decretamento não obsta ao interesse que a requerida tem em deduzir oposição a tal acção, pugnando pela sua improcedência, da qual poderá advir o seu direito a ser indemnizada pelos requerentes, caso se verifique o condicionalismo inserto no art. 389º do CPC.

Improcedem, assim, neste âmbito as conclusões da agravante.

3ª QUESTÃO

Num terceiro momento, sustenta a agravante a inadequação da providência decretada, porquanto despacho recorrido não demonstra que se verificou o requisito da lesão grave e dificilmente reparável do direito dos requerentes agravados, sendo que tal lesão já se verificou, não necessitando os requerentes, para acautelar os seus direito, de lançar mão da presente providência, já que a sua pretensão é alcançável através de uma acção declarativa.

Também aqui nos aprece que não assiste razão à agravante.

De facto, “as providências cautelares visam impedir que, durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferia, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela.
Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo) a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica
Chama-se-lhes procedimentos e não acções porque carecem de autonomia – dependem de uma acção já pendente ou que vai seguidamente proposta pelo requerente.” [Antunes Varela, in Manuel de processo civil, 2ª edição, pag. 23]

Dispõe o art. 381º do CPC:
Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.
Não são aplicáveis as providências requeridas nº nº 1 quando se pretende acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte.
Não é admissível, na pendência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado.

Resulta de tal dispositivo legal, que para que seja decretada uma providência cautelar não especificada é sempre necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos:
- probabilidade séria da existência do direito, traduzida na acção proposta ou a propor que tenha por fundamento o direito a tutelar;
- justo e fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação a esse mesmo direito;
- a não existência de providência específica para acautelar o mesmo direito;
- não exceder o prejuízo resultante da providência o dano que com ela se quer evitar.

A providência não tem lugar quando já se tenha verificado a consumação da violação do direito, salva a hipótese de lesões futuras [Ac. RP de 19.10.1992, in Cj, 1982, 4º, 246]

No caso vertente, sendo certo que a lesão do direito dos requerentes já se verificou em parte, porquanto demonstrado ficou que já no dia 18 de Outubro do corrente ano, por força do tempo, parte das rochas caíram para o prédio do requerente e partiram uma pia e destruíram o muro, o certo também é que o perigo de lesão futura resultou também bem evidenciado da factualidade apurada, designadamente que algum do solo na parte mais a norte, que ficou a nível superior ao prédio dos requerentes, e sendo rochas, ficou em vários pontos rachada, apresentando fissuras e oferecendo perigo de derrocada sobre o prédio do requerente (5), sendo o perigo de derrocada é evidente (6), continuando a existir (8), perante o tipo de solo (rocha) em causa e o grande desnível (cerca de 3,50 m) e a dimensão das mesmas, sendo que qualquer derrocada pode provocar, além dos danos materiais, um acidente mortal (9), além de poder destruir a obra que existe nesse lado e contíguo ao referido lote, nomeadamente uma churrasqueira e um forno, assim como o cabanal, obras previstas no loteamento para aquele local mais a norte dos lotes (10), perigo de derrocada agora agravado que a rocha fissurou ainda mais, sendo porém imprevisível a hora e a data, o que aumenta o perigo e tipo de dano e a utilização e normal aproveitamento das edificações contíguas (11), o que determinou que o requerente e sua família tenham um enorme receio de que possa acontecer um acidente, a ponto de não utilizarem a churrasqueira, nem os arrumos, com medo de que a qualquer momento possa acontecer um acidente (12), da mesma forma procedendo em relação ao jardim do lado da casa contíguo com o lote nº 47 (13).

Os factos provados “falam” por si, sendo que o despacho recorrido bem relevou o perigo de desmoronamento ou deslocação de terras “exponenciado pela intervenção da requerida, ao efectuar a escavação sem que estivessem reunidas as condições de segurança, o que não podia desconhecer e acautelar, assim agindo de forma negligente”.

Assim, considerando também que “os requerentes, enquanto legítimos proprietários do imóvel têm radicado na sua esfera jurídica um direito susceptível de protecção através da providência requerida”, sendo “incontroverso que a conduta da requerida criou um risco de violação e mesmo de postergação do direito destes, na medida em que de forma abusiva constrange o domínio total e global do mesmo”, foi a decisão recorrida bem clara na verificação dos pressupostos supra apontados, por isso decretando a providência requerida.

Assim, não assiste razão à agravante, também neste aspecto do agravo.

4ª QUESTÃO

Neste momento do seu agravo, põe a requerente em causa a decisão da matéria de facto, quanto (ao fim de contas, segundo a agravante) toda a matéria de facto alegada no requerimento inicial.

Sustentando nas alegações que o Senhor Juiz se baseou no nos documentos, perícia e testemunhas, sem referir qual ou quais, e nesse sentindo dizendo existir insuficiente fundamentação fáctica, acaba por, nas conclusões, tão só pôr em causa aquela mesma decisão da matéria de facto.
Mas, dirigindo a nossa atenção para as alegações, a agravante, depois de tecer alguns considerandos a respeito dos documentos, e bem assim do relatório pericial ponto D das alegações), acaba por dizer que “pretende a reapreciação da prova gravada”, transcrevendo uma única passagem do depoimento de cada uma das testemunhas, e concluindo que “pelo sentido dos depoimentos assim prestados pensamos não poder afirmar-se e dar por provada a matéria de facto constante do requerimento inicial, e daí partir para o deferimento da providência, Depoimentos que, isso sim, apontam no sentido do indeferimento do procedimento cautelar”.

Prende-se a questão, assim, com o recurso da decisão da matéria de facto, com base nos depoimentos das testemunhas.

Vejamos:

A possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e de prova neles produzida foi introduzida no nosso ordenamento jurídico através do Dec. Lei nº 39/95 de 15 de Fevereiro.
Resulta do preâmbulo de tal diploma legal que “ a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento”.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas inserto no art. 655º nº 1 do CPC – o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto [Ac. Da Relação de Coimbra de 3 de Outubro de 2000 e 3 de Junho de 2003, in CJ, Anos XXV 4º pag. 28 e XXVIII 3º pag. 26, respectivamente]

Ao Tribunal de segunda Instância competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Em nosso entender, a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto exige que este tribunal ouça as gravações de todos os depoimentos tocantes às matérias de facto reclamadas, e não apenas as testemunhas referenciadas pelo recorrente como “boas”.
Só desta forma se poderá ter uma perspectiva global da prova produzida e se poderá decidir com a autoridade intelectual exigível de todo e qualquer Tribunal.

Aqui chegados, diremos que a agravante não deu satisfatório cumprimento ao preceituado nos arts. 690º-A, nºs 1 e 2 e 522º-C, ambos do CPC, na redacção emergente do DL nº 183/2000 de 10 de Agosto, sendo que aquele primeiro normativo, na redacção do DL nº 329-A/90, de 12.12 e DL 183/2000, dispõe nos seguintes termos:
1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
Quais os concretos ponto meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunha decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida;
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 522º-C”
3. Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, [................], proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, também por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 522º-C”.

Por seu turno dispõe o art. 522º – CC do mesmo diploma:
A gravação é efectuada, em regra, por sistema sonoro, sem prejuízo do uso de meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor.
Quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento.

Põe-se aqui a questão de saber se o presente recurso deve ser rejeitado, no tocante à reapreciação da prova testemunhal, pelo facto de a apelante não ter referenciado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, e bem assim quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunha decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida.

Apreciando, diremos que não nos restam dúvidas que a agravante não deu cumprimento ao estatuído naqueles normativos, limitando-se a apontar uma passagem de cada um dos depoimentos, que por si não têm a mínima potencialidade para alterar a decisão da matéria de facto, não apontando nenhum facto em concreto, mas sim toda a factualidade.
A recorrente limitou-se a enunciar as testemunhas, não apontando sequer o número do início e fim do respectivo depoimento gravado, e a dizer que os depoimentos destas deverão ser reapreciados por este tribunal, em relação a toda a matéria de facto constante do requerimento inicial, interpretados diferentemente pelo Tribunal, por forma a que este concluísse pelo indeferimento do procedimento cautelar

Tal procedimento é em nosso entender desrespeitador dos preceitos supra transcritos, que impõe desde logo a localização precisa do depoimento da testemunha, por referência à gravação numerada e consignada em acta, e a indicação, necessariamente por transcrição, dos concretos depoimentos, em relação aos concretos pontos da matéria de facto.
O que a agravante fez equivale a solicitar a total audição dos mesmos depoimentos por parte deste tribunal, em relação a toda a matéria de facto, sem alusão específica, o que se não compagina com os espírito subjacente à metodologia legal inerente ao duplo grau de jurisdição que aqueles normativos encerram.

A não se interpretar assim a disciplina legal, bastaria que o recorrente dissesse qualquer coisa deste género: “Não concordo com a decisão de toda a matéria de facto, e para tanto solicito ao Tribunal da Relação que ouça todas as testemunhas”.
Imaginemos, por hipótese, uma testemunha que prestou depoimento que fora gravado em 3 ou 4 cassetes de 90 minutos cada uma, e o recorrente põe em causa a decisão da matéria de facto naqueles termos.
Será aceitável que o tribunal tenha de ouvir as tais 3 ou 4 cassetes, na sua totalidade, em verdadeira busca da parte do depoimento que possa pôr em causa parte da decisão da matéria de facto, que o recorrente nem especifica?
Claro que não, bem pelo contrário - cumpre ao recorrente dizer qual o depoimento, transcrevendo-o, precisar o preciso local da sua gravação, por referência às voltas do respectivo registo magnético, início e termo.

Em caso de impugnação da matéria de facto, o não cumprimento do disposto no art. 690º - A nº 1 do CPC – indicação dos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e a indicação precisa das provas que impõem decisão diversa – implica a rejeição, nessa parte do recurso, ou o seu não conhecimento[Ac. do STJ de 5.2.2004, Ac. RL de 23.3.2002 , ambos in www.dgsi.pt; Ac. RL de 25.3.2003, in CJ, 2, 97, e Ac RC de 24.9.2003, in CJ 4, 17].

O legislador, ao conceder a possibilidade de recurso sobre a decisão da matéria de facto, com base no depoimento de determinada testemunha, exige que o recorrente, para além de indicar o concreto ponto de facto que considera incorrectamente julgado, o que não é satisfeito pela referência genérica a toda a matéria de facto constante do requerimento inicial, indicar também a(s) testemunha(s), e em que excerto do seu depoimento baseia a sua pretensão, necessariamente transcrevendo-o, precisando o início e termo de respectivo registo magnético, por referência à numeração consignada na acta da audiência de julgamento.

Impõe-se ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios de prova que, na sua opinião, imponham decisão diversa da adoptada na decisão recorrida [J Lebre de Freitas e A. Ribeiro Mendes, in Código de processo Civil Anotado, 53.].

Tratam-se de formalidades de cumprimento fácil e imprescindível à possibilidade do tribunal de recurso poder apreciar as questões, que implica o conhecimento de quais sejam, e à parte contrária poder exercer eficazmente a sua defesa.

Assim, tendo em vista a reclamação deduzida pela agravante à decisão da matéria de facto, não terá este Tribunal em consideração os depoimentos gravados em audiência de julgamento, apenas se tendo em consideração o relatório pericial e documentos juntos aos autos a que a apelante, nesse âmbito, faz alusão.

Procedendo a tal operação, devemos concluir que os documentos juntos não têm forma probatória que contrarie a factualidade que se considerou provada, o mesmo sucedendo relativamente ao relatório pericial que confirma o perigo de derrocada do terreno adjacente ao lote 46 no extremo norte-nascente, e que “quer a escavação efectuada pelos requerentes, quer mais tarde a escavação posteriormente efectuada pela requerida constituem os motivos para um eventual desprendimento de parte do maciço localizado no extremo Norte”, do mesmo não se podendo também extrair que o Senhor Juiz, apreciando livremente tal relatório pericial, tenha ajuizado erroneamente.

Improcede, assim, também a conclusão do agravo inerente a esta questão.

5ª QUESTÃO

Por último, põe a agravante em causa a decisão da providência sob o ponto de vista jurídico, sustentando ser obrigação dos requerentes como proprietários do prédio inferior, evitar com muro de suporte o deslocamento de terras e rochas de prédios superiores, tal como preceitua o art. 1348º do CC.

Analisemos a questão:
Dispõe aquele normativo nos termos seguintes:
O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra.
Logo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias.

Na decisão recorrida, o Senhor Juiz reportou-se a este normativo, dizendo, a seu respeito, “é perceptível que os requerentes podiam fazer escavações no seu lote – como efectivamente fizeram – desde que não privassem o lote vizinho do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra.”
E continua: “Mas ser-lhes-á imputável a responsabilidade pela situação actual?
Cremos que a resposta tem de ser negativa.
Como bem sublinha o Sr. Perito, foi a intervenção da requerida que criou a exponenciou o perigo de desmoronamento, ao efectuar a escavação sem que estivessem reunidas as condições de segurança. O que não podia desconhecer e acautelar. Agiu, portanto, pelo menos de forma negligente.”

Ponderando a questão, diremos que se nos afigura correcta a análise feita na decisão, porquanto, sendo certo que os requerentes procederam a desaterro para construção da sua casa de habitação, deixando com isso o seu lote a cota inferior, não resultou de tal factualidade que o lote vizinho pertencente à requerida tenha passado a padecer de risco de desmoronamento ou deslocação de terras.
Se tal desmoronamento ou deslocação de terras ocorresse em virtude daquelas obras, teria a requerida direito a ser indemnizada.

Tal risco de desmoronamento só surgiu para o prédio dos requerentes, e não para o prédio da requerida, com o desaterro efectuado por esta em Maio de 2003, para tanto recorrendo a Caterpilar com giratória e alguns tiros de dinamite, deixando com isso o maciço Norte fragilizado e fissurado, vindo mesmo a constatar-se queda de rochas sobre o lote dos requerentes em 18 de Outubro de 2004.

Daí que, sendo certo que os requerentes, ao procederem ao desaterro do seu lote, poderiam ter construído um muro de suporte sobre alinha contígua com o lote da Ré, antevendo desaterro que este viesse a realizar neste, o facto de não ter procedido daquele modo não legitima a actuação negligente da requerida, a qual, como apurado ficou, exponenciou o risco de lesão da propriedade dos requerentes.

Mantém-se, pois, também neste aspecto, a decisão recorrida.

Improcede, assim, totalmente o presente agravo.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela agravante

Porto, 20 de Abril de 2006
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão