Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0636585
Nº Convencional: JTRP00039919
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
VIOLÊNCIA
Nº do Documento: RP200612210636585
Data do Acordão: 12/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 699 - FLS. 186.
Área Temática: .
Sumário: I- A colocação de materiais no leito de uma servidão ainda que com a finalidade de impedir o possuidor de continuar a utilizar esse imóvel, só por si, não integra o referido conceito de violência, uma vez que o desapossamento, temporário, foi efectuado através duma acção que não incidiu sobre o possuidor, não se tendo verificado qualquer ofensa física ou psicológica à sua capacidade de auto-determinação, que justifique a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
II- Mas esta conclusão restritiva não deixa desarmada a pessoa desapossada, podendo esta recorrer ao procedimento cautelar comum, nos termos previstos para o artº 395º, do C.P.C., desde que a manutenção dessa situação ilícita lhe cause prejuízos graves e de difícil reparação, para obter uma intervenção urgente do poder judicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Relatório
B………….. e mulher C……………., residentes na Rua ………….. (também conhecida por Rua ……….), s/n, lugar e freguesia de ……….., concelho de Santa Maria da Feira, instauraram no …º Juízo do tribunal Judicial de S. João da Madeira procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse contra D…………., Lda., com sede na Rua ………., n.º …, …. dto., ….., Aveiro. E…………., S.A., com sede na …………, n.º …., …º andar, Lisboa, na qualidade de dona da obra, F…………….., S.A., com sede em Rua …….., n.º ……, ….., ….., Braga, na qualidade de empreiteira, G…………, Lda., com sede em …….., Arouca, na qualidade de subempreiteira, e Câmara Municipal de S. João da Madeira, pessoa colectiva n.º 506 538 575, situada na Avenida ……., em São João da Madeira, na qualidade de proprietária de terrenos adjacentes e que intercedem entre o prédio correspondente ao artigo 4.666º U e o prédio dos requerentes (art. 946º R), pedindo que sejam as requeridas condenadas a:
a) reconhecerem que os requerentes são donos e legítimos proprietários do(s) prédio(s) e do dito caminho de servidão, identificado(s) no art. 1.° do requerimento inicial;
b) reconhecerem que com violência, abusivamente e de má-fé, estão a destruir o muro de vedação sul-nascente do prédio dos requerentes;
c) que com violência, ilícita, abusivamente, estão a aterrar a dita vala;
d) e com violência, ilícita, de forma abusiva e de má fé, a destruírem os sinais do dito caminho de servidão com 4 metros de largura que é o único meio de acesso dos autores ao seu prédio;
e) a reconhecerem (as requeridas) que com violência, abusivamente e de má-fé estão a elevar em mais de um metro de altura, o nível do leito da dita servidão e a transformarem tal sítio em logradouro do dito hotel;
f) a procederem (as requeridas) à reconstrução do dito muro de vedação do prédio dos autores no topo sul/nascente, nos mesmos materiais em que estava feito (pedra de alvenaria e cimento);
i) pagarem aos requerentes uma indemnização por todos os prejuízos e danos causados e que ainda venham a causar até à execução integral da decisão a proferir nestes autos e na acção principal (designadamente danos patrimoniais e não patrimoniais, custas judiciais, despesas e honorários de advogado), o que será liquidado em execução de sentença;
j) a absterem-se da prática de todo e qualquer acto susceptível de prejudicar ou ser de algum modo incompatível com a reposição da continuidade regular da posse dos requerentes sobre o dito caminho de servidão com a largura de 4 metros e sobre os seus dois ditos prédios (actualmente unificados numa só matriz) e respectivos frutos, utilidades e rendimentos;
k) pagarem custas, procuradoria e demais encargos legais com a presente providência e com a subsequente acção principal, a que deram causa.
Para tanto, e em síntese, alegaram, que são donos e legítimos possuidores de dois prédios, sitos no lugar ……., ambos a confrontar do sul com H………… e caminho de servidão, inscritos anteriormente na matriz sob os artigos 282 e 283 e actualmente apenas sob o n.º 946, bem como de um caminho de servidão de cerca de 4 metros, que passa a sul do referido prédio dos requerentes.
Tais prédios vieram à sua posse na sequência da partilha a que se procedeu por óbito do pai do autor. Para além disso, vêm possuindo tal prédio há mais de 30, 40 e 50 anos, com acesso único pelo dito caminho de servidão. O pai do autor chegou a ter uma ramada de videiras sobre o dito caminho. Por aí passou ainda o mesmo a pé e com carro de bois, e os autores mais recentemente com tractores e alfaias agrícolas, quer para semear, quer para colher tudo quanto ali é semeado, produzido e colhido. Foram assim imprimindo no solo sinais visíveis e permanentes, designadamente relheiras e terra calcada e recalcada e sem vegetação. Tudo aconteceu contínua e ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, pública e pacificamente, de boa fé, de modo exclusivo, pagando as respectivas contribuições e impostos, na convicção de que exerciam direitos de propriedade e servidão que exclusivamente lhes pertenciam e continuam a pertencer.
Entre os dois referidos prédios dos requerentes existe um desnível de cerca de dois metros, sendo o prédio do lado nascente o mais baixo, o qual por isso tem acesso próprio e independente do outro, há mais de 70 anos, pelo dito caminho que passa a sul.
A Câmara Municipal de S. João da Madeira (CMSJM) adquiriu o prédio de H………… e outros prédios dos demais confinantes a sul do prédio dos requerentes, que foram objecto de operações de loteamento, de onde resultou o actual prédio inscrito na matriz urbana de S. João da Madeira sob o artigo 4666º urbano, desanexado do prédio n.º 02557/060593.
Este prédio foi objecto de venda em hasta pública, tendo sido adquirido pela sociedade “D………., Lda.”. Nessa altura o autor enviou à edilidade a carta de que se mostra junta cópia a fls. 48, que obteve a resposta de fls. 49, reconhecendo esta o caminho de servidão, em benefício do prédio dos autores.
Está em construção na dita parcela um hotel, bem como a realização de obras de definição dos respectivos logradouros. Entre 27/08/2006 e 02/09/2006, as cinco rés, agindo concertadamente, com violência, invadiram, ou mandaram invadir, o dito caminho de servidão, onde depositaram grandes quantidades de terra, elevando em mais de um metro o nível do solo do dito caminho de servidão, que assegurava até há cerca de uma semana o único acesso para o prédio dos requerentes.
Depositaram em tal caminho elevadas quantidades de pedra, quer de calçada, quer de pavimento (pedra de paralelepípedos) e iniciaram a implantação de lancil em pedra, com o que impediram assim, de todo, o acesso ao prédio dos requerentes. Indiciam as ditas obras que as requeridas pretendem apoderar-se de tal servidão, tornando impossível o acesso dos requerentes ao seu prédio pela dita e única servidão de acesso, da qual estão a destruir aceleradamente todos os sinais.
Atulharam a vala existente entre o caminho de servidão e o muro com a largura de cerca de um metro, destruíram o dito muro de vedação, que era em pedra de alvenaria e cimento.
Os requerentes não podem usufruir dos seus terrenos, não podem recolher os pastos, cultivar vinhas e não podem cultivar as hortaliças que ali cultivavam, bem como estão a perder as melhores condições e oportunidades de procederem à sua venda, em condições normais de mercado, porque a Câmara Municipal tem vindo a fazer constar que o prédio dos autores é para atulhar e ali ser feito o Jardim da Ponte. Em 1990, a Câmara Municipal tentou expropriar os requerentes, oferecendo valores irrisórios.
Procedeu-se à inquirição das testemunhas, em sede de audiência, e decidiu-se julgar improcedente o procedimento cautelar de restituição provisória da posse que B………… e mulher C………. instauraram contra D……….., Lda., E…………, S.A., F…………, S.A., G……….., Lda. e Município de S. João da Madeira.
… …
Inconformados com esta decisão os requerentes interpuseram dela o presente recurso concluindo que:
Os recorrentes provaram indiciariamente a posse, o esbulho e a violência concertada por parte das Rés, sobre o dito caminho de servidão que a partir da Rua …….. estabelece o acesso à parcela mais baixa (………) do prédio dos Autores;
No que tange à posse o tribunal “a quo” reconhece-a coma indiciariamente provada;
No que tange ao esbulho, a tribunal “a quo” não o deu como indiciariamente provado, mas porque lavrou em erro de julgamento, quer de facto quer de direito;
Embora o Tribunal “a quo” evidencie conhecimento da doutrina e jurisprudência mais autorizadas, na sequência dos invocados erros de julgamento e insuficiência de instrução, não reconheceu a efectividade galopante do esbulho, como de resto resulta da evolução já previsível e subsequente, bem evidenciada nas fotografias juntas como documentos nºs 1 e 2, que agora se juntam ao abrigo do principio da actualidade das decisões judiciais, que aqui se dão por integradas, optando, sem fundamento, para a qualificação dos factos como mera turbação.
Todos os meios de prova carreados para os autos até ao final da audiência, convergiram de forma inequívoca para a evidência irrecusável de que:
- desde finais de Agosto de 2006 até à presente data e agora ainda mais por força das obras de construção do muro evidenciado nas fotografias que agora se anexam,
- por causa necessária e directa das ditas obras realizadas concertadamente pelas Réus, os Autores estão privados da retenção ou fruição do caminho de servidão possuído e impossibilitados de o continuarem a reter e a fruírem.
Por isso é de todo injustificada e inadequada a qualificação da conduta dos Réus como meramente turbativa;
Por último, a violência física e moral também resulta evidenciada e irrecusável;
Efectivamente o Município de S. João da Madeira que goza e abusa prerrogativa do “jus imperii” desvia-o do fim, e está evidentemente comprometido com os desígnios que animam todos os Réus nos desmandos que vão apontados.
Caso contrário não permitiria jamais que mesmo nas barbas de quem a dirige se praticassem impunemente tantas obras sobre o dito caminho de servidão ao ponto de terem tornado ocultos e de todo irreconhecíveis os sinais do dito caminho de servidão que assim se acha absolutamente descaracterizado e impedido de continuar a ser exercido, quer pela dita subida do nível em cerca de um metro, quer pelo tipo de pavimento (pedra que facilmente se desconjunta se por lá passarem tractores e veículos de peso, porte e estrutura semelhantes) e que se prolongou sobre a totalidade do leito do dito caminho de servidão em beneficio do prédio dos Autores.
A decisão recorrida violou assim as normas que invoca em seu sustento e os princípios constitucionais e legais acima identificados e que aqui se dão por integrados, subjacentes à própria jurisprudência invocada, devendo ser reparada e ou revogada e substituída por outra que decrete a restituição provisória da posse dos Autores ao dito caminho de servidão que a partir da Rua ……… estabelece o acesso à parcela mais baixa do dito prédio dos Autores, ordenando a destruição e remoção de tudo quanto lá foi feito e construído (designadamente a calçada e o dito muro que acaba de ser construído, bem como do mais que entretanto venha a ser lá executado pelos Réus, por modo a que os Autores sejam represtinados à plenitude da posse sobre o dito caminho de servidão com a largura de 4 metros e a comprimento de cerca de 70 metros, condenando os Réus a absterem-se da prática ou do consentimento da prática de todos e quaisquer actos susceptíveis de impedirem ou sequer de minorarem o direito de servidão dos Autores nos termos acima expostos e que aqui se reiteram, por assim ser de lei e de inteira Justiça.
Não houve contra alegações.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
… …
Fundamentação
A primeira instância deu como provado que:
Os requerentes são donos dos seguintes prédios: dois campos de terra lavradia, denominados “I……….” e “J……….”, sitos no lugar de “…….”, freguesia e concelho de São João da Madeira, a confrontar do norte com herdeiros de L………., do sul com H………. e caminho de servidão, do nascente com regato e do poente com a Rua ………., inscritos anteriormente na matriz sob os artigos 282º e 283, e actualmente apenas sob o artigo 946º.
Os prédios referidos advieram à propriedade e posse dos requerentes por partilha da herança aberta por óbito do pai do requerente marido.
Há 50 e mais anos que os requerentes e antepossuidores vigiam e guardam os referidos prédios, podam as videiras e árvores, têm pastos e plantam hortaliças nos mesmos prédios, colhendo os seus frutos, utilidades e rendimentos.
Pelo menos nos últimos dois anos, os prédios não foram cultivados ou agricultados.
O pai do requerente, para aceder aos prédios referidos no ponto 1º, passou a pé e de carro de bois sobre um caminho existente a sul dos mesmos, com cerca de 4 metros de largura, para semear e colher o que naqueles era produzido e colhido.
O pai do requerente chegou a ter uma ramada de videiras sobre o referido caminho.
Os requerentes passaram nesse mesmo caminho com tractores e respectivas alfaias, para semearem e colherem o que nos prédios referidos no ponto 1º era produzido e colhido.
Esse caminho apresentava relheiras e terra calcada e recalcada, sem vegetação.
O pai do requerente e estes praticaram tais actos de forma contínua e ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de que exerciam direitos próprios.
Entre os dois prédios referidos no ponto 1º, existe um desnível de aproximadamente dois metros, estando o prédio do lado nascente a uma cota inferior.
O prédio do lado nascente tem acesso próprio e independente do outro prédio, ambos referidos no ponto 1º, há mais de 50 anos, exclusivamente pelo dito caminho que passa a sul.
Tal caminho servia também, até há cerca de três anos, de acesso ao prédio de H…………., que confinava de sul-poente com o prédio dos requerentes.
O Município de São João da Madeira adquiriu o prédio de H………. e outros prédios de confinantes a sul com o prédio dos requerentes, referido no ponto 1º.
Na sequência de operações de loteamento, resultou o actual prédio descrito na matriz urbana da freguesia de S. João da Madeira, sob o artigo n.º 4.666º, aí constando com a área de 2.260 m2, a confrontar do norte com Câmara Municipal, do sul com Rua …………, do nascente com a rua ………… e de poente com M………. e outros, com o valor patrimonial actual de € 185.178,71, desanexado do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de São João da Madeira sob o n.º 02557/060593.
Esse terreno foi objecto de venda em hasta pública, com uma área inicialmente anunciada de 2750 m2, tendo sido, segundo consta, adquirido pela sociedade “D………., Lda.”.
Aquando da publicação do edital a anunciar a venda em hasta pública, o requerente dirigiu ao Presidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira a carta de que se mostra junta cópia a fls. 48, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, para todos os legais efeitos.
O Município de S. J. da Madeira respondeu ao requerente através da carta de que se mostra junta cópia a fls. 49, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos.
O prédio referido em 14º, segundo consta, foi objecto de negociação tendo em vista a sua transmissão a favor da sociedade E……….. .
No prédio referido no ponto 14º está em curso a construção de um edifício, destinado a hotel.
Estão em curso as obras de arranjo da área envolvente de tal hotel, quer para a Rua …………., quer para norte, para os lados do prédio dos requerentes e caminho a sul dos mesmos.
A requerida “F………., S.A.” é empreiteira da obra e a requerida “G……….. Lda.” subempreiteira.
O Município de S. J. da Madeira é proprietário confinante com o prédio onde está a ser construído o hotel e com o prédio dos autores.
Em data indeterminada, mas compreendida entre 27/08/2006 e 02/09/2006, e na execução das obras de arranjo da zona envolvente do hotel, foram colocadas terras no dito caminho, situado a sul do prédio dos requerentes, elevando o nível do solo do mesmo, entre 60 cms a 1 metro, encontrando-se todavia presentemente o solo aplanado.
Foi ainda depositada em tal caminho pedra (miúda) de calçada e pedra de paralelo, que entretanto foram daí retiradas.
Foi ainda colocado, em tal caminho, lancis em pedra.
Durante o tempo em que aí permaneceram amontoadas as terras, pedras e inertes, os requerentes não puderam aceder de veículo à parte do seu prédio situada a uma cota inferior (parte nascente).
Entre o dito caminho situado a sul e parte do muro de vedação do prédio dos autores existia uma vala.
Com as movimentações de terras, de pedras, sobras de alcatrão e outros materiais de construção sobre o dito caminho, foi atulhada tal vala.
O muro de vedação do prédio mais baixo dos requerentes, que era em pedra e cimento, mostra-se parcialmente derrubado, provavelmente devido à pressão das terras, pedras e sobras de alcatrão.
Em 24 de Maio de 1998, os ora requerentes demandaram a Câmara Municipal de S. J. da Madeira, alegando a destruição do muro ora derrubado e ucheira, tendo tal acção terminado por transacção homologada judicialmente por sentença.
O pedido da Câmara Municipal de S. João da Madeira, o Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, por despacho de 18 de Fevereiro de 1998, declarou a utilidade pública e atribuiu carácter urgente à expropriação do prédio dos requerentes, por ser indispensável à execução do projecto do “Jardim Público da Ponte”.
A Câmara Municipal de S.J. da Madeira tem vindo a fazer constar publicamente que o prédio dos requerentes se destina à construção do ……….. .
… …
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da agravante há que decidir se existiu erro de julgamento e insuficiência de instrução e se com os factos provados deveria proceder a o procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

Do erro de julgamento e insuficiência de instrução.
Nas suas conclusões, os recorrentes referem ter existido erro de julgamento, quer de facto quer de direito e no corpo das alegações (mas não já nas conclusões) dizem que o nº23 dos factos provados não deveria conter a expressão “encontra-se todavia presentemente o solo aplanado”;
os nº 24 e 26 não deveriam conter a expressão de que entretanto as pedras foram daí retiradas;
os nº30 e 31 deveriam conter o reconhecimento feito pela Câmara Municipal de S. João da Madeira de que destruiu o muro e a ucheira.
Pretende-se assim que a matéria de facto fixada nesses números passe a ter as alterações enunciadas.
Nos termos do n.º1 a) do art. 712 do CPC, a decisão do tribunal da 1ª Instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690-A, a decisão com base neles proferida.
Por sua vez o nº1 do art. 690-A do C.P.Civil estabelece que o recorrente quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; quais os concretos meios probatórios constante do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da decisão recorrida.
Acrescenta o nº2 do preceito citado que, neste caso, cabe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº2 do art. 522-C do CPC.
Os fundamentos de prova indicados pelos recorrentes para a modificabilidade da decisão facto assentem assim nos critérios de convicção do julgador na apreciação da prova produzida.
Importa, no entanto, sublinhar que, no nosso ordenamento jurídico vigora, o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (art. 655 do CPC), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação quanto à natureza de qualquer delas, e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido.
No tocante ao julgamento da matéria de facto refere o Tribunal Constitucional, de 3.10.2001, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 51°., págs. 206 e ss. – “A garantida do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas", e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador" entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova" e factores que não são "racionalmente demonstráveis", de tal modo que a função do Tribunal de 2ª Instância deverá circunscrever-se a "apurar da razoabilidade da convicção probatória do 1º grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos.
A questão é saber a convicção vertida nas respostas cabe, razoavelmente, nesses elementos, se esses elementos suportam ou não essa convicção.
O Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibi perante si".
É este também o sentir da jurisprudência do STJ que refere. “ a análise da prova gravada não importa a assunção de uma nova convicção probatória, mas tão só a averiguação da razoabilidade da convicção atingida pela instância recorrida (Ac. STJ, de 13.03.2002, Rev. n°. 58/03, 7ª Secção, Sumários, Março/2003, www.stj.pt).
No caso vertente constam do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa (registo áudio dos depoimentos e documentos juntos) e a impugnação da matéria de facto pelos recorrentes satisfaz estes requisitos, dizendo em concreto quais as questões que em seu entender devem ser alteradas, da mesma forma que indica os meios de prova em que funda a sua posição.
Perante o exposto e atendendo à audição dos registos fonográficos e leitura da transcrição de todos os depoimentos, bem como atendendo aos restantes elementos probatórios dos autos, observamos liminarmente que a consideração dos factos provados e que foram impugnados não merece censura.
Como fundamentação para o facto feito constar como nº23 da matéria provada refere-se expressamente no despacho que motivou as respostas, a constatação feita pelo próprio tribunal em deslocação ao local (vd. fls.116) razão pela qual fica sem fundamento a alegação dos recorrentes no sentido de que nenhuma prova tinha sido feita no sentido de o terreno da servidão estar aplanado.
Quanto aos nºs 24 e 26 igualmente no despacho que motivou as respostas refere-se que o tribunal constatou na inspecção ao local que as pedras e os inertes haviam sido retirados, sendo tal bastante para se concluir que existe fundamentação para se ter respondido como se respondeu.
Por último os recorrentes pretenderem que se fizesse constar que a Câmara Municipal reconheceu que destruíu o muro e a ucheira é de todo irrelevante uma vez que a testemunha que tal referiu (a primeira ouvida) situou esses factos há 10/15 anos, não tendo os mesmos nenhuma relação com a situação agora em discussão e sendo estranhos a qualquer decisão plausível sobre a questão de direito que se circunscreve à apreciação dos pressupostos da restituição provisória da posse.
Assim, deve manter-se integralmente e sem alteração a matéria de facto fixada na primeira instância.

Da verificação dos pressupostos da restituição provisória da posse.
O art. 393 do CPC refere que no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando factos que constituem a posse, o esbulho e a violência. E a finalidade deste procedimento é, então, apenas, o de restituir a posse ao esbulhado (art. 394 CPC).
Não questionada a decisão recorrida quanto ao reconhecimento da posse dos recorrentes a questão a decidir neste domínio prende-se apenas com a existência de esbulho e com a violência.
O esbulho pressupõe que o possuidor foi privado da posse, isto é, que foi colocado em condições de não poder continuar a exercer a posse (conf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 669).
Pode ser parcial, ou seja, verificar-se só em relação a uma parte da coisa, como sucede quando alguém se apropria de uma parte de um prédio rústico que outrem possui, murando-a por exemplo (conf. Manuel Rodrigues, A Posse, 3ª edição, pág. 363).
Diferentemente do esbulho, a turbação não priva o possuidor de continuar a possuir, sucedendo apenas que “possuidor foi incomodado, viu a sua posse embaraçada e disputada” (Alberto dos Reis, obra e local citado).
A turbação é menos que o esbulho mas mais que a simples ameaça, prejudicando o exercício da posse nas não tanto que o possuidor fique privado dela, pois então temos esbulho.
A pedra de toque da distinção está nisso mesmo:
“Enquanto o possuidor, quaisquer que sejam os ataques e as ofensas à sua posse, conserva a retenção material ou fruição real do direito, há simples turbação” (Rev. Leg. Jurisp., Ano 44, pág. 52);“O acto de turbação pode diminuir, alterar ou modificar o gozo e o exercício do direito, mas não destruir a retenção ou a fruição existente, ou a sua possibilidade” (Manuel Rodrigues, obra citada, pág. 362).
Ora, reportando-nos ao caso sub judice, tem-se como certo, como se refere na decisão recorrida, que não houve esbulho total.
O facto de terem sido colocadas terras no caminho que elevando o nível do solo do mesmo entre 0,60 cms e 1 m , entretanto já se encontra aplanado; o ter sido ali colocada pedra de calçada que entretanto foi retirada e o ter sido colocado em tal caminho lancis de pedra não constituiu uma impossibilidade de os recorrentes continuarem a usar esse caminho, mesmo quando os materiais criaram alguma obstrução, tendo-se provado que, mesmo nessa altura, aqueles apenas se viram temporariamente provados de passarem de veículo para o prédio, concluindo a decisão recorrida, de acordo com a observação in loco que fez, que não existe impedimento não facilmente removível ou contornável, á passagem, mesmo de veículo.
Aquilo a que os recorrentes chamam nas suas conclusões de “efectividade galopante do esbulho” mais não é que a confirmação de que á data da propositura da providência, e mesmo da sua decisão, (a que importa para confirmar ou infirmar o mérito da decisão) o que existia era uma turbação da posse, mais ou menos forte, mas não um esbulho total que se traduzisse numa situação de impossibilidade completa de praticar os actos de possuidor.
Os recorrentes argumentam dizendo que com a junção que fazem, com as alegações, de duas fotografias resulta “a evolução já previsível e subsequente” do esbulho o sem fundamento da decisão ao considerar a existência de mera turbação.
Ora, a junção com as alegações de duas fotografias para ser admissível deveria obedecer ao preceituado no nº 1 do art. 706 do CPC que estabelece que as partes podem juntar documentos às alegações nos casos excepcionais a que se refere o art. 524, ou no caso de a junção se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância, dispondo este último pr4eceito no seu nºs 1 e 2 que depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento; os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo.
No segmento que nos interessa, os recorrentes fazem a junção avulsa das fotografias parecendo indicar que essas fotos reproduzem uma situação existente mas não a datando.
Isto é, não se diz que tais imagens correspondem a uma situação existente antes da decisão proferida, não se pedindo sequer que seja alterada ao abrigo delas a matéria de facto dada por assente.
Ora, a possibilidade de junção de documentos após os articulados deve conjugar-se com o disposto no art. 663 do CPC no que se refere à existência de factos supervenientes e sua atendibilidade, sabendo-se que a superveniência se mede em relação aos articulados e não à decisão proferida.
Balizados no conhecimento do mérito do recurso pelas circunstâncias existentes à data da decisão, as fotos juntas são irrelevantes e inatendíveis nos termos sobreditos, não alterando, em nada, o que se afirmou sobre a inexistência de esbulho (à data da decisão).

Quanto à violência exigida para caracterizar o esbulho, a sua definição enquanto conceito tem suscitado ao longo dos tempos, repetidas dificuldades e constantes controvérsias, nomeadamente a questão de saber se essa violência, também abrange os actos sobre coisas(1), como sucede neste caso.
Como se diz no Ac. desta Relação de 16-10-2006 no processo 0655160, in dgsi.pt “À criação e permanência desta figura, de rápida intervenção, no elenco dos meios de defesa duma situação possessória, preside uma ideia de desencorajamento de acções violentas, pela forte ameaça que elas representam ao valor da liberdade de determinação do homem.
Sendo este procedimento um meio de defesa da posse deve atender-se ao conceito de violência consagrado na lei, para efeitos de caracterização da aquisição da posse, actualmente constante do artº 1261º, nº 2, do C.C.:
“Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do artº 255º”.
Quer a coacção física, quer a coacção moral (artº 255º, nº 1, do C.C.), exigem uma acção física ou psicológica sobre o declarante que, ao constrangê-lo, lhe retira a capacidade para se determinar livremente.
No caso de esbulho, para que o mesmo seja considerado violento, deve ser levado a cabo através duma acção que, constrangendo o esbulhado, o coloque numa situação de incapacidade de reagir perante o acto de desapossamento, permitindo-o. Assim, se essa acção recair sobre coisas e não directamente sobre pessoas, a mesma só poderá ser considerada violenta se, indirectamente, coagir o possuidor a permitir o desapossamento, pois só assim estará em causa a liberdade de determinação humana.”
A colocação de materiais no leito de uma servidão ainda que com a finalidade de impedir o possuidor de continuar a utilizar esse imóvel, só por si, não integra o referido conceito de violência, uma vez que o desapossamento, temporário, foi efectuado através duma acção que não incidiu sobre o possuidor, não se tendo verificado qualquer ofensa física ou psicológica à sua capacidade de auto-determinação, que justifique a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
Mas esta conclusão restritiva não deixa desarmada a pessoa desapossada, podendo esta recorrer ao procedimento cautelar comum, nos termos previstos para o artº 395º, do C.P.C., desde que a manutenção dessa situação ilícita lhe cause prejuízos graves e de difícil reparação, para obter uma intervenção urgente do poder judicial.
A utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, pela diminuição de garantias de defesa do requerido e pela desnecessidade de existência de qualquer prejuízo do requerente, só deve ser permitida em casos em que a violência atingiu pessoas, e não quando apenas se exerceu sobre coisas, pois só aquelas situações revestem uma gravidade que justifica a utilização daquele meio de intervenção draconiano. Nas outras situações em que só coisas foram violentadas, sem qualquer constrangimento de pessoas, revela-se suficiente a possibilidade de utilizar o procedimento cautelar comum, para se obter a restituição provisória do bem ocupado.
A definição do âmbito da restituição provisória da posse e a possibilidade expressa de recurso às providências cautelares comuns (art. 395 CPC) esclarece por um lado a exigência que se colocou no conteúdo dos pressupostos daquele primeiro procedimento e, também, que se tenha estabelecido tutela cautelar para os casos em que a dinâmica da realidade faça supor um receio fundado de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do direito mas ainda não realizado.
A verificação que havia que realizar na providência solicitada pelos recorrentes era precisamente a de apreciar se existiam, em efectivo, os pressupostos da restituição provisória da posse e não se, havendo ainda só uma turbação esta fazia prever uma evolução para esbulho, pois esta definição prognóstica da realidade não cabe no âmbito de tal providência mas sim no de outra que os recorrentes não intentaram.
Em resumo, cremos que devem improceder as conclusões de recurso.
… …
Decisão
Pelo exposto acorda-se em negar provimento ao Agravo e, em consequência manter a decisão recorrida.
Custas pelos Agravantes.

Porto, 21 de Dezembro de 2006
Manuel José Pires Capelo
Ana Paula Fonseca Lobo
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
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(1) Defendendo que o procedimento cautelar de restituição provisória de posse também é aplicável quando a violência apenas recaiu sobre coisas pode ler-se BARBOSA DE MAGALHÃES, em “Manual das acções possessórias”, pág. 144-146, da ed. de 1895, de França Amado Editores, AZEVEDO SOUTO, em “Código de processo civil actualizado e comentado”, vol. III, pág. 1314-1315, da ed. de 1931, MANUEL RODRIGUES, em “A posse”, pág. 365-367, da 3ª ed., da Almedina, ALBERTO DOS REIS, em “Código de processo civil anotado”, vol. I, pág. 670, da 3ª ed., da Coimbra Editora, BAPTISTA LOPES, em “Dos procedimentos cautelares, pág. 80, da ed. de 1965, SANTOS SILVEIRA, em “Processos de natureza preventiva e conservatória”, pág. 58, da ed. de 1966, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, em “Código civil anotado”, vol. III, pág. 52, da 2ª ed., da Coimbra Editora, RODRIGUES BASTOS, em “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. II, pág. 178, da ed. de 2000, TEIXEIRA DE SOUSA, em “Estudos sobre o novo processo civil”, pág. 238, da 2ª ed., da Lex, MOITINHO DE ALMEIDA, em “Restituição de posse e ocupação de imóveis”, pág. 110-115, da 2ª ed., da Coimbra Editora, ABRANTES GERALDES, em “Temas da reforma do processo civil”, vol. IV, pág. 43-45, da ed. de 2001, e DURVAL FERREIRA, em “Posse e usucapião”, pág. 375-380, da ed. de 2002, da Almedina.

Numa perspectiva mais restritiva, exigindo que a violência, mesmo quando exercida sobre coisas, tenha um efeito de constrangimento sobre pessoas, vide DIAS FERREIRA, em “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, pág. 47, DIAS MARQUES, em “Prescrição aquisitiva”, 1º vol., pág. 277, da ed. de 1960, LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, em “Código de Processo Civil anotado”, vol. 2º, pág. 72-75, da ed. de 2001, da Coimbra Editora, e ORLANDO DE CARVALHO, em”Introdução à posse”, na R.L.J., Ano 122, pág. 293.