Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0737318
Nº Convencional: JTRP00041069
Relator: TELES DE MENEZES
Descritores: PROPRIEDADE INDUSTRIAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RP200802070737318
Data do Acordão: 02/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 748 - FLS 85.
Área Temática: .
Sumário: Tendo a acção por objecto a violação de um direito privativo da propriedade industrial – v. g., o direito à marca – a competência para a sua apreciação e julgamento radica no tribunal de comércio, o que é extensivo à providência que daquela é dependência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B………. intentou no Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia o presente procedimento cautelar comum contra C………., Lda pedindo a condenação desta na suspensão do uso da expressão Steridrape ou outra semelhante na sua denominação social e no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia em que use tal expressão após trânsito da decisão a proferir, alegando que requereu e obteve o registo da marca "Steri-drape" a seu favor em vários países e que a requereu já em Portugal onde é uma marca notoriamente conhecida desde 1990 e que a Requerida obteve a seu favor o registo da sua denominação social com uso de idêntica palavra, sendo certo que tem por objecto actividade em tudo semelhante à da Autora, o que acarreta confusão perante fornecedores e clientes habituais ou potenciais e, na decorrência, prejuízos para a Autora.

Citada a Requerida nos termos e para os efeitos do previsto no art. 385°, n.° 1 do Código de Processo Civil, veio deduzir a oposição, excepcionando a incompetência absoluta do Tribunal do Comércio, por entender que o objecto e o pedido formulados, por respeitarem à alegada ilegalidade da sua denominação social são da competência dos tribunais comuns.

A excepção foi julgada improcedente.

A requerida interpôs recurso desse despacho, tendo oferecido a correspondente alegação.

Teve lugar o julgamento e veio a ser proferida decisão que julgou procedente a providência e:
1 - ordenou a suspensão do uso, pela Ré da expressão Steridrape na sua denominação social ou integrada noutro sinal distintivo no exercício do seu comércio;
2 - fixou - nos termos do previsto nos artigos 384.º/2 do Código de Processo Civil e 829.º-A do Código Civil, e por se entender tal montante razoável face aos interesses em confronto -, uma sanção pecuniária compulsória de 500 € por dia, a dividir em partes iguais pelo Estado e pela Autora, por cada dia de incumprimento da antecedente decisão, após o seu trânsito em julgado.

II.
Recorreu a requerida, oferecendo a sua alegação.

III.
A.
Conclusões do primeiro agravo:
…………………….........
…………………….........
…………………….........

O Sr. Juiz sustentou o seu despacho.

B.
Conclusões do segundo agravo:
……………………..........
……………………..........
……………………..........

O Sr. Juiz sustentou a sua decisão.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

IV.
Na decisão impugnada foi considerada indiciada a seguinte matéria de facto:
1 - A Ré é uma sociedade comercial por quotas constituída em 15-07-2004, com a denominação social de C………., Lda, e tem por objecto a importação, exportação, representação, comercialização e agente de comércio por grosso de equipamentos e dispositivos médicos e cirúrgicos
2 - Em 12-20-2004 a Ré requereu ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial o registo da marca nacional …072 "STERIDRAPE" para assinalar os produtos "vestuário especial para salas de operação; vestuário descartável para pessoal médico e hospitalar, em particular luvas, máscaras, batas, toucas e botas; lençóis esterilizados (cirurgia); artigos para uso médico descartáveis designadamente películas, coberturas e capas (a utilizar sobre ou sob o paciente), em plástico, tecido-não-tecido e/ou papel (classe 10), Roupa de capa, incluindo capas e coberturas e roupa de mesa, designadamente em tecido-não-tecido para uso descartável (classe 24) e vestuário, calçado, e chapelaria, designadamente em tecido-não-tecido para uso descartável (classe 25), que foi publicado no Boletim da Propriedade Industrial, n.º 12 -2004 de 31-12-2004.
3 - Em 07-03-2005, a Autora requereu ao INPI o registo da marca nacional n.º …700, "STERI-DRAPE", para assinalar vestuário especial para cirurgia e artigos para uso médico (classe 10), que foi publicado no boletim da Propriedade Industrial n.º 5-2005, de 31-05-2005.
4 - Em 28-03-2005, a Autora deduziu reclamação contra o pedido de registo de marca n° …073 STERlDRAPE invocando a imitação da sua marca n° …700 STERl-DRAPE.
5 - A Autora B………. foi fundada em 1902 sendo conhecida em todo o mundo.
6 - Uma das áreas de actuação da Autora é a dos produtos médicos e hospitalares.
7 - No âmbito da qual, em data não concretamente apurada, introduziu no mercado campos cirúrgicos estéreis descartáveis com a marca
STERl-DRAPE.
8 - Tal marca é usada e está registada em vários países para assinalar produtos médico hospitalares.
9 - Tais produtos são fabricados pela Autora nos Estados Unidos e comercializados em Portugal pela B1………., Lda.
10 - Tal marca é usada em Portugal desde há pelo menos 15 anos para assinalar:
a) campos cirúrgicos de incisão;
b) produtos de traumatologia e ortopedia;
c) campos complementares e acessórios de plástico;
d) coberturas cirúrgicas, campos para laparoscopia, para atroscopia do joelho e do ombro para angiografia femoral, para obstetrícia e ginecologia para urologia e para oftalmologia
e) máscaras cirúrgicas;
f) Campos;
g) e produtos especiais de tecido não tecido
11. Desde há mais de 15 anos que os produtos fabricados pela Autora são fornecidos a instituições hospitalares portuguesas como o D………. no Porto, o E………., no Porto, o F………., em Braga, o G………., em Lisboa, o H………., em Cascais e ao I………. em Lisboa.
12. A marca STERI-DRAPE da autora é conhecida em Portugal no meio hospitalar e entre profissionais de cirurgia por assinalar produtos médico-hopistalares e cirúrgicos.
13. O uso de tal expressão na denominação da Ré permite que esta beneficie do seu crédito e reputação da marca da Autora.
14. A expressão Steridrape resulta da conjugação abreviada de duas palavras da língua inglesa "steril" e "drape".

E foram considerados não indiciados de entre os alegados pelas partes com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:
1. A denominação social da Ré inclui a expressão STERIDRAPE por forma a poder confundir-se com a marca STERI-DRAPE da Autora.
2. A alteração da denominação social da Ré importaria a perda de investimentos cujo valor é superior ao do benefício que a Autora retiraria de tal alteração.

V.
A questão colocada no primeiro agravo é a de qual é o tribunal materialmente competente para conhecer deste procedimento cautelar: se o do comércio, se o comum.

É aceite pela jurisprudência e doutrina que a competência do tribunal se afere em conformidade com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o autor - Miguel Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lex 1994, p.31 e ss..
Neste caso, a requerente pediu a condenação da requerida na suspensão do uso da expressão Steridrape ou outra semelhante na sua denominação social e no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia em que use tal expressão após trânsito da decisão a proferir, alegando que requereu e obteve o registo da marca "Steri-drape" a seu favor em vários países e que a requereu já em Portugal, onde é uma marca notoriamente conhecida desde 1990, e que a requerida obteve a seu favor o registo da sua denominação social com uso de idêntica palavra, sendo certo que tem por objecto actividade em tudo semelhante à da requerente.
O que está em causa é a utilização de uma marca contra a protecção conferida pelo Código da Propriedade Industrial aos detentores de marcas notoriamente conhecidas, mesmo que não registadas (usando as palavras da requerente adiantadas no art. 31.º do requerimento inicial).
A Lei n° 3/99, de 3 de Janeiro - Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), rectificada pela Declaração n.° 7/99, da Assembleia da República, de 4/2/99 - estabelece o critério de distinção dos tribunais em razão da matéria, em tribunais de competência genérica e tribunais de competência especializada. Estes tribunais vêem a sua competência estabelecida de forma positiva, através da indicação tipificada das questões que lhes são cometidas. A competência daqueles é fixada por exclusão ou negativamente, competindo-lhes julgar os processos relativos às causas não atribuídas a outros tribunais - art.s 77° e 78° da citada Lei.
Aos tribunais de comércio, como tribunais de competência especializada, são atribuídas as matérias enumeradas no art. 89° dessa Lei, estabelecendo-se no seu n.º 1, al. f), que lhes compete preparar e julgar:
“As acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial”.
Há, pois, que apurar se está em causa alguma das modalidades de propriedade industrial previstas no respectivo Código.
O acórdão desta Relação de 2.10.2006, n.º do documento RP200610020651306, nº convencional: JTRP00039526, (Marques Pereira), in www.dgsj.pt, disserta sobre a violação de um direito privativo, em acções desta natureza (reportamo-nos à acção principal, sendo certo que, se o Tribunal do Comércio for competente para ela o deve ser igualmente para a providência que dela é dependência).
E não tem dúvidas em afirmar que a lesão dum direito privativo está sujeita à competência do tribunal de comércio.
Reproduzindo Carlos Olavo, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 61, Janeiro 2001, p. 193 e ss., a propósito do art. 89.º/1- f) da LOFTJ:
“A lei tem em vista, ainda que com terminologia pouco rigorosa, todas as espécies de acções declarativas, em contraposição ás acções executivas.
Abrange assim as acções de simples apreciação, as de condenação e as constitutivas.
Destas acções, as mais frequentes são as por infracção contra a propriedade industrial.
No que toca às acções por infracção contra a propriedade industrial, podem-se pretender actuar, por via delas, cumulativamente ou não, três pretensões:
- a pretensão à abstenção da conduta lesiva;
- a pretensão à cessação da conduta lesiva e eliminação dos resultados da ilicitude praticada;
- a pretensão à indemnização pelos danos sofridos.
Desta sorte, se a acção tiver por objecto qualquer das mencionadas pretensões (à abstenção de uma conduta lesiva, à cessação de uma conduta lesiva, à eliminação dos resultados da ilicitude praticada, e à reparação dos danos sofridos), deve ser proposta em tribunal de comércio, desde que se reporte a qualquer das modalidades de propriedade industrial previstas no respectivo Código”.
“A competência dos tribunais de comércio abrange ainda as acções que tenham causa de pedir complexa, desde que um dos elementos dessa causa de pedir verse sobre propriedade industrial. É o caso por exemplo, de questão emergente de contrato de licença de marca”.
Carlos Olavo, ROA, Ano 65, Junho 2005, p. 109, entende que o legislador quis unificar, em termos jurisdicionais, o contencioso da propriedade industrial, integrando nele quer a disciplina dos direitos privativos, quer a concorrência desleal.
“Embora a repressão da concorrência desleal e a protecção das várias categorias de direitos privativos constituam figuras autónomas, trata-se de autonomia mitigada.
Em termos substanciais, a própria lei portuguesa impõe uma visão unitária dessas duas figuras.
Essa visão unitária, ou pensamento fundamental unificador, justifica-se plenamente tendo em atenção a função comum à disciplina dos direitos privativos e à repressão da concorrência desleal”.
Lebre de Freitas, ROA, Ano 65, Dezembro de 2005, p. 763, interpretando o art. 89/1- f) da LOFTJ, defende que “o termo modalidade, referido à propriedade industrial, aponta no sentido de se reportar aos diferentes direitos que dela são privativos, modos distintos de ser do direito de propriedade industrial: a marca, a insígnia, o logótipo, etc. constituem bens incorpóreos distintos e sobre eles se constituem diferentes direitos (quanto ao objecto e também quanto ao modo de aquisição e ao registo), todos eles de propriedade industrial. A propriedade industrial terá, portanto, nesta acepção literal, tantas modalidades quantos os tipos de direito privativo de que trata o Código da Propriedade Industrial.
Na sua versão de 1995, o Código não conhecia o termo “modalidades”, sendo, no seu art. 6-1, os vários tipos de direitos privativos designados por “categorias”. Mas o termo modalidade da propriedade industrial, tal como a LOFTJ o emprega, comporta o mesmo sentido do termo categoria de direito privativo” (confirmando esta interpretação literal, quer um elemento histórico, quer um elemento sistemático).
Acrescentando que “O novo CPI é, pois, expresso ao qualificar como modalidades da propriedade industrial os vários tipos de direito privativo, e não estes em geral (como uma modalidade) e a concorrência desleal (como outra modalidade). Coexistindo com o art. 89-1-f) da LOFTJ, que mantém a sua redacção, este novo preceito constitui interpretação autêntica do termo modalidade neste utilizado”.
Tendo a acção por objecto a violação de um direito privativo - o direito à marca -, a competência para a sua apreciação e julgamento compete ao tribunal de comércio, em face do disposto no art. 89, n.º 1 al. f) da LOFTJ.
Do acórdão desta Relação de 17-11-2005, nº do documento: RP200511170534963, (Ataíde das Neves), www.dgsi.pt, resulta a competência do tribunal do comércio (a contrario), ao dizer-se que “a regulamentação do funcionamento do mercado concretiza-se, de um lado, na atribuição de um conjunto de direitos (os direitos privativos de propriedade industrial), que se traduzem na possibilidade de utilização exclusiva de bens imateriais – a marca, o modelo, o nome, a insígnia, etc., - que o Código de Propriedade Industrial reconhece e tutela, e de outro, na fixação de uma série de deveres destinados a assegurar a lealdade da concorrência, que, quando violados, dão lugar à denominada concorrência desleal.
A propriedade industrial corresponde á necessidade de ordenar a liberdade da concorrência, feita essencialmente de duas formas: por um lado, pela atribuição da faculdade de utilizar, de forma exclusiva ou não, certas realidades imateriais, e, por outro, pela imposição de determinados deveres no sentido de os vários agentes económicos que operam no mercado procederem honestamente. A primeira das duas indicadas ideias abrange os chamados direitos privativos da propriedade industrial. Na segunda, integra-se a repressão da concorrência desleal [Carlos Olavo, in A Propriedade Industrial, Almedina, 1997, pag. 143, citado no Ac. STJ de 10.02.2005 supra referenciado, e bem assim no Ac. RL de 5.12.02, in CJ, ano XXVII, t. 5, pag. 87].
São realidades distintas, a defesa dos vários sinais distintivos do comércio, que constitui uma protecção específica mas limitada às violações da exclusividade do uso daqueles sinais, conferida ao respectivo titular, e a proibição da concorrência desleal, dotada de maior amplitude, desempenhando uma função de protecção complementar daquela [J. Patrício Paul, Concorrência Desleal, Pag. 79], cujas normas têm como escopo a tutela da empresa do industrial ou do comerciante [Ferrer Correia, in Estudos Jurídicos II – Direito Civil e Comercial, Direito Criminal. Coimbra, 1969, Pag. 245], ou se preferirmos, da actividade empresarial, que se traduz no exercício da empresa [Oliveira Ascensão, ob. cit. Pag. 89].
(…)
Numa expressão de Oliveira Ascensão, simples mas integradora de tudo aquilo que vem de ser dito, “a concorrência desleal não é, ela própria, propriedade industrial, é antes a sanção de formas anómalas de concorrência”, como tal escapando à previsão da al. f) do nº 1 do art. 89º da LOFTL.”
Conclui que a competência do tribunal do comércio não abrange a concorrência desleal, pelo que se subentende que abrange as questões respeitantes aos direitos privativos, enquanto propriedade industrial.
No acórdão desta Relação de 24-10-2002, nº do documento: RP200210240231242 (Coelho da Rocha), www.dgsi.pt, decidiu-se que compete aos tribunais do comércio, nos termos do art. 89º da LOFTJ, preparar e julgar:
1...
f).-as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no CPI;
....
h).-as acções de nulidade ou de anulação previstas no CPI (cfr. rectificação feita nº 7/99, de 4.2, in DR I série-A, de 16.2).
E ainda julgar:
2. a).-os recursos de decisões que, nos termos previstos no CPI, concedam, recusem ou tenham por efeito a extinção de qualquer dos direitos privativos nele previstos.
Tendo o legislador querido, de uma forma definitiva e completa, nesta matéria relativa à propriedade industrial, definir e atribuir competência aos recém criados tribunais especializados de comércio.
Estando, pois, em causa, direitos privativos da propriedade industrial, é competente materialmente o Tribunal do Comércio de Gaia.
Face ao exposto, negar-se-á provimento ao primeiro agravo.

VI.
A questão colocada no segundo agravo, embora não expressamente dita pela recorrente, é a do erro na decisão da matéria de facto.
Com efeito, é isso que, resumidamente, se extrai da conclusão 12.ª:
“Assim sendo – (…) - deve a sentença proferida em primeira instância ser totalmente revogada, por forma a que o pedido formulado no petitório seja julgado totalmente improcedente, por falta de prova de requisito essencial (título do registo da marca "STERI-DRAPE") - sufragando, assim, o deferimento que o Instituto Nacional da Propriedade já concedeu à ora recorrente relativamente ao seu pedido de marca nacional …072 STERIDRAPE.”
Por conseguinte, a recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto no que diz respeito ao registo no estrangeiro da marca “Steri-Drape”.
Esta questão deve ser analisada sob vários ângulos.
O primeiro consiste em definir se a impugnação de matéria de facto foi feita de acordo com as imposições legais.
Dispõe o art. 712.º/1-a) do CPC que “A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida.”
Como refere Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, p. 484, “A expressão “ponto da matéria de facto” procura acentuar o carácter atomístico, sectorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir, estando em harmonia com a terminologia usada pela alínea a) do n.º 1 do art. 690.º-A: na verdade, o alegado “erro de julgamento” normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo “facto”, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente.”
O art. 690.º-A estabelece que “Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.”
Segundo o mesmo autor, o. c., p.465, este artigo, aditado pelo DL 39/95, veio estabelecer um particular ónus de alegação e fundamentação a cargo do recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, em conformidade com o preâmbulo daquele diploma, onde se refere que “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.”
E afirma que o ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto se traduz:
“a) na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito de recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento – o “ponto” ou “pontos” da matéria de facto – da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento;
b) no ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões por que discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios (constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizada) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnada pelo recorrente.”
O primeiro reparo a fazer à recorrente é que nem sequer impugna convenientemente a matéria de facto.
Com efeito, na sua alegação, a fls. 531 v.º, afirma, tão somente, “que a sentença recorrida deve ser revogada quanto aos factos números 7, 8, 10, 12 (factos dados como indiciados) e facto número 1 (facto dado como não indiciado), o que aqui expressamente se requer.”
Não diz, pois, em que termos é que esses factos deviam ser consagrados no despacho que os deu como indiciados ou não indiciados.
Por outro lado, ao referir-se aos meios probatórios documentais que reputa insuficientes para que se dê como provado que a requerente tem o registo da marca em diversos países, não os concretiza, limitando-se a dizer, genericamente, a fls. 531 e v.º, que “Os documentos referidos na motivação da douta sentença recorrida nada têm a ver com essa prova documental (absolutamente essencial), porquanto esses documentos são uma série de “prints”, retirados da Internet, brochuras e demais panfletos publicitários que a ora recorrida usa na sua actividade comercial e ainda documentos de candidatura a seis unidades hospitalares portuguesas para o fornecimento de produtos que comercializa.”
Por conseguinte, nada de escalpelizar os documentos juntos aos autos, retirando deles, mesmo que a contrario, o suporte da sua tese.
Desta forma, entendemos que a recorrente não cumpriu o ónus de impugnação, tal como é exigido por lei e atrás referimos, o que implica a rejeição do recurso.
Mas mesmo que assim não devesse entender-se, dos factos mencionados pela recorrente: 7, 8, 10 e 12, apenas o 8 menciona o registo da marca.
“7 - No âmbito da qual, em data não concretamente apurada, introduziu no mercado campos cirúrgicos estéreis descartáveis com a marca
STERl-DRAPE.
8 - Tal marca é usada e está registada em vários países para assinalar produtos médico hospitalares.
10 - Tal marca é usada em Portugal desde há pelo menos 15 anos para assinalar:
a) campos cirúrgicos de incisão;
b) produtos de traumatologia e ortopedia;
c) campos complementares e acessórios de plástico;
d) coberturas cirúrgicas, campos para laparoscopia, para atroscopia do joelho e do ombro para angiografia femoral, para obstetrícia e ginecologia para urologia e para oftalmologia
e) máscaras cirúrgicas;
f) Campos;
g) e produtos especiais de tecido não tecido.
12. A marca STERI-DRAPE da autora é conhecida em Portugal no meio hospitalar e entre profissionais de cirurgia por assinalar produtos médico-hopistalares e cirúrgicos.”
Relativamente aos demais factos, parece que ninguém põe em causa e isso resulta abundantemente dos documentos juntos aos autos com o requerimento inicial, que a requerente usa essa denominação nos seus produtos, com ela os comercializando em Portugal.
E a utilização da expressão “marca”, em sentido factual, não é mais do que designação, denominação. Para o que se não torna necessária a observância de qualquer formalismo probatório.
Assim, o problema só pode colocar-se relativamente ao facto 8, no segmento que refere que essa marca está registada em vários países.
Para dar essa parte do facto como provada entende a recorrente que havia de ter sido junta aos autos uma certidão de, pelo menos, um dos registos efectuados pela requerente.
Ora, se bem atentarmos na frase que antecede a enunciação dos factos relatados na decisão em crise, é ela do seguinte teor: “Instruída a causa cumpre decidir tendo por base a seguinte matéria de facto indiciada”.
Por conseguinte, não se disse que os factos em questão estão provados, mas apenas indiciados, isto é, aparentam ser assim.
Aliás, em conformidade com as especificidades de uma composição provisória da situação controvertida que é apanágio das providências cautelares – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 226 e ss.
Com efeito, as providências cautelares têm como características a provisoriedade, a instrumentalidade, a summaria cognitio, significando esta que elas implicam uma apreciação sumária da situação através de um procedimento simplificado e rápido, o qual se não compadece com exigências probatórias aturadas, adequadas à acção de que são dependência.
Por outro lado, um dos pressupostos do decretamento da providência cautelar é o fumus boni iuris, que mais não é do que uma consequência da summaria cognitio, consistindo no grau de prova tido por suficiente para a demonstração da situação jurídica que se pretende acautelar ou tutelar provisoriamente. E isto porque uma prova stricto sensu (a convicção do tribunal sobre a realidade dessa situação) não seria compatível com a celeridade própria das providências cautelares e repetiria a actividade e a apreciação que, por melhor se coadunarem com a composição definitiva da acção principal, devem estar reservadas para esta – cfr. autor e obra citados, p. 233.
Daí que as providências cautelares exijam apenas a prova sumária do direito ameaçado, isto é, a demonstração da probabilidade séria da existência do direito alegado (art.s 384.º/1, 387.º/1. 403.º/2, 407.º/1 e 423.º/1). As providências só requerem, quanto ao grau de prova, uma mera justificação, pelo que para o seu decretamento apenas se exige a prova de que a situação jurídica alegada é provável ou verosímil, sendo suficiente a aparência do direito, ou seja, um fumus boni iuris – ibid.
Sendo assim, a exigir-se que a requerente juntasse certidão do registo em países estrangeiros, estar-se-ia a fazer tábua rasa do fumus boni iuris, da prova da mera aparência do direito, a qual se pode fazer por qualquer forma verosímil, nomeadamente através de documentos indiciadores do uso da marca e de depoimentos testemunhais.

Face ao exposto, também este agravo não merece provimento.

Decidindo:
Nega-se provimento a ambos os agravos e confirmam-se as decisões impugnadas que estiveram na sua origem.

Custas pela agravante.

Porto, 7 de Fevereiro de 2008
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira