Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5584/11.5TAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA DE MEIOS DE TRANSPORTE POR ÁGUA
PERIGO CONCRETO
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RP201404095584/11.5TABNG.P1
Data do Acordão: 04/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Da seguinte matéria de facto não resulta provado que o arguido tenha agido de forma negligente – por ter violado um qualquer dever objetivo de cuidado, ter criado um risco não permitido ou ter aumentado o risco já existente: "Após o arguido ter dado início a um cruzeiro entre as pontes do Rio Douro a partir da passagem pela Ponte de D. Luís I, a embarcação começou a aproximar-se mais da margem do rio Douro, do Lado de Vila Nova de Gaia. Assim, ao passar junto aos Cais da Senhora de Além, Vila Nova de Gaia, o arguido perdeu o controlo da embarcação que veio a colidir e a encalhar nas pedras da margem do rio, do qual resultaram rombos no casco”, tendo sido considerado o rio navegável de margem a margem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 5584/11.5TAVNG.P1
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de processo comum singular, antes identificados, do 3º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia, acusado pelo MP, foi submetido a julgamento o arguido B…, casado, reformado, nascido no dia 24 de Setembro de 1943, filho de C… e de D…, natural de …, Porto, e residente na Rua …, n.º …, Matosinhos, pela prática de factos subsumíveis ao tipo legal de condução perigosa de meio de transporte por água, p. e p. pelo art.º 289, n.º 3, do C.P.

Efectuado o julgamento, veio a ser proferida sentença que, na procedência da acusação, condenou o arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de meio de transporte por água por negligência, p. e p. pelo art. 289º, n.º 1 e 3, do C.P. na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00, no total de € 500,00.

Não conformado, o arguido interpôs recurso e, da respectiva motivação, extraiu as seguintes conclusões:
1. O arguido navegou em zona do rio que era normal, habitual navegar; como aliás muitas outras embarcações faziam desde sempre e mesmo na altura dos factos.
2. O arguido não previu, nem poderia (ninguém) de forma alguma prever que o resultado da sua tentativa para evitar um acidente fosse levar a um outro acidente, produzindo o resultado que se verificou.
3. O arguido tomou o dever que lhe era imposto, usando a diligência que lhe era exigida segundo as circunstâncias concretas com vista a evitar o evento - choque com o tronco - dever esse decorrente quer de normas legais, quer do uso e experiência comum.
4. A disposição legal sobre a qual o arguido vinha acusado e foi condenado, implica violação grosseira; não tendo ficado provado quer a negligência, seja o valor grosseiro da mesma.
5. Para tal a produção do resultado teria que ser previsível e não era, de facto.
6. O arguido, como demonstrou a prova testemunhal, era pessoa de confiança, adoptou postura e conduta que colegas de profissão sempre adotaram, desviando-se de perigos potenciais e inesperados.
7. O arguido navegava mais à direita do centro do rio, era normal (e referido pelo mestre E…).
8. Permitindo assim a passagem de um iate que seguia a bombordo (à sua esquerda).
9. Navegando assim a velocidade normal e admissível.
10. Sem nunca largar o leme (como refere a testemunha).
11. Não pôde o arguido, ao desviar-se do tronco, rumar à sua esquerda sob pena de embater no iate e com tal embate violar assim (para além das normas de navegação), princípios de cuidado geral.
12. Após ter avistado o tronco, comentou tal avistamento em simultâneo com a tentativa de evitar o embate no mesmo, procurando com tal, impedir danos para passageiros, tripulantes e embarcação.
13. Errou o tribunal ao determinar que a navegação se deve fazer pelo meio do rio, sem mais concluir.
14. Será de navegar pelo meio do rio, dando porém (como as testemunhas o disseram e o próprio arguido) passagem às demais embarcações, tendo sempre o cuidado de manter a distância com as mesmas.
15. No local e aquando do acidente, existiam cerca de 2, 3 embarcações em sentido oposto e 2 embarcações no mesmo sentido, um delas mais à frente, indo a outra (um iate) praticamente ao lado do arguido, impedindo que este se desviasse do tronco, virando à esquerda.
16. Por força do iate, teve que desviar-se para a direita; o que conjugando com a força da água (como referido por testemunhas), levou a que o barco fosse encalhar na margem direita.
17. O tribunal considerou que era imposto ao arguido uma circulação o mais próximo da linha do meio do rio; não se tendo porém (como devia) demonstrado que o arguido poderia estar mais próximo do que estava aquando do acidente;
18. Isto é, não ficou demonstrado que o arguido poderia ter navegado mais próximo do meio do rio, do que estaria a navegar;
19. Ao contrário, provou-se que devido ao iate que navegava na mesma direção e junto ao arguido e tendências de navegação (por cuidados vários, conforme depoimento do mestre E…) de todas as embarcações; bem fez o arguido em navegar por onde navegou.
20. Não existe qualquer prova de que o arguido tenha praticado o crime de que vinha acusado e acabou por ser condenado.
21. No máximo e em bom rigor apenas se poderiam levantar dúvidas se teria, de facto, lançado mão de todos os meios, formas para evitar o sucedido; o que em prol do princípio “in dúbio pró réu”, sempre deveria ter levado a uma sentença de absolvição.
22. Ficou, portanto provado que o arguido navegou como, por onde e de forma que todos fazem na zona e o mesmo sempre fez, no cumprimento das normas, costumes e usos em causa.
23. Não se provou, ao contrário do que diz o tribunal a quo, que o arguido podia ou mesmo deveria ter navegado a embarcação de outro modo e que se assim o tivesse feito o rombo no caso não teria ocorrido;
24. Pois existe prova testemunhal bastante que demonstra o contrário, até mesmo que caso o barco embatesse no tronco, aquele sofreria um rombo, afundando-se!
25. O tribunal entendeu que não ficou provada que o arguido tenha sido forçado a qualquer manobra de urgência, devido a existência de tronco,
26. Mas não poderia, de forma alguma, sem qualquer margem para dúvida (considerando até os relatos várias da existência de troncos e outros objetos estranhos que flutuam à deriva no rio) concluir que não existia qualquer tronco, que legitimou a manobra.
27. Não ter sido dada qualquer notícia no dia dos factos, à capitania, da existência do tronco, nada prova; pois a comunicação da Capitania apenas refere que no dia em causa não foi feita qualquer participação; o que não deixa de parte a possibilidade de ter havido uma participação no dia anterior ou qualquer dos sequentes ao acidente!
28. Como consequência legal, desde logo, deverá o arguido SER ABSOLVIDO do crime de que foi acusado e condenado, pois não se encontram preenchidos os necessários pressupostos para tal.
29. Pois não foi violado qualquer dever de cuidado!
30. Não ficou demonstrado (como deveria ter ficado, para sustentar a condenação) qualquer omissão de um dever de cuidado, por parte do arguido, ou que o mesmo foi especialmente descuidado e incauta ou que tenha mesmo tido qualquer comportamento reprovável.
31. Pelo contrário, o arguido fez o que devia ter feito, agiu (em fração de segundos) apenas procurando salvaguardar as pessoas e embarcação, evitando males maiores.
32. O arguido, no limite agiu em estado de necessidade - preenchidos que estão os requisitos (artigo 34.º do C.P) - procurando repelir um mal (bater no tronco e afundar a embarcação, com os passageiras), um perigo que ameaçava a sua integridade e a dos demais no barco.
33. Mantendo a condenação do arguido, tal decisão coincidirá com a declaração clara de que se pretendia que o arguido nada tivesse feito, apesar de ter avistado o perigoso tronco; levando a que embatesse no mesmo (como ficou provado) e consectariamente, destruindo, afundando o barco.
34. A prova carreada nos autos, demonstra que o arguido nada poderia ter feito para evitar o acidente, a menos que ficasse atracado no porto, sem iniciar a navegação; prova essa que implica a absolvição do mesmo, ao contrário do que decidiu o tribunal “a quo”.

Respondeu o MP em defesa da sentença recorrida.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA limitou-se a apor o seu visto.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade[1]:
1. No dia 04 de Junho de 2011, cerca das 18H30, o arguido, que é titular da cédula marítima da Capitania … com o número ….., com a categoria de arraias de pesca costeiro, tripulava a embarcação auxiliar denominada “F…”, registada na Capitania … sob o número .….., da qual é proprietária a a empresa “G…, Lda.” e, naquele dia, era o mestre daquela embarcação.
2. Após o arguido ter dado início a um cruzeiro entre as pontes do Rio … a partir da passagem pela Ponte de D. Luís I, a embarcação começou a aproximar-se mais da margem do rio …, do Lado de Vila Nova de Gaia. Assim, ao passar junto aos Cais da Senhora de Alé, Vila Nova de Gaia, o arguido perdeu o controlo da embarcação que veio a colidir e a encalhar nas pedras da margem do rio, do qual resultaram rombos no casco.
3. Naquela embarcação viajavam cerca de 40 pessoas, entre as quais H….
4. Do CRC do arguido nada consta.
5. O arguido está reformado, pelo que aufere uma pensão no valor de cerca de € 100,00.
6. A mulher, de igual forma, reformada, aufere uma pensão de € 150,00.
7. Integra o agregado familiar um filho maior, desempregado.
8. Paga de renda de casa a quantia mensal de € 150,00.

E considerou não se haver provado que:
a) Ao aproximar-se da margem do Rio …, do lado de Vila Nova de Gaia de Gaia, o arguido deixou o leme da embarcação F….
b) H… encontra-se sentada numa dos assentos da embarcação, destinado aos passageiros.
c) Como consequência direta do embate da embarcação a assistente foi sacudida para a frente e para trás, bateu contra as costas do seu assento, o qual não tinha qualquer proteção para a zona cervical, teve dores, sofreu lesões ao nível da coluna cervical e recebeu tratamento hospitalar.

A Senhora Juiz assim fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto:
“O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento que valorou livremente, fazendo apelo a regras da experiência comum e normalidade do acontecer.
Em concreto foram valoradas as declarações do arguido que confirmou a ocorrência do embate, bem como os danos materiais da embarcação. Negou danos pessoais em qualquer passageiro.
Foi com fundamento nas declarações do arguido, que não foram infirmadas por outros meios de prova, que foram dadas como provadas as suas condições de vida.
O arguido alegou ter perdido o controlo da embarcação na sequência de uma manobra feita para se desviar de um tronco que naufragava no rio. Esta factualidade, porém, não foi descrita por qualquer outra testemunha, quer pelos outros marítimos que seguiam na embarcação, as testemunhas I… e J…, quer pela testemunha E…, que tripulava a embarcação K…, que seguia a vante da F….
De igual modo não foi descrita qualquer manobra de mudança direção, seguindo a embarcação tranquilamente até embater na margem.
A testemunha L…, agente da Polícia Marítima, referiu que, pese embora seja frequente, no dia em causa, não teve notícia de troncos à deriva no rio …. A sua sugestão foi oficiada a Capitania que confirmou não ter havido notícia de tal ocorrência.
Nenhuma testemunha confirmou a ocorrência de danos pessoais em quaisquer passageiros.
Quanto à violação do dever de cuidado diremos que, pese embora no local, o rio seja navegável de margem a margem, como o esclareceram as testemunhas L… e E…, certo é que, é das mais elementares regras da prudência que, relativamente à margem, seja mantida uma distância de segurança, sendo que, como também explicaram tais testemunhas, a regra é a de circulação pelo meio do rio.
Assim, ao aproximar-se da margem do rio, numa altura em que a maré se encontrava a vazar, à distância a que o fez, o arguido violou tal dever de cuidado quer geral, quer no seu caso específico, especial, na medida em que o arguido fazia aquele percurso há longos anos, cerca de seis vezes por dia, pelo menos durante o período de verão. Tinha pois um conhecimento da geografia do Rio que lhe impunha, naquele local, guardar da margem uma distância maior, mormente encontrando-se a maré a vazar. A violação desse dever de cuidado revelou-se assim a causa direta e necessária do embate e das consequências do mesmo.
Foi valorado o teor do CRC do arguido”.
Nenhuma prova se produziu sobre a matéria de facto dada como não provada”.

As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso.
Delas se vê que o Recorrente submete à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:
- Deve ser alterada a matéria de facto, dando-se como provada a versão do acidente trazida aos autos pelo arguido, seja a de que este ocorreu porque teve necessidade de se desviar de um tronco existente no rio, o que, aliado ao facto de a corrente estar muito forte, levou a que o barco encalhasse. Agiu, pois, em estado de necessidade. Tal versão é também imposta pelo princípio do in dubio pro reo.
- O arguido não violou qualquer dever de cuidado e, por isso, deve ser absolvido.

DECIDINDO
É por demais evidente que o Tribunal não está obrigado a dar como provada a versão que o arguido traga aos autos.
E nem o princípio do in dubio pro reo tal impõe sob pena de estar encontrada a solução para as absolvições.
É aberrante afirmar-se que, perante duas ou mais versões dos factos, o Tribunal tem de considerar provada a versão mais favorável ao arguido.
O Tribunal considera provada a versão que, sendo lógica e verosímil, mais o convenceu.
Como determina o princípio da livre apreciação da prova.

Em todo o caso, o arguido não impugna a matéria de facto em forma legal e, por isso, jamais podia lograr vencimento a tese recursiva.
Na verdade, em vez de impugnar a matéria de facto provada e não provada, o arguido quer impor a sua versão dos factos.
Com efeito, não indica os pontos da matéria de facto que considera mal decididos. Como não indica os meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida.
Ora, porque o recurso não é um segundo julgamento, o legislador exige ao Recorrente que indique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, e bem assim as provas que impõem decisão diversa – art.º 412º, n.º 3, alíneas a) e b).
Não se fazendo tal indicação e/ou não se enumerando as ditas provas, o tribunal ad quem não pode conhecer do recurso quanto à matéria de facto precisamente porque não lhe são fornecidos os elementos indispensáveis ao conhecimento, o que, em consequência, importaria um novo julgamento quanto tal matéria, o que lhe está vedado fazer.
De resto, em boa verdade, e repetindo, o Recorrente não impugna a matéria de facto, mas antes a convicção da Sr.ª Juiz que, na sua tese, deveria deixar-se convencer pela versão que ele próprio entende ser a correcta, e não por aquela que, na realidade, a convenceu.
Pois bem.
A livre convicção do Juiz é insusceptível se ser sindicada.
Na verdade, o CPP consagrou, no art.º 127º, de forma expressa, o princípio da livre apreciação das provas, por virtude do qual a decisão quanto à matéria de facto assenta na livre convicção do julgador, que deve ser devidamente fundamentada para poder ser sindicada pelos sujeitos processuais e pelo tribunal ad quem.
A decisão quanto à matéria de facto tem de se conformar, naturalmente, com as regras da experiência, sem o que seria arbitrária.
No entanto, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
No caso em apreciação, a matéria de facto está devidamente fundamentada; é verosímil; e conforma-se com as regras da experiência comum.
Nenhum meio de prova impõe decisão diversa.
Não pode, pois, ser alterada a matéria de facto.

Consequentemente, não faz sentido fazer-se apelo ao estado de necessidade, que apenas é invocado na perspectiva da alteração da matéria de facto.

O recurso merece provimento, mas por fundamentos diferentes dos alegados pelo Recorrente.
Com efeito, foi este condenado pela prática de um crime p. e p. pelo art.º 289º, n.º 1 e 3, do C.P, que dispõe:
1. Quem conduzir veículo destinado a transporte por (…) água (…) não estando em condições para o fazer em segurança ou violando grosseiramente as regras da condução, e criar deste modo perigo para a vida ou integridade física de outrem ou para bens patrimoniais de valor elevado, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
3. Se a conduta referida no n.º 1, for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Para o que aos autos interessa, para que a conduta seja típica e por isso, punida, exige-se que o agente, tendo agido negligentemente, haja violado grosseiramente as regras da condução.

No dizer de Taipa de Carvalho[2], o tipo de ilícito negligente é formado pela acção violadora do dever objectivo de cuidado («desvalor de acção») e pela ocorrência do resultado típico («desvalor de resultado»)[3].
“O «desvalor da acção», no ilícito negligente, é constituído pela violação do dever objectivo de cuidado. Ou seja, a essência do ilícito negligente está na forma descuidada com que o agente pratica a acção, e não na acção abstractamente considerada”[4].
Em outro local[5] ensina que “A violação do dever objectivo de cuidado pode ocorrer porque o agente não observou o dever de cuidado externo (evitação ou ao menos restrição - através das necessárias medidas de cautela - deste risco em um patamar geralmente admitido; perigo esconjurado) ou o dever de cuidado interno (consideração do risco unido a uma conduta; perigo conhecido) que lhe era exigido. Trata-se da teoria da dupla violação do cuidado, a qual nos oferece um critério eficaz na apreensão das nuances evidenciadas pela panóplia de acções negligentes. A sua análise permite uma correcta e operacional definição dos contornos concretos daquele dever na construção de cada tipo legal imputado a título de negligência”.
Segundo Figueiredo Dias[6], “do que se trata é da violação de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respectivo, não da observância geral do cuidado com que toda a pessoa deve comportar-se no seu relacionamento interpessoal e comunitário”.
«O desvalor de resultado», por seu turno, reconduz-se à produção do resultado típico que, como refere Taipa de Carvalho[7] é o “resultado cuja evitação constitui a ratio do dever objectivo de cuidado, ou, por outras palavras, a ratio da norma de cuidado que o agente deve ter, quando pratica uma acção que possa conter perigo para os bens jurídico-penais”.
Afiança Jescheck[8] que a produção do resultado típico, “igual à dos crimes dolosos, pode consistir tanto numa lesão como na colocação em perigo concreto” do bem jurídico protegido, ou seja, há crimes negligentes que são apenas crimes de perigo.
O crime negligente não é um minus relativamente ao crime doloso (como o não é a negligência relativamente ao dolo, já que é um aliud deste); é antes, afirma Figueiredo Dias[9], “uma das formas básicas, tipicamente cunhadas, de aparecimento do crime, ao mesmo nível do facto doloso”.
Pode ser cometido em qualquer uma das modalidades previstas na lei: comissão ou omissão.
A negligência pode ser consciente [al. a) do art.º 15º do C. Penal], seja aquela em que o agente representa, como possível, a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com essa realização; ou inconsciente [alínea b) do mesmo preceito legal], caso em que o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
Em determinados tipos legais, como é o caso do dos autos, o legislador exige, para a consumação do crime, que o agente tenha agido com “negligência grosseira”, que não define, mas que mais não é do que uma negligência qualificada.
Segundo Roxin[10], com o aplauso de Figueiredo Dias, “o correcto é considerar a negligência grosseira como um elemento atinente ao ilícito e à culpa. A este respeito há que dar a maior importância ao ilícito típico; isso justifica o tratamento da negligência grosseira no tipo. (…) Por outras palavras: o predicado da negligência grosseira há-de atribuir-se primariamente a uma acção especialmente perigosa e não a uma atitude interna especialmente censurável. (…) Mas isso simplesmente confirma a ideia geral de que um ilícito maior comporta também, no caso do sujeito normalmente capacitado, uma maior culpabilidade”.
Acrescenta Figueiredo Dias[11]: “Mas daqui não pode concluir-se sem mais que também o tipo de culpa resulta, nestes casos, inevitavelmente aumentado, antes tem de alcançar-se a prova autónoma de que o agente, não omitindo a conduta, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando no facto qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e sensatez”.
Em causa a dupla valoração da culpa.

Para a afirmação do tipo negligente não basta o comportamento típico, a violação do dever objectivo de cuidado e a existência do resultado típico.
É preciso, como, de resto, em todos os crimes, que haja uma relação de causalidade entre o resultado e a conduta.
Durante muito tempo, a doutrina e a jurisprudência socorreram-se, para demonstrar a relação de causalidade, da chamada doutrina da adequação ou da causalidade adequada, da autoria do médico Von Kries.
Cavaleiro de Ferreira[12] “define como causa tão-somente aquela condição que, em conformidade com a experiência comum, seja adequada à produção do resultado”.
Afirma o STJ[13]: “A teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva (mais restrita) e uma formulação negativa (mais ampla). Por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada na nossa lei a formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto”.
Apesar dos contributos doutrinais e jurisprudenciais para a melhoria da teoria da causalidade adequada, o certo é que ela não dá resposta, só por si, no processo-crime, ao nexo de imputação do resultado ao comportamento do agente.
Na verdade, como ensina Jescheck[14], porque não é nada óbvio, “que a relação entre a acção e o resultado deva ser sempre de natureza causal, nem que a relação causal baste sempre para poder afirmar a responsabilidade jurídico-penal do autor pelo resultado, pois para o direito penal o essencial não é a relação de causa e efeito, mas unicamente a questão de saber se o resultado pode ser objectivamente imputado ao sujeito desde o prisma da justa punição, deve distinguir-se assim entre causalidade e imputação objectiva. Esta última coloca a questão de saber se o resultado há-de considerar-se como o «feito» de um homem determinado (…), sendo que no tipo o decisivo é o sentido da acção típica e a forma que adopta na sua relação com o resultado. Trata-se, aqui, pois, de uma questão a resolver segundo critérios normativos”.
Na moderna sociedade industrializada e globalizada, por meio de condutas lícitas, de que é paradigmática a condução de veículos, estamos sempre a criar perigos ou riscos de ofensa de bens jurídicos.
É assim que, refere Figueiredo Dias[15], caímos “nas doutrinas actuais da conexão do risco: o resultado só deve ser imputado à conduta quando esta tenha criado (ou aumentado, ou incrementado) um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. Por outras palavras, para esta teoria a imputação está dependente de um duplo factor: primeiro, que o agente tenha criado um risco não permitido ou tenha aumentado o risco já existente; e, depois, que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto. Quando não se verifique uma destas condições a imputação deve ter-se por excluída”.
Alerta o mesmo Autor[16] que, “apesar de todos os esforços doutrinais desenvolvidos o procedimento é – e em último termo tem de ser – eminentemente casuístico, embora susceptível de uma certa «tipologia»”.
Roxin, chamando a atenção para o facto de a sua teoria do incremento do risco não ser a seguida na Alemanha[17], defende que a imputação ao tipo objectivo pressupõe, agora em termos telegráficos:
1. A criação, pelo autor, de um perigo para o bem jurídico, que não esteja a coberto do risco permitido;
2. Que a criação desse perigo se traduza no resultado concreto;
3. Que o perigo criado esteja no âmbito de protecção da norma.

Pois bem.
Da matéria de facto provada não resulta que o arguido haja violado um qualquer dever objectivo de cuidado, como não resulta que tenha criado um risco não permitido ou ainda que tenha aumentado o risco já existente.
Igualmente não se pode concluir que tenha levado a cabo uma acção especialmente perigosa (negligência grosseira).
Com efeito, apenas está apurado que, “Após o arguido ter dado início a um cruzeiro entre as pontes do Rio … a partir da passagem pela Ponte de D. Luís I, a embarcação começou a aproximar-se mais da margem do rio .., do Lado de Vila Nova de Gaia. Assim, ao passar junto aos Cais da Senhora de Além, Vila Nova de Gaia, o arguido perdeu o controlo da embarcação que veio a colidir e a encalhar nas pedras da margem do rio, do qual resultaram rombos no casco”.
De tal matéria de facto não pode extrair-se:
1. As causas de a embarcação se haver começado a aproximar mais da margem do rio …, do Lado de Vila Nova de Gaia;
2. E nem as razões por que o Recorrente perdeu o controlo da embarcação que veio a colidir e a encalhar nas pedras da margem do rio. Que até podem ser naturais e imprevisíveis.
Consequentemente não resultou provado que o arguido tenha agido negligentemente, criando um risco não permitido, ou aumentando o risco existente.
Não se entende, por isso, porque tal não resulta da matéria de facto provada, como pode a Sr.ª Juiz afirmar que “Ao conduzir o barco a uma distância da margem que permitiu que este embatesse nas rochas aí existente, numa altura em que a maré se encontrava a vazar, perdendo-se profundidade, é nosso entendimento que o arguido violou, de forma grosseira as regras de segurança normais e gerais e bem assim a norma que impõe que a circulação se faça o mais próximo da linha do meio do rio”.
E ainda que “A tudo acresce que o arguido podia e devia ter conduzido embarcação de outro modo, e que se o tivesse feito o embate e consequente rombo no casco, não teria ocorrido”.
Mas menos se entende como pode da referida matéria da facto concluir-se que o arguido criou um risco não permitido, ou aumentou um risco já existente.
E não pode, como antes se demonstrou.
Importa perguntar:
Não é possível que o arguido tenha conduzido a embarcação mais próxima das margens do rio por causa do tráfego naval?
E não era o rio navegável em toda a sua largura, como afirma a Sr.ª Juiz na fundamentação da matéria de facto (Quanto à violação do dever de cuidado diremos que, pese embora no local, o rio seja navegável de margem a margem, como o esclareceram as testemunhas L… e E…)?
De onde resulta, então, o especial perigo, exigido pelo tipo legal? Do facto de a embarcação ser conduzida mais próxima de uma das margens, não resulta seguramente.
Da matéria de facto provada, muito seca, realce-se, não pode concluir-se pela violação de um qualquer dever de cuidado.
E muito menos pela violação grosseira desse dever.

Importa, pois, julgar improcedente a acusação.
Não pelas razões invocadas pelo arguido, mas por aquelas que se deixam expressas.

DECISÃO
Termos em que, embora por razões distintas das alegadas pelo Recorrente, se revoga a douta sentença recorrida, que se substitui por acórdão que julga a acusação improcedente, dela absolvendo o arguido.
Sem tributação.

Porto, 9-04-2014
Francisco Marcolino
Élia São Pedro
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[1] Para facilitar a decisão passaremos a enumerar os factos provados e não provados
[2] Direito Penal, Parte Geral, Teoria Geral do Crime, vol. II, Universidade Católica, Porto 2006, p. 379
[3] Também assim Roxin, Derecho Penal, Parte General, Thomson Civitas, p. 998
[4] Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Editorial Bosch, II vol. pp 798 e segs. fala em advertência do perigo para o bem jurídico protegido, “na observação das condições debaixo das quais tem lugar uma acção, no cálculo do iter a seguir e das eventuais modificações das circunstâncias que o rodeiam, assim como a reflexão acerca de como pode desenvolver-se e que consequências podem derivar do perigo advertido” (cuidado interno); e ainda o dever de realizar um comportamento externo correcto com o objectivo de evitar a produção do resultado típico (cuidado externo).
[5] RLJ 141º-63
[6] Direito Penal, p. 641
[7] Ob. cit., p. 379
[8] Ob. cit., p. 802
[9] Direito penal…., pg. 629
[10] Derecho Penal, Parte General, Thomson Civitas, tomo I, p. 1026
[11] Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001, p 381
[12] Lições de Direito Penal, Editorial Verbo 1992, I vol. p. 151
[13] STJ Ac. de 24 de Maio de 2005 in www.dgsi.pt
[14] Ob. cit., pp [378 e 379]. Tradução nossa
[15] Ob. cit., p. 313
[16] Ob. cit., p. 314
[17] Ob. cit., p. 380