Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0211621
Nº Convencional: JTRP00039566
Relator: MACHADO DA SILVA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
CASO JULGADO PENAL
PROCESSO DISCIPLINAR
Nº do Documento: RP200610090211621
Data do Acordão: 10/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 80 - FLS. 58.
Área Temática: .
Sumário: I- A decisão penal absolutória, transitada em julgado, com o fundamento de que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados, constitui (em quaisquer acções de natureza civil) presunção “iuris tantum” de inexistência desses factos, ilídivel mediante prova em contrário.
II- Tendo a sentença penal absolvido o arguido da prática de factos dados como provados em processo disciplinar, invocando o princípio “in dubio pro reo”, tal decisão não justifica um pedido de revisão da sentença proferida no Tribunal de Trabalho, que considerou a prática de tais factos fundamento de justa causa de despedimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

1. B……… propôs a presente acção, com processo comum, contra C…….., S.A., pedindo que a ré fosse condenada a reintegrá-lo no seu posto de trabalho ou a pagar-lhe a indemnização de 909.000$00, se ele por esta vier a optar, e, em qualquer caso, a pagar-lhe a retribuição referente ao mês de Junho de 2001, no valor de 151.500$00, bem como as retribuições vincendas até trânsito em julgado da decisão final e os juros de mora desde a citação.
Fundamentou o pedido, alegando, em síntese, que foi ilicitamente despedido, em 5 de Junho de 2001, por inexistência de justa causa.
+++
A ré contestou, sustentando que o despedimento foi decretado com justa causa e articulando os respectivos factos.
+++
Realizado o julgamento, com gravação da prova, foi, posteriormente, proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente, tendo a ré sido condenada a pagar ao autor a importância de € 125,95, referente ao trabalho prestado em 5 dias de Junho de 2001, acrescida de juros de mora desde o dia 5 daquele mês e ano.
+++
O autor recorreu, arguindo nulidades da sentença, impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto e sustentando a ilicitude do despedimento por inexistência de justa causa.
+++
A ré contra-alegou, alegando que as nulidades da sentença não foram devidamente arguidas no requerimento de interposição do recurso e pedindo a confirmação da sentença.
+++
Esta Relação, por acórdão de 03.07.2003, além de não tomar conhecimento das nulidades da sentença, por ter considerado que a sua arguição não respeitou o disposto no art. 77º, nº 1, do CPT, negou provimento ao recurso (fls. 926-972).
+++
O recorrente pediu a aclaração e a reforma desse acórdão, tendo esta Relação, por acórdão de 10.10.2003, esclarecido o acórdão anterior e indeferido o pedido de reforma (fls. 1006-1008).
+++
Seguidamente arguiu nulidades do primeiro acórdão, o que foi indeferido pelo acórdão de 10.12.2003 (fls. 1031).
+++
Finalmente, tendo interposto recurso para o Tribunal Constitucional, este tribunal, pelo seu acórdão de 08.06.2005 (fls. 1125-1141) concedeu provimento ao recurso, “julgando inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade (art.18º, nºs 2 e 3), com referência aos nºs 1 e 4 do art. 20º da Constituição, a norma do nº 1 do art. 77º do CPT, aprovado pelo DL nº 480/99, de 09.11, na interpretação segundo a qual o tribunal superior não pode conhecer das nulidades da sentença que o recorrente invocou numa peça única, contendo a declaração de interposição de recurso com referência a que se apresenta arguição de nulidades da sentença e alegações e, expressa e separadamente, a concretização das nulidades e as alegações, apenas porque o recorrente inseriu tal concretização após o endereço ao tribunal superior” e, em consequência, ordenou a reforma da decisão em conformidade com o decidido em matéria de constitucionalidade.
+++
Por acórdão de 21.11.05, esta Relação, reformulando o acórdão anterior de fls. 926-972, declarou a inexistência de nulidades da sentença recorrida, no demais se confirmando aquele acórdão.
+++
Notificado desta decisão, dela veio o A. arguir a nulidade do acórdão de fls. 926-972, nos seguintes termos:
“O acórdão de 03.07.2003, ao tomar conhecimento de questão de que não podia ter tomado conhecimento – não só porque tal nunca fora suscitado por qualquer das partes (art. 660º, nº 2, do CPC), mas ainda e em particular, porque a lei processual aplicável não lho permitia fazer à base de presunções judiciais, ainda que oficiosamente – bem assim, ao não especificar, em absoluto, os fundamentos de direito que justificassem tal decisão nessa parte, incorreu nas nulidades previstas, respectivamente, nas alíneas d) e b) do n° 1 do artigo 668° ex vi artigo 716°, nº 1, ambos do Código de Processo Civil ”.
+++
A R. respondeu, pugnando pelo indeferimento da arguição.
+++
Por acórdão de fls. 1199-1205, proferido em 20.02.2006, esta Relação indeferiu a arguição de nulidades do acórdão.
Este acórdão foi notificado às partes em 27.02.2006, tendo transitado em julgado em 13.03.2006.
+++
Em 16.05.2006, o A. interpôs o presente recurso extraordinário de revisão, nos termos dos arts. 771º e ss. do CPC, alegando resumidamente o seguinte:
1. O presente recurso de revisão funda-se no disposto na alínea f) do artigo 771° do Código de Processo Civil.
2. De acordo com tal preceito legal, a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando seja contrária a outra que constitua caso julgado para as partes formado anteriormente.
3. Ora, o referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto – proferido em 03.07.2003, a fls. 926-972 dos autos à margem referenciados – decidiu, em confirmação da sentença de 1ª instância, absolver a ré, ora recorrida, do pedido de declaração de ilicitude de despedimento (e dos pedidos correlativos), fundando-se no facto – que aditou à matéria dada como provada na 1ª instância – de o autor, ora recorrente, em determinadas circunstâncias de tempo, lugar e modo, se ter apropriado da importância de Esc. 3.241.304$00, correspondente a € 16.167,56.
4. Contrariamente, no processo nº …….01.0 JAPRT, que correu termos pela ….ª Vara Criminal do Porto, foi proferido acórdão em que se decidiu absolver o arguido, ora recorrente, da prática do crime de furto qualificado que lhe vinha imputado e do pedido cível formulado, em virtude de não se ter considerado provado que, nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo, o recorrente se tenha apropriado da referida importância de Esc. 3.241.304$00, correspondente a € 16.167,56.
5. O referido acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto transitou em julgado no passado dia 14.03.2006.
6. O acórdão proferido pela 4ª Vara Criminal do Porto transitou em julgado em 10.03.2006.
+++
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
+++
2. Factos provados interessantes à decisão do presente recurso:
a) No processo nº …….01.0 JAPRT, que correu termos pela 4ª Vara Criminal do Porto, foi proferido acórdão em que se decidiu absolver o arguido, ora recorrente, da prática do crime de furto qualificado que lhe vinha imputado e do pedido cível formulado, em virtude de não se ter considerado provado que, nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo, o recorrente se tenha apropriado da referida importância de Esc. 3.241.304$00, correspondente a €16.167,56.
b) Na motivação consignada na acção penal supra referida intentada contra o recorrente, aí arguido, consta o seguinte:
“O tribunal teve sérias dúvidas de que o arguido se tenha apropriado da quantia de 16.167,56 euros referida na acusação deduzida pelo Ministério Público. Nessa medida e de acordo com o princípio in dubio pro reo, cuja justificação reside na ideia de que é preferível absolver um culpado a condenar um inocente, entendeu-se que esse estado de dúvida deveria necessariamente favorecer o arguido e, por isso, considerou como não provado tal facto”.
+++
3. Do mérito.
A questão a decidir consiste apenas em saber se o presente recurso extraordinário de revisão deve ser liminarmente admitido.
A este respeito, o despacho ora em apreço tem a seguinte fundamentação:
“O Código do Processo Civil de 1939 criou o recurso extraordinário de revisão, substituindo, com ele, a acção anulatória do caso julgado.
O recurso extraordinário de revisão é um meio processual que permite a quem tiver ficado vencido num processo já definitivamente julgado, a sua reabertura, mediante a invocação de qualquer dos fundamentos taxativamente indicados no art. 771º do CPC.
Enquanto com a interposição de qualquer recurso ordinário se pretende evitar o trânsito em julgado de uma decisão desfavorável, através do aludido recurso extraordinário visa-se a revisão duma sentença transitada.
O recorrente fundamenta o presente recurso extraordinário de revisão da sentença e do acórdão de 03.07.2003, proferido na acção por ele intentada contra a R. Esegur, na alínea f) do art. 771º do CPC.
Tal art. 771º dispõe o seguinte:
“A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão nos seguintes casos:
(…)
f) – Quando seja contrária a outra que constitua caso julgado para as partes, formado anteriormente”.
+++
No caso concreto, o presente recurso, delimitado pelas respectivas alegações, restringe-se à invocação do caso julgado penal supra invocado.
Vejamos.
O referido acórdão desta Relação – proferido em 03.07.2003, a fls. 926-972 – decidiu, em confirmação da sentença de 1ª instância, absolver a ré, ora recorrida, do pedido de declaração de ilicitude de despedimento (e dos pedidos correlativos), fundando-se no facto – que aditou à matéria dada como provada na 1ª instância – de o autor, ora recorrente, em determinadas circunstâncias de tempo, lugar e modo, se ter apropriado da importância de Esc. 3.241.304$00, correspondente a € 16.167,56.
No processo penal supra especificado, foi proferido acórdão em que se decidiu absolver o arguido, ora recorrente, da prática do crime de furto qualificado que lhe vinha imputado e do pedido cível formulado, em virtude de não se ter considerado provado que, nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo, o recorrente se tenha apropriado da referida importância de esc. 3.241.304$00, correspondente a € 16.167,56.
+++
Como é sabido o CPP vigente não disciplina o caso julgado penal, salvo no seu reflexo no pedido cível (que, in casu, foi deduzido na acção penal), quando estabelece no art. 84º que “a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”.
Dessa questão se ocupou, em contrapartida, o DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro (que aprovou a Reforma do Processo Civil), como, aliás, o legislador se encarregou de frisar no respectivo preâmbulo: “no que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação dos efeitos do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por acções civis conexas com as penais, retomando o regime que, constando originariamente do Código de Processo Penal de 1929, não figura no actualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria”.
Consagrando tais objectivos, foram aditados ao CPC os arts. 674º-A e 674º-B, prescrevendo-se neste último que “a decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário” (nº 1), sendo que tal presunção “prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil” (nº 2).
Tal significa que, uma vez transitada em julgado, a decisão penal absolutória fundada em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados constitui presunção iuris tantum de inexistência desses factos, presunção essa que, no entanto, não pode ser ilidida por qualquer outra presunção de culpa estabelecida no Código Civil.
E dispensa aquele que tem a seu favor tal presunção de provar o facto a que ela conduz (art. 350º, nº 1), funcionando, assim, como uma forma de inversão do ónus probatório, na medida em que faz recair sobre a parte contrária a prova capaz de afastar o facto legalmente presumido (nº 2 da mesma norma).
Importa, na sequência do exposto, analisar a sentença penal que absolveu o recorrente, não apenas quanto ao seu teor decisório mas também no que concerne aos fundamentos em que assentou e se fundamentou essa decisão.
Acusado o arguido nesse processo pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nº 2, alínea a), do CP, foi tal acusação julgada não provada e improcedente e absolvido o arguido.
Considerou-se nessa sentença como não provado que o arguido se tenha apropriado da quantia referida na acusação, acrescentando-se “de acordo com o princípio in dubio pro reo” (tal como já se tinha dito na fundamentação de tal decisão acerca da matéria de facto).
Foi, pois, por se não terem provado os factos imputados ao arguido que este foi absolvido, nunca por se ter provado não ter o arguido tido o comportamento que lhe vinha assacado.
Desta forma, concluindo-se que a absolvição do arguido na sentença penal não resultou da prova de que não praticou os factos que lhe eram imputados na acusação, antes se fundou na falta de prova desses mesmos factos (princípio in dubio pro reo), parece evidente que não ocorre a situação prevista no art. 674º-B do CPC.
Por isso, é pacífica a orientação jurisprudencial do STJ, no sentido de que “nos termos do nº 1 do artigo 674º B do CPC, não é qualquer decisão penal absolutória que constitui presunção da inexistência dos factos imputados ao arguido; esta presunção só existirá se a absolvição no processo-crime tiver por fundamento a prova de que o arguido não praticou aqueles factos, sendo que a simples falta de prova da acusação (como foi aqui o caso) não permite fundar qualquer presunção, valendo, então, no âmbito do processo penal, a presunção de inocência do arguido, sem qualquer valor fora desse processo” – cfr., entre outros, os acórdãos de 19/02/2004, no Proc. 4284/03 (relator Cons. Moreira Camilo) e de 17.06.2004 (relator Cons. Araújo de Barros), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Na medida do exposto, tendo-se limitado a sentença penal absolutória do recorrente a determinar a sua absolvição, por se não terem provado os factos que lhe eram imputados na acusação, daí não é legítimo concluir pela existência de qualquer obstáculo à apreciação dos mesmos factos, enquanto integrantes e justificativos da decisão de despedimento, nomeadamente através do recurso à presunção judicial, como sucedeu com o acórdão desta Relação, de 03.07.2003.
A admissibilidade do presente recurso não pode, assim, fundamentar-se na alínea f).”
Subscreve-se esta fundamentação por manter inteira validade, não tendo o recorrente aduzido razões que não tenham sido já ponderadas no despacho em apreço ou que convençam da necessidade de rever a análise efectuada.
+++
4. Atento o exposto, e decidindo:
Acorda-se em confirmar o despacho de indeferimento do recurso de revisão.
Custas pelo recorrente.
+++
Porto, 09 de Outubro de 2006
José Carlos Dinis Machado da Silva
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa