Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0625867
Nº Convencional: JTRP00039719
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: COMPETÊNCIA
JULGADOS DE PAZ
Nº do Documento: RP200611140625867
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA.
Decisão: DECLARADA A COMPETÊNCIA.
Indicações Eventuais: LIVRO 231 - FLS. 148.
Área Temática: .
Sumário: É excluída a competência dos Julgados de Paz nas acções de cobrança de dívida de cuidados de saúde prestados por pessoa colectiva, como seja o Hospital de Santo António, EPE.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

O Hospital Geral de Santo António, EPE, com sede no Largo Prof. Abel Salazar, Porto, instaurou junto do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto uma acção sob a forma sumarísssima,
contra
Companhia B…………., SA,
pedindo
- a condenação desta a pagar ao A. a quantia de € 2.226,43 e juros vencidos no montante de € 242,92, acrescida de juros vincendos à taxa legal até integral pagamento.
Para o efeito alegou a prestação de cuidados de saúde prestados a C………., no período de 18 a 25 de Fevereiro de 2003 e consulta externa no dia 11 de Março do mesmo ano, em consequência de ter sido vítima de acidente de viação, causado por culpa do condutor do veículo de matrícula -..-..-LS, D……..., que circulava com o conhecimento e autorização de sua proprietária E………, e cuja responsabilidade civil decorrente da circulação do citado veículo se encontrava transferida por esta, para a Ré, através de contrato de seguro cuja apólice foi devidamente identificada.

A Ré contestou, impugnando a versão do acidente e concluindo pela improcedência da acção e sua absolvição.

O M.º Juiz sustentou no entanto que a competência para apreciar a causa seria do Julgado de Paz do Porto, pelo que se declarou incompetente e determinou que, após o trânsito fosse o processo remetido ao referido Julgado de Paz.

O A. não se conformou, pelo que interpôs recurso, que foi admitido como de agravo, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Alegou então o Hospital Geral de Santo António.
O M.º Juiz sustentou o despacho recorrido.

Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com a adjectivação e demais atributos que lhe haviam sido atribuídos na primeira instância. Correram os vistos legais.
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Âmbito do recurso

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é através das conclusões apresentadas pelo recorrente nas suas alegações de recurso que este indica as questões que pretende ver tratadas. Daí que tenha natural relevância que se proceda à respectiva transcrição:

“CONCLUSÕES:

A presente acção foi interposta no Tribunal de Pequena Instancia do Porto e por despacho de 22.03.2005, o Mm.o Juiz, remeteu os presentes autos, para os Julgados de Paz do Porto, por considerar, ser este o Tribunal hierarquicamente competente.
Porém, salvo melhor entendimento, afigura-se ao aqui recorrente que o mesmo não tem razão.
O D.L. 218/99, de 15 de Junho, estabelece um regime especial para a cobrança de dívidas referentes aos cuidados de saúde prestados pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, como se depreende, não só do teor do preâmbulo, como do estipulado nos art.s, 1°, 2°, 3°,4° e 5° do citado Diploma Legal.
Por sua vez, a Lei 78/2001 de 13 de Julho no seu art.º 9° regula a competência material dos Julgados de Paz, sendo-lhes permitido, apreciar e decidir nas situações previstas no n. 1 e 2 do art.º 9° da referida Lei 78/2001,
Consequentemente, todas acções, cuja competência ai se encontre excluída, cujo valor, seja inferior à alçada da relação de primeira instância, serão" a contrario sensu" da competência dos tribunais de Pequena Instância Cível.
O mencionado normativo legal, na alínea a) do n.º 1, refere que estão excluídas do âmbito da sua competência material, as acções, que tenham por objecto, prestação pecuniária, cujo credor originário seja uma pessoa colectiva, requisito este, que impende sobre o aqui recorrente, o que em nosso entender, implica obrigatoriamente, a incompetência material dos Julgados de Paz do Porto.
As acções propostas ao abrigo do D. L. 218/99 de 15.6 são acções de dívida, cuja causa de pedir é complexa pois exige-se o pagamento do custo da prestação de cuidados de saúde, e destinam-se a efectivar o cumprimento de uma obrigação pecuniária, por uma pessoa colectiva, incluindo-se assim, na previsão da alínea a) do citado art. 9°, por outro lado integram-se também, na alínea h) do mesmo artigo pois, para se justificar a responsabilidade dos demandados, é necessário fazer apelo à responsabilidade civil extracontratual.
Assim, as acções de cobrança de dividas, das Instituições Hospitalares (e outras integradas no SNS), encontram-se afastadas da competência dos Julgados de Paz, pelo n.º 1- a) da Lei 78/01,
Aliás, no mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2005 relativo ao processo 5874/2004.03 THPRT em que o aqui recorrente foi parte como agravante, cuja decisão se junta e se dá por integralmente reproduzida (doc 1 ).
Acresce que, a razão da exclusão deste tipo de acções da competência dos Julgados de Paz se deve a que nas" .... acções de cobrança de dívida das pessoas colectivas, tendo em conta que estas não visam o lucro económico, não há lugar à justa composição de litígios por acordo das partes pelo que seria um contra senso incluí-las na competência material dos Julgados de Paz ." cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2005, supra referenciando.
Pelo exposto, tendo em conta toda a factualidade supra alegada, deve em nossa opinião considerar-se competente em função da matéria e da hierarquia o Tribunal de Pequena Instancia Civil, uma vez que os Julgados de Paz são incompetentes em razão da matéria.
Acresce ainda, que o sucesso de tais demandas fica seriamente comprometido, caso se considere que a competência em razão da matéria pertence ao Julgado de Paz, uma vez que impenderá sobre o Hospital a apresentação das testemunhas.
Não se verificando assim, em nosso entender, a excepção da incompetência em razão da hierarquia, conforme se decidiu no despacho ora em crise
Devendo tal decisão, em nossa opinião, por violação, do preceituado nos art.s 6.º-1, 8°, 9°-1-h), 12°-2, 62°, 63° e 67.º todos da Lei 78/200 ser inteiramente substituída por uma outra que considere competente em razão da hierarquia, o Tribunal de Pequena Instancia do Porto, por consequente incompetência em razão da matéria dos Julgados de Paz do Porto.
Termos em que (...) revogando o despacho recorrido e substituindo-o por um outro, que considere competente em razão da hierarquia o Tribunal de Pequena Instancia Cível do Porto, farão como sempre
Justiça”
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Como pode ver-se da leitura das conclusões transcritas, a única questão que se levanta é a de determinar a quem é conferida legalmente, em primeira linha, a competência para, na Comarca do Porto, julgar as acções cujo valor não exceda a alçada do Tribunal de 1.ª instância que sejam destinadas a cobrança de dívidas hospitalares ou de cuidados de saúde, decorrentes de acidente de viação, e cujo montante em causa não excede a alçada do Tribunal de Comarca:
aos Tribunais de Pequena Instância
ou aos Julgados de Paz?
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Fundamentação

Os factos a ter em consideração são os já constantes do Relatório
A questão colocada já tem sido várias vezes tratada neste Tribunal e pelo menos uma vez – tanto quanto conhecemos - já teve o STJ a oportunidade de se pronunciar sobre essa matéria.(1)
Tem-se vindo a sustentar que a competência material para conhecer das acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil pelos tratamentos e cuidados de saúde e que sejam emergentes de acidente de viação, quando a entidade credora prestadora desses cuidados seja uma pessoa colectiva, se encontra subtraída aos Julgados de Paz, uma vez que se tem entendido que o respectivo enquadramento legal se encaixa na situação especial prevista na segunda parte do art. 9.º-a) do DL n.º 78/2001, de 13 de Julho - limitativa da competência dos Julgados de Paz - e não propriamente na alínea h) do mesmo artigo, de conteúdo mais genérico.

É esse também o nosso entendimento.

Na verdade, muito embora a alínea h) do art. 9.º do DL n.º 78/2001, de 13 de Julho, preveja que os Julgados de Paz são competentes para as acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual, e a alínea a) do mesmo artigo lhe atribua, por via de regra, a competência para as acções destinadas à efectivação de cumprimentos de obrigações, há que notar que a segunda parte da referida alínea a) abre uma explícita excepção.
Como se pode ver da segunda parte dessa alínea a) do art. 9.º do DL citado, houve da parte do legislador a preocupação de explicitamente excluir da competência dos Julgados de Paz o conhecimento das acções destinadas à efectivação do cumprimento de obrigações pecuniárias quando a entidade credora seja uma pessoa que por natureza não prossiga o lucro, ou seja, quando a entidade credora tenha a natureza de pessoa colectiva, no sentido de pessoa moral.

Para os casos em que o credor seja pessoa colectiva (no sentido de pessoa moral) (2), e em que a obrigação cuja efectivação se pretende tenha valor pecuniário determinado que não se enquadre no lucro económico dos associados) (como é o caso do custo ou apenas comparticipação nos tratamentos e cuidados de saúde dos Hospitais públicos), vale portanto a norma excepcional, concreta, que excluiu do campo da competência material, os Julgados de Paz.- art. 9.º-3 do CC, e que o legislador entendeu dever merecer tratamento diferenciado.
Atendendo às razões subjacentes que levaram a criar os Julgados de Paz (Lei n.º 78/2001, de 13/07), bem como ao diploma que contempla as cobranças de dívidas por cuidados de saúde (DL n.º 218/99, de 15/06) podemos concluir que foi intenção do legislador diferenciar o estatuto e a forma de recurso ao direito e tratamento jurisdicional de algumas relações jurídicas em que uma das partes prossiga um fim moral, quer pelo facto de não ser necessário inundar os Juízos de Paz com acções cuja perspectiva de litígio não tenham assentado em lucro económico ou cuja solução, para ser justa, não exija, por via de regra, transacção ou acordo das partes.

Assim, sendo o Hospital de Santo António uma dessas entidades (pessoas colectivas), e inserindo-se o seu pedido no pagamento dos custos de cuidados de saúde que prestou, de valor pecuniário determinado, sem que nele esteja ou tivesse pretendido ver alargado ou prosseguido com qualquer intuito lucrativo, será aplicável ao caso a parte dispositiva especial da 2.ª parte da alínea a) desse mesmo artigo 9.º do DL n.º 78/2001, que, no caso concreto, tem como consequência colocar logo na primeira linha de conhecimento da questão, o Tribunal de Pequena Instância do Porto, e não o Juízo de Paz.

O agravo deve por isso obter provimento.
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Deliberação

No provimento do agravo, revoga-se o despacho recorrido, declarando-se como material e hierarquicamente competente para conhecer desde logo a acção em presença o Tribunal de Pequena Instância do Porto.
Sem custas.

Porto, 14 de Novembro de 2006
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes

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(1) A título exemplificativo pode consultar-se o Ac. do STJ de 2005.07.05, no agravo n.º 2024/05-6.ª (Salreta Pereira, Fernandes Magalhães e Ramos), cuja cópia foi junta aos autos pelo agravante, assim como o Ac. desta Relação de 2006.02.16, no agravo 7138/05, da 3.ª secção (Deolinda Varão, Ana Paula Lobo e Coelho da Rocha), um e outro disponibilizados in www.dgsi.pt/jstj e www.dgsi.pt/jtrp, respectivamente.
(2) Por exemplo, associações que não visem especificamente e como objectivo principal o lucro económico dos associados, fundações de interesse social, instituições públicas que não visem o lucro económico, ou instituições particulares de solidariedade social.