Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0755601
Nº Convencional: JTRP00040798
Relator: ABÍLIO COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
Nº do Documento: RP200711260755601
Data do Acordão: 11/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 320 - FLS 89.
Área Temática: .
Sumário: I- Quer a C………., S. A., quer a D………. são sociedades, sendo a primeira uma empresa pública em sentido restrito, que devem ser demandadas nos tribunais comuns e não nos tribunais administrativos.
II- Em termos actuais compete a estes o julgamento das questões que tenham por objecto:
- a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão pública;
- a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão privada;
- relativas à responsabilidade civil extracontratual pelos danos resultantes do exercício da função jurisdicional e legislativa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B………. intentou, em 29-12-06, nas Varas Cíveis do Porto, acção declarativa, na forma ordinária, contra C………., S.A., D………., A.C.E., e MUNICÍPIO ………. .
Pede a condenação, solidária, dos R.R. no pagamento da quantia de € 28.214,36.
Alega ser dona do prédio urbano constituído pela fracção D, que integra o prédio sito na Rua ………., nºs . e ., e Rua ………., nº…; que o R. Município ………. tomou posse administrativa daquela fracção a fim de, atentas as obras do metro, a cargo da C………., S.A., se proceder ao reforço estrutural do edifício onde se situa a fracção, o que foi levado a cabo pela D………., a quem foi adjudicada a obra; todavia, quando, no fim das obras, a fracção lhe foi entregue, não estava em condições de ser habitada, apresentando danos.
Todos os R.R. contestaram, tendo a R. C………., S.A., e o Município ………., suscitado, além do mais, a excepção de incompetência em razão da matéria.
Foi, então, proferida a decisão de fls 595 a 600 que declarou o tribunal incompetente em razão da matéria e absolveu todos os R.R. da instância.
Inconformada, a A. interpôs recurso.
Conclui assim, entre o mais:
-a distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada assenta na questão de saber se a conduta tida como ilícita integra actividade regulada pelo direito público ou pelo direito privado;
-os actos de que a agravante fez emergir o direito à indemnização constituem actos de gestão privada;
-a relação jurídica material, tal como é alegada pela A., enquadra-se no âmbito da responsabilidade extracontratual, e o pedido formulado assenta exclusivamente em regras de direito privado;
-quer a causa de pedir, quer o pedido, não cabem nas atribuições de um acto administrativo, nem são regulados como tal pelo direito administrativo;
-estamos perante um conflito de direito privado em que intervêm duas pessoas de direito público, cuja actuação é semelhante a qualquer particular;
-a actuação descrita não traduz qualquer manifestação de autoridade, nem reveste qualquer significado que possa diferenciar o ente público do ente particular, colocado na mesma circunstância;
-de todo o modo, sempre as Varas Cíveis do Porto seriam materialmente competentes para apreciar a responsabilidade da R. D……….;
-em relação a esta R. não estámos perante qualquer efectivação de responsabilidade de uma entidade pública, mas sim privada;
-não cabe na competência dos Tribunais Administrativos dirimir litígios não emergentes das relações jurídico-administrativas;
-foi violado o disposto nos art.s 211º, nº1, 212º, nº3 e 214º, nº3, da CRP, 66º do CPC, 1º e 4º do ETAF, e 483º, 500º, 501º e 562º e ss., estes do C.Civil.
Houve contra-alegações por parte do Município ………. e da C………., S.A..
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Os factos a ter em consideração já resultam do relatório.
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Questão a decidir:
-tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar a acção.
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Escreveu-se na decisão recorrida: “no caso dos autos, atenta a causa de pedir alegada na petição inicial, está em apreciação uma questão de responsabilidade civil extracontratual das aqui rés – pessoas colectivas de direito público – na veste da invocada violação danosa do direito real de propriedade da aqui A., com base na execução de obras relacionadas com a construção da rede do C………., S.A..
Ou seja, com base na execução de tais obras que foram efectuadas no âmbito da concessão de exploração do serviço público do Sistema de metro Ligeiro que foi atribuída às aqui rés, a A. pretende ser ressarcida pelos danos daí decorrentes”.
E, mais à frente: “ora, no caso, atento o alegado na petição…está em causa uma questão de responsabilidade civil extracontratual de todas as demandadas em consequência da obra pública realizada pelas Rés, no âmbito da sua competência legal (administrativa), pelo que, pelos fundamentos já expostos, a competência material é do Tribunal Administrativo e não dos Tribunais Comuns”.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.1º, nº1, do ETAF, aprovado pela Lei nº13/2002 de 19/2, “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Sobre o conceito de relação jurídica administrativa veja-se, entre outros, VIEIRA DE ANDRADE, in A Justiça Administrativa, 62.
Esta cláusula geral é, em parte, concretizada pela enumeração positiva e negativa constante do art.4º daquele diploma legal. Mas aquela enumeração positiva também atribui, noutra parte, competências, além das referidas naquela cláusula, assim como a enumeração negativa também restringe competências, além das referidas na mesma cláusula - VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., 117.
E dispõe o art.4º, nº1, al. g), do ETAF, na referida enumeração positiva, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.
Como interpretar esta norma?
Escreveu-se, a este propósito, in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, de FREITAS DO AMARAL e AROSO DE ALMEIDA, pág. 34, que “nas propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, foi assumido o propósito de pôr termo a essas dificuldades, consagrando um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios. A exemplo do que, como vimos, acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que as propostas se basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada: sempre que o litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos. Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa passasse a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado...Em defesa desta posição sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, a verdade é que ela “não erige esse critério num dogma” porquanto “não estabelece uma reserva material absoluta”. Por conseguinte, “a existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado”...O art.4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial, estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos litígios emergentes de relações contratuais...”.
Por outro lado, e em consonância com este elemento histórico, há o facto de ter desaparecido a referência constante do art.4º, al. f), do antigo ETAF, que excluía da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das “questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público”.
Ora, conjugando a interpretação literal do art.4º, nº1, al. g), do ETAF, o elemento histórico acima referido, bem como a eliminação da referência acima citada, podemos concluir que compete à jurisdição administrativa, nos termos daquela disposição legal:

-o julgamento das questões que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão pública;
-o julgamento das questões que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão privada;
-o julgamento das questões relativas à responsabilidade civil extracontratual pelos danos resultantes do exercício da função jurisdicional e legislativa.
Voltando-nos, agora, para o caso em apreço.
Previamente à realização das obras, existiu uma deliberação camarária tomada pelo R. Município ………., na sequência da qual tomou posse administrativa do prédio onde se situa a fracção da A., entregando-a, então, à R. C………., S.A., que, por intermédio da R. D………., realizou as obras de reforço estrutural do edifício. E findas as obras, o R. Município ………. procedeu à entrega do prédio, ou seja, das fracções, aos respectivos proprietários. Sendo nesta altura que a A. detecta os alegados danos, de que pretende ser ressarcida.
Ora, sendo assim, é manifesto que a eventual responsabilidade do R. Município ………., pessoa colectiva de direito público, deriva de um acto de gestão pública: no uso da sua competência, e investida de “ius imperi”, tomou posse administrativa do prédio onde está inserida a fracção da A. e entregou-o à R. C………., S.A..
Pelo que estamos, claramente, perante a primeira situação acima enunciada relativa ao âmbito da jurisdição administrativa: cabe aos tribunais administrativos o julgamento das questões que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão pública.
Os tribunais administrativos são, assim, os competentes em razão da matéria para apreciar o litígio emergente da relação jurídica estabelecida entre a A. e o R. Município ………. .
E quanto às R.R. C………., S.A., e D……….?
Antes de mais, discordámos, nesta parte, da consideração tecida na decisão recorrida de que se trata de “pessoas colectivas de direito público”.
A R. C………., S.A., consiste numa sociedade anónima constituída por capitais públicos. Trata-se, por isso, de uma empresa pública em sentido restrito – PUPO CORREIA in Direito Comercial, 48. Empresa pública a quem foi concessionada a exploração do sistema de metro ligeiro na área metropolitana do Porto – DL nº394-A/98 de 15/12.
E a R. D………. consiste num agrupamento complementar de empresas – ACE – que tem, por isso, a natureza jurídica de sociedade – PUPO CORREIA, ob. cit., 142.
Não se integram, assim, em nenhuma das situações acima referidas relativas ao âmbito da competência dos tribunais administrativos, decorrentes do disposto no art.4º, nº1, al. g), do ETAF. Desde logo, porque não estamos perante pessoas colectivas de direito público.
Devem, por isso, e em princípio, ser demandadas nos tribunais comuns. Esta a regra, sempre que intervenham em qualquer litígio com outro particular.
Dispõe, todavia, a al. i) do nº1 do referido art.4º do ETAF, que compete, também, aos tribunais administrativos a apreciação de litígios que tenham por objecto a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
Será esta a situação destas R.R.?
Pensámos que não.
Esta alínea visa as situações de sujeitos privados, designadamente concessionários, “em função da aplicabilidade do regime substantivo específico da responsabilidade de direito público” – VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., 125.
Ora, e quanto às R.R. C………., S.A., e D………., é patente que a situação colocada pela A. não é regulada pelo regime substantivo da responsabilidade de direito público. Antes, pelo regime substantivo da responsabilidade de direito privado – art.s 483º e ss. do C.Civil: a A. alega ter sofrido danos na sua fracção, que imputa às obras realizadas pela R. C………., S.A., através da R. D………. .
Em suma, e relativamente a estas R.R., não têm a natureza de pessoas colectivas de direito público, por um lado, e não está em causa, entre elas e a A., um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, por outro lado.
Pelo que, para a apreciação de tal litígio, são competentes os tribunais comuns – art.66º do CPC.
Nesta parte o recurso merece, atento o que fica dito, provimento.
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Acorda-se, em face do exposto, e concedendo provimento parcial ao agravo, em declarar o tribunal recorrido materialmente competente para a apreciação do litígio entre a A. e as R.R. C………., S.A. e D………., confirmando-se a decisão recorrida no mais.
Custas, na proporção de 1/3 para cada um, pela A. e pela R. C………., S.A., estando a R. D………. isenta – art.2º, nº1, al. g), do CCJ.

Porto, 26-11-07
Abílio Sá Gonçalves Costa
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Maria de Deus Simão da C. Silva D. Correia