Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0634313
Nº Convencional: JTRP00039484
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
REGISTO
POSSE
Nº do Documento: RP200609210634313
Data do Acordão: 09/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 684 - FLS 52.
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, produzindo-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato. Assim, tal contrato é válido mesmo quando celebrado verbalmente.
II - Havendo colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (artº 7º do CRP) e a presunção decorrente da posse (artº 1268º CC) com início à data do registo ou anterior a ele, prevalece esta última.
III - Mesmo que a posse e o registo tenham a mesma antiguidade (v.g., prova-se que à data do registo havia posse, mas não se prova a posse anterior), ainda assim—em obediência à prevalência, na nossa ordem jurídica, da situação real, uma vez provada, sobre a situação inscrita—prevalece a presunção possessória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

No Tribunal Judicial de Lousada, por apenso aos autos de execução ordinária para pagamento de quantia certa que B………., Ldª, intentou contra C………., veio D………. deduzir incidente de embargos de terceiro.

Pede que o tribunal declare que o veículo ligeiro de passageiros, de marca SuzuKi, com a matrícula ..-..-GG, penhorado à ordem daqueles autos de execução, é sua propriedade, alegando, para tal, que é terceiro, a aquisição do veículo encontra-se registada a seu favor na competente conservatória do registo automóvel, bem ainda alegando factos que, em seu entender, integram o instituto possessório. Conclui peticionando que se ordene o levantamento da penhora, com todas as consequências legais.

Admitidos liminarmente e após produção de prova sumária, estes embargos foram recebidos.

Notificados os embargados, apenas a embargada B………., Ldª, contestou alegando, em resumo, que o negócio celebrado entre o embargante e embargado/executado é simulado, pois nem um nem outro quiseram comprar ou vender aquele veículo, não tendo sido pago o respectivo preço; subsidiariamente, para o caso de improceder tal pedido, peticionou se declare ter sido celebrado o negócio com má-fé, pois que à data da sua concretização já existia o crédito da embargada, o que era do conhecimento do embargante, tendo sido realizado o negócio com o único intuito de prejudicar os credores do executado.
Conclui peticionando a declaração de ineficácia do negócio quanto a si, bem como a condenação do embargante como litigante de má-fé.

Foi proferido despacho saneador e elaborada a matéria de facto assente e a base instrutória, objecto de reclamação a fls. 45, a qual foi julgada procedente por despacho de fls. 59.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, dentro do formalismo legal, após o que se respondeu à matéria constante da base instrutória, conforme despacho de fls.112 e ss, sem reclamações.

Foi, por fim, proferida sentença, julgando “procedentes, por provados, os embargos e improcedentes as excepções deduzidas na douta contestação”, e, em consequência, “declarando-se o embargante legítimo proprietário do veículo de marca Suzuki, com a matrícula ..-..-GG, cuja aquisição se encontra inscrita a seu favor na competente conservatória do registo automóvel”.

Inconformada com o sentenciado, veio a embargada B………., Ldª, recorrer, apresentando alegações que remata com as seguintes

ALEGAÇÕES:
“1ª - No caso sub judice, e conforme resulta da matéria de facto, dada por assente, o veículo de marca Suzuki, com a matrícula ..-..-GG, encontra-se inscrito na competente Conservatória do Registo Automóvel a favor do embargante, ora apelado.
2ª - Donde resulta, que o ora apelado beneficia da presunção (ilidível) decorrente do art. 7° do CRPredial, de ser o proprietário do veículo.
3ª - Sucede, porém, que no que se refere à posse sobre o referido veículo, o embargante/apelado não logrou provar, como lhe competia (art. 342° n.° 1 do C.C.) os factos questionados nos pontos 2° a 70 da Base instrutória.
4ª - E, assim sendo, o embargante, ora apelado, não logrou provar que tinha a posse do referido veículo.
5ª - Sendo que, o que ficou claramente provado, é que mesmo depois da pretensa venda, quem continua a usar a referida viatura, em seu proveito e do seu agregado familiar é o próprio executado, C………..
6ª - Ou seja, o que ficou provado foi que quem tem praticado actos de posse sobre o veículo, os quais, aliás, duraram mais de um ano e um dia, é o executado, C………. e não o embargante/apelado.
7ª - E tendo o executado, C………., praticado actos de posse sobre o veículo penhorado, os quais duraram por mais de ano e dia, nos termos do art. 1.268 do C.C. tem que se presumir que o possuidor é o titular do direito.
8ª - Significa isto, que da matéria de facto considerada assente e, por outro lado, da matéria de facto apurada e dada como provada em sede de audiência de discussão e julgamento, resultam duas presunções legais,
9ª - Por um lado, a presunção decorrente do art. 7° do CRPredial, da qual é beneficiário o embargante e, por outro lado, a presunção da titularidade decorrente do estabelecido no art. 1.268° do CC, da qual beneficia o executado, segundo a qual quem está na posse de uma coisa, é titular do direito correspondente aos actos que se praticam sobre ela.
10ª - Ora, sendo entendimento dominante da nossa Jurisprudência que: - “Havendo conflito de presunções, uma derivada do registo (art. 70 do CRPredial) e outra emergente da posse (art. 1268° do CC), prevalece esta última” - Acórdão do STJ, de 19/02/1992: BMJ, 414° - 545° - "Havendo colisão entre a presunção que resulta da posse e a presunção fundada em registo de um direito anterior ao inicio da posse, prevalece esta última" - Acórdão da Relação do Porto, de 11-04-2000, in CJ, tomo II, p. 220
11ª - E uma vez que, no caso em apreço, como, aliás, resulta claramente dos autos, ficou provado que o executado, mesmo após Maio de 2003, continua a usar a referida viatura,
12ª - Sendo que, a expressão "continuar" significa "prosseguir o que se começou" e ou "dar seguimento ao que está começado" e ou "não sofrer interrupção" (Vide Dicionário Língua Portuguesa /Porto Editora).
13ª - Tal significa que o registo do veículo a favor do embargante/apelado é posterior ao início da posse do executado sobre o veículo;
14ª - Pelo que, se poderá concluir que não existe a favor de outrem, designadamente, do embargante/apelado, presunção fundada em registo anterior ao início da posse. - art. 1268° CC "in fine"
15ª - E, assim sendo, dúvidas não restam de que no caso em apreço, a presunção derivada do registo de que beneficia o embargante/apelado se encontra totalmente afastada.
16ª - Pelo que, não foi correcta a decisão da M.° Juiz "a quo" ao declarar o embargante legitimo proprietário do veículo de marca Suzuki, com a matrícula ..-..-GG, e, por outro lado, ao ordenar o levantamento da penhora que incide sobre o mesmo, com base, única e exclusivamente, na presunção decorrente do art. 7° do CRPredial.
17ª - Ao decidir, como decidiu, a decisão recorrida violou, claramente, entre outros, o disposto no art. 1.268° do Código Civil.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito, que V.Ex.as, como sempre, mui doutamente suprirão, deve ser julgado procedente o presente recurso, e em consequência, se dignem revogar, em conformidade com o exposto, a douta sentença recorrida, por outro que julgue os embargos totalmente improcedentes, por não provados, sempre com todas as legais consequências.”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

As questões a resolver são as seguintes:
- Da posse do embargante/apelado sobre o veículo penhorado e da presunção registral de que beneficia
- Da posse sobre o mesmo veículo por banda do executado e eventual presunção da titularidade do direito a seu favor nos termos do artº 1268º, nº1, do CC, com afastamento da presunção emergente do artº 7º do CRP de que o embargante/apelado é titular.

II. 2. FACTOS PROVADOS:

No Tribunal a quo deram-se como provados os seguintes factos:
2.1.Em 08/01/2003, B………., Ldª, intentou contra C………, acção executiva para pagamento de quantia certa na forma ordinária, dando à execução diversos cheques subscritos pelo executado, no valor total de € 12.897,34.
2.2. Por despacho datado de 16/09/2003, a fls. 59, dos autos de que estes são apensos, foi ordenada a penhora do veículo automóvel de marca Suzuki, com a matrícula ..-..-GG, a qual viria a ser concretizada em 09/12/2003 (fls. 73, dos autos principais).
2.3. Nesse mesmo dia, teve o embargante conhecimento da concretização da aludida penhora.
2.4. O embargante não figura nos títulos dados à execução, seja a que título for.
2.5. A aquisição do veículo penhorado encontra-se inscrita a favor do embargante na competente conservatória do registo predial desde 18/03/03.
2.6. O embargante declarou comprar ao embargado C………. em Maio de 2003, o veículo id. em 2.2., pelo preço de € 7.500.
2.7. Àquela data já a embargada B………., Ldª, era credora do executado em cerca de € 12.897,34.
2.8. Após Maio de 2003 o executado/embargada, continuou a usar a referida viatura, em seu proveito e do seu agregado familiar.
2.9. O embargado/executado não detêm quaisquer outros bens além dos que lhe foram penhorados nos autos de que estes são apensos, que lhe permitam pagar a quantia exequenda.

III. O DIREITO:

A apelante não impugna a matéria de facto, pois não questiona a bondade da relação dos factos dada como assente na primeira instância.
Como tal, têm-se tais factos como pacíficos, já que também se não almeja razão para a modificabilidade da decisão da matéria de facto ao abrigo do disposto no artº 712º do CPC (cfr. artº 713º, nº6, do CPC).

Apreciemos, então, as questões suscitadas nas conclusões das alegações do apelante.

- Primeira questão: da posse do embargante/apelado sobre o veículo penhorado e da presunção registral de que beneficia.

Algumas notas prévias se impõem sobre os embargos de terceiro:
Como resulta do estatuído nos arts. 1285º-1, CC e 351º CPC, os embargos de terceiro constituem o meio próprio para reagir ou evitar a realização de diligências judicialmente ordenadas que, por importarem a actual ou a eventual apreensão ou a entrega de bens, lesem ou possam vir a lesar a posse ou qualquer direito incompatível com essa actuação, de que seja titular quem não é parte na causa em que é ordenada tal diligência judicial.
Quais os actos de carácter judicial, concretos—externados sob a forma de despachos ou sentenças-- contra os quais são os embargos de terceiro, prima facie, meios de reacção?
Visam tais embargos reagir contra a penhora, a entrega judicial, o arresto—e já desde a sua configuração moderna, constante dos arts. 922º e 378º do CPC de 1876--, o arrolamento, a posse judicial, o mandado de despejo ou “qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens” (ut artº 351º, nº1 CPC).
Conferem, portanto, os mencionados normativos um meio adequado para o respectivo titular reagir contra acto judicial que seja ofensivo da sua posse ou de qualquer direito incompatível com a realização de tal acto que compreenda a apreensão ou a entrega de bens, o que nos conduz à constatação de que um dos fundamentos de facto que justificam o deitar mão de tal incidente assenta na existência de diligência judicial ofensiva daquelas situações - de posse ou de qualquer direito incompatível com a realização de tal diligência.
Já há longos anos que o saudoso Prof. Alberto dos Reis escrevia que "o fundamento de facto dos embargos é a diligência judicial, que tenha privado, ou ameace privar, da posse o terceiro, possuidor", mais adiantando que "a diligência judicial, ofensiva da posse, pode ser consequência: de sentença de condenação; de acto jurídico constitutivo de obrigação", dando exemplos, entre o mais, para a 1ª espécie da penhora em execução de sentença e para a 2ª da penhora em execução fundada em título diverso de sentença, o arresto e o arrolamento (cfr. Processos Especiais, vol. 1, págs. 408 a 411.
Temos, assim, como certo que os embargos de terceiro hão-de fundamentar-se na existência de um diligência judicial, já efectuada ou apenas ordenada, ofensiva da posse ou de outro direito incompatível com a sua realização, de que seja titular o respectivo interessado, para tanto não bastando, de forma a caracterizar aquele fundamento, a possibilidade teórica ou abstracta de aquela diligência vir a efectivar-se sustentada, v.g., numa sentença condenatória.
Por isso, tem-se entendido que a diligência judicial fundamentadora dos embargos de terceiro é aquela que tenha a natureza executória e tenha sido ordenada judicialmente - ver, para além da já citada referência doutrinal, os Acs. desta Relação, de 10.2.92 e de 21.2.02, na base de dados do MJ.

Como é sabido, desde 1841—após o início de vigência da Novíssima Reforma Judicial (decretada em 21.5.1841)—até 1 de Janeiro de 1997, os embargos de terceiro constituíram um fundamento de tutela da posse virados contra actos judiciais capazes de ameaçar ou perturbar—injustificada ou ilicitamente—os poderes de facto do terceiro possuidor da coisa, cuja apreensão fora judicialmente ordenada. A partir da reforma processual de 1995/1996, os embargos de terceiro passaram a poder fundar-se na titularidade do direito de fundo. Essencial é que aquela posse e este direito-- maxime, de propriedade ou direito real de gozo menor-- sejam incompatíveis com a futura transmissão para terceiros do bem penhorado, através de adjudicação ou venda.

Explanados estes princípios, voltemos, então, ao caso sub judice.
O que está em causa in casu é a realização de uma penhora sobre um bem em relação ao qual o embargante invoca, quer a posse (artº 8º da p.i.), quer, ainda (embora de forma pouco explícita, ut artº 9º da p.i.), a presunção de propriedade decorrente do registo que a seu favor detém sobre o bem.
Assim sendo, em abstracto, estamos em face de uma situação em que a lei permite a reacção através dos ditos embargos de terceiro—pois não há dúvida que, a existir, quer a aludida situação possessória, quer a referida presunção do direito de propriedade decorrente do registo—desde que não elidida--, tais situações são, naturalmente, incompatíveis com a realização ou o âmbito daquela diligência judicial (a penhora), pois uma hipotética futura adjudicação ou venda do bem penhorado chocará com tais situações.

Começando pela pretensa posse do embargante, é fácil constatar que os factos não a sustentam.
Com efeito, não obstante ter alegado a factualidade levada aos pontos 2º a 7º da base instrutória—assim procurando demonstrar a posse efectiva sobre a viatura penhorada nos autos executivos--, o certo é que tal factualidade não ficou provada, como era sua incumbência (ut artº 342º, nº2 CC)—antes pelo contrário, como à frente melhor se verá.
Provado está apenas e só que “o embargante declarou comprar “ao embargado C………. -- “em Março de 2003” -- a aludida viatura, pelo preço de Euros 7.500.
E tê-lo-á feito e forma verbal, pois nenhum documento foi carreado para os autos demonstrando ter sido formal tal aquisição.

Assim, a primeira pergunta que se poderá fazer é qual o valor de tal forma e aquisição, independentemente do seu posterior registo?

Cremos que tal aquisição, mesmo verbal, vale como forma plena de transmissão da propriedade da viatura automóvel para o embargante.

Efectivamente, o contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, produzindo-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato, nos termos do art. 408, nº1, 874º e 879º, al. a) do C.C. (Ac. S.T.J. de 24-4-91, Bol. 406-629; Ac. S.T.J. de 14-10-97, Bol. 470-630; Ac. S.T.J. de 3-3-98, Bol. 475-629). Assim, tal contrato é válido mesmo quando celebrado por forma verbal (conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJ/STJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág 117).

No entanto, o embargante não só demonstrou ter outorgado contrato de compra e venda da viatura automóvel, como, ainda, se apressou a registar essa aquisição.
Provado está, de facto, que “A aquisição do veículo penhorado encontra-se inscrita a favor do embargante na competente conservatória do registo predial desde 18/03/03”.
Qual o valor desse registo?

A norma do n.1 do art. 5º do CRP/84—que estabelece o principio geral de que "os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo"--, aplica-se ao registo de veículos automóveis "ex-vi" do art. 29º do C.R.Automóvel, introduzido pelo DL 54/75, de 24/2 (Ac. STJ, de 10.07.2003--Relator Ferreira de Almeida--, in site da dgsi.pt).
E assim sendo, o registo tem apenas valor declarativo e não eficácia constitutiva: destina-se essencialmente a dar publicidade a determinado facto, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário – cfr. art. 1º do Cód. Reg. Predial.
Como escreve Manuel de Andrade (Direito Civil, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, págs 21 e 22), "o registo não dá direitos, mas apenas os conserva.
O registo não pode, portanto, assegurar a existência efectiva do direito da pessoa a favor de quem esteja registado um prédio, mas só que, a ter existido, ainda se conserva - ainda não foi transmitido a outra pessoa".

No entanto, a presunção derivada do registo automóvel, decorrente das disposições conjugadas dos arts 29 do Dec-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, e do art. 7 do Cód. Reg. Predial, é uma mera presunção "juris tantum"-- elidível mediante prova em contrário.
Esta prova pode resultar, nomeadamente, da nulidade do próprio registo ou da invalidade do acto substantivo inscrito (Antunes Varela, R.L.J. Ano 118- 307)—sendo certo, porém, que tal refutação do valor da presunção registral pode ocorrer, ainda, de outra forma, como melhor à frente se verá, a quando da apreciação da posse do executado e suas consequências.
Pode ver-se sobre esta matéria, o Ac. do STJ de 24.02.1977, Relator Arala Chaves, no site da dgsi.pt.

Concluindo a apreciação da primeira questão, diremos que, se é certo não ter provado o embargante ter a posse da viatura automóvel, provou, no entanto, que a adquiriu por contrato validamente válido e que beneficia da supra referida presunção registral.

- Segunda questão: da posse sobre o veículo penhorado por banda do executado e eventual presunção da titularidade do direito a seu favor nos termos do artº 1268º, nº1, do CC, com afastamento da presunção emergente do artº 7º do CRP de que o embargante/apelado é titular:

Se o embargante não logrou provar ter a posse da viatura automóvel, já provado está que tal posse tem-na o executado C………. (cfr. ponto 2.8.dos factos provados).
É que provado está que “Após Maio de 2003 o executado/embargado continuou a usar a referida viatura, em proveito próprio e do seu agregado familiar”.
Ora, sendo posse a afectação material de uma coisa corpórea aos fins de pessoas individualmente consideradas (Menezes Cordeiro, Direitos Reiais, 1979-567) [Como é sabido, a posse é constituída por dois elementos: o "corpus", exercício de poderes de facto sobre a coisa; e o "animus", exercício em termos de um direito real - artigos 1251 e 1253 do Codigo Civil.
Por outro lado, havendo corpus, em princípio há posse—o corpus presume o animus.
Ver, sobre este ponto, Direitos Reais, Carvalho Fernandes, 4ª ed., a págs. 274 a 276—onde se escreve que “havendo corpus, em princípio há posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade segundo a qual ele age sem animus possidendi. É este elemento negativo que desvaloriza ou descaracteriza o corpus.
Vale, a este respeito, tanto uma manifestação expressa como tácita da vontade, desde que, quanto a esta segunda modalidade, o comportamento do possuidor a permita deduzir, com toda a probabilidade (nº 1 do artº 217º)”.
Com efeito, a dificuldade em demonstrar o «animus» e a consequente posse, em nome próprio, justificou a consagração de uma presunção de posse, em nome próprio, por parte daquele que exerce o poder de facto sobre a coisa - «corpus» -, e de uma presunção da titularidade do direito, a favor do possuidor, excepto se existir, a favor de outrém, presunção prioritária, fundada em registo anterior ao início da posse
In casu, não existiu qualquer declaração do possuidor (executado) tendente a permitir desvalorizar a indicação resultante do «corpus», nem qualquer oposição tendente a inverter o título da posse. Pelo que temos como seguro que, se o possuidor antes da declaração de compra da viatura automóvel pelo embargante era o executado, continuou a sê-lo após esta declaração (ver o Ac. da Rel de Coimbra, de 09.07.2002, no site da dgsi.pt (nº convencional JTRC 01763).], é evidente que a posse sobre a viatura automóvel penhorada vinha—isto é, já antes [Com efeito, não há dúvida que “continuar” significa prosseguir o que se começou, dar seguimento ao que está começado e ou não sofrer interrupção (Vide Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto editora).] da aludida declaração de compra pelo embargado—e continuou (“após a data da encenada venda”, diz a embargada na sua contestação-- artº 16º- pág. 27, onde acrescenta que tal uso “sempre fez”o executado, “em proveito próprio e do seu agregado familiar”), a ser efectuada pelo executado.

É aqui que entra em cena o artº 1268º, nº1 do CC, que reza:
”O possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.

Temos, assim, in casu um conflito de presunções: a decorrente do artº 7º do CRP-- a beneficiar o embargante-- e a decorrente do artº 1268º CC-- a beneficiar o executado.
Reitera-se que o executado detinha-- e continuou a deter-- a posse da viatura já antes da alegada aquisição, “em seu proveito e do seu agregado familiar”.

Ora, havendo conflito de presunções, v.g., entre registo e posse, deve prevalecer, em princípio, a que emergir de facto mais antigo-(ver artº 1268º do C.Civil; Ac. S.T.J., in Bol.M.J.nº 414/545 e Oliveira Ascenção, Direitos Reais, 4ª ed., págs. 342/343.
Ali se referem as várias posições sobre a questão, mas logo se [Chama este autor, ainda, a atenção do nº 2 do artº 1268º, referindo—e bem—que se trata de preceito “sem conteúdo”, onde “não se chega a dizer coisa nenhuma”] acentua e conclui -- e bem—que a jurisprudência tende para a posição que sustenta que “prevalece a presunção com fundamento mais antigo (posse ou registo)”.
Posição esta que é consagrada, precisamente, no aludido artº 1268º, nº1, do CC.

Aliás, como igualmente refere este autor, mesmo que a posse e o registo tivessem—o que no caso sub judice não ocorre, pois a posse (do executado) até é mais antiga—a mesma antiguidade (v.g., se se provasse que à data do registo havia posse, mas não se provasse a posse anterior), ainda assim havia “uma certa prevalência da presunção fundada na posse”. “Isto resulta dos termos do artigo, e está conforme com a normal prevalência, na nossa ordem jurídica, da situação real, uma vez provada, sobre a situação inscrita”—conclui o mesmo autor.
Assim, portanto, havendo colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (artº 7º do CRP) e a presunção decorrente da posse com início à data do registo ou anterior a ele, prevalece esta última.
Só prevalece a presunção registral, portanto, se o registo for anterior ao início da posse (ver, ainda, Vaz Serra, RLJ, 106º, pág. 281 e segs.).
É que o artigo 7º do CRP – correspondente ao anterior artigo 8º--traz uma presunção de fé pública, que, como vimos já, é relativa: o registo pode ser destruído se se demonstrar contrário à realidade substantiva.
Veja-se que o actual artº 1268º vai mais além do se dispunha no Código de Seabra: neste estabelecia-se apenas um presunção de propriedade; naquele artº 1268º, com muito mais rigor, prescreve-se uma presunção da titularidade do direito, uma vez que, como é sabido (ver o artº 1251º CC), a posse cobre não só a propriedade, como qualquer outro direito real.
Também por aqui se vê a (enorme) importância da posse! (vide P. Lima e A. Varela, CC Anotado, anotação ao artº 1268º).

Podia, assim, a embargada/exequente impugnar—como fez-- os factos comprovados pelo registo (artigo 350º , nº 2, do Cód. Civil—ver, ainda, Gomes Vieira , in Cód. do Registo Predial , 1960, pág. 46), em ordem a fazer prevalecer a posse do executado.
Desta forma afastou a apelante a presunção derivada do registo de que beneficiava o embargante/apelado, conseguindo fazer vingar a sua posse e respectiva presunção “da titularidade do direito” (in casu, do direito de propriedade sobre a viatura automóvel).
Sobre a matéria e no sentido ora sustentado, pode ver-se, ainda, os Acs. da Rel. do Porto, de 18.01.99, in dgsi.pt, com o nº convencional JTRP00024889 e de 27.01.92, no mesmo site (nº convencional RP199201270124238), bem assim a (demais) doutrina e jurisprudência ali citadas.

Procede, assim, esta questão, vingando as conclusões da apelação.

CONCLUINDO:
- O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, produzindo-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato. Assim, tal contrato é válido mesmo quando celebrado verbalmente.
- Havendo colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (artº 7º do CRP) e a presunção decorrente da posse (artº 1268º CC) com início à data do registo ou anterior a ele, prevalece esta última.
- Mesmo que a posse e o registo tenham a mesma antiguidade (v.g., prova-se que à data do registo havia posse, mas não se prova a posse anterior), ainda assim—em obediência à prevalência, na nossa ordem jurídica, da situação real, uma vez provada, sobre a situação inscrita—prevalece a presunção possessória.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da
Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença recorrida e julgam improcedentes os embargos de terceiro, com as legais consequências, designadamente a manutenção da penhora sobre o veículo.---------

Custas, em ambas as instâncias, a cargo do embargante, ora apelado, D………. .

Porto, 21 de Setembro de 2006
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves