Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0820217
Nº Convencional: JTRP00041109
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: INSOLVÊNCIA
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
PREJUDICIALIDADE
Nº do Documento: RP200802190820217
Data do Acordão: 02/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 265 - FLS. 125.
Área Temática: .
Sumário: 1. O regime do art. 8º do CIRE obriga:
- à suspensão dos processos de insolvência instaurados posteriormente, quando já exista a correr contra o mesmo devedor processo de insolvência instaurado com prioridade temporal;
- à suspensão de quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor logo que seja declarada a insolvência no âmbito de certo processo, independentemente da prioridade temporal;
- à extinção da instância em quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor logo que transite em julgado a declaração de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo n.º 217/08-2
1.ª Secção Cível
NUIP ……./07.1TBVFR-A
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I

1. Nos autos de processo especial para declaração de insolvência da sociedade B……………………….., S.A., com sede na ………., n.º ……-...º, …….., Santa Maria da Feira, instaurados por C……………., LDA, com sede em Lisboa, na qualidade de credora, e que correm termos no ….º Juízo Cível da comarca de Santa Maria da Feira com o n.º ……/07.1TBVFR, em 31-10-2007, o Sr. Juiz proferiu o seguinte despacho, certificado a fls. 17:

«Atento o teor da informação que antecede, verifica-se que contra a devedora foi instaurado processo de insolvência que se encontra a correr termos no …..º Juízo Cível deste Tribunal sob o n.º ……/07.7TBVFR, acção que, atendendo à data na qual foi proferida a respectiva sentença − 24/09/2007 − entrou em juízo em momento anterior ao da instauração destes autos − 24/10/2007.
Face ao exposto, determino a suspensão da instância nos termos do disposto no art. 8.º/2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique e solicite ao processo supra identificado informação sobre o trânsito em julgado da sentença ai proferida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 8.º/4 do CIRE.»

2. Não se conformando com este despacho, a requerente C………….., LDA, agravou para esta Relação, concluindo as suas alegações do seguinte modo:

1. A circunstância da suspensão, uma vez que excepcional, deverá ser aferida, em primeiro lugar, em conformidade com o espírito do legislador subjacente à sistemática do CIRE, e, em segundo, não olvidando os princípios basilares que constroem o nosso ordenamento jurídico;

2. Existe, efectivamente, uma situação de prejudicialidade entre as duas acções de insolvência nas quais a "B…………." é parte;

3. Contudo, a suspensão de uma acção de insolvência proposta em data posterior relativamente a outra, que já se encontre a correr termos, deverá ocorrer apenas e somente quando se verificar que, efectivamente, o prosseguimento da segunda acção é desnecessário;

4. Atendendo aos efeitos de estabilidade que o trânsito em julgado de uma Decisão confere à instância, só neste momento poderá/deverá ser aferida a relação de prejudicialidade entre as acções;

5. Ou seja, tão-somente com o trânsito em julgado da Sentença/Acórdão da acção proposta em primeiro lugar poderão os actos/efeitos da segunda instância ser considerados inúteis, uma vez que a situação que se pretende tutelar já foi, definitiva, irreversível e soberanamente, decidida;

6. Aliás, indeferido o pedido da acção proposta em primeiro lugar, a acção interposta posteriormente recomeça a correr termos e todos os seus efeitos legais serão considerados válidos, pelo que não se deverá obstar ao normal prosseguimento dos seus termos;

7. Dado que a acção que foi proposta em segundo lugar poder continuar a correr termos e, efectivamente, originar a insolvência do devedor em causa em ambas as acções, não deverá ela ser sustada enquanto não forem aferidos os efectivos efeitos da primeira acção, sob pena de violação do Princípio da Economia Processual;

8. Da própria lei decorre que um processo instaurado em segundo lugar, no caso de estarmos perante cônjuges, pode/deve prevalecer um processo instaurado em primeiro lugar, tal como dispõe o artigo 264.º, n.º 3, alínea b), do CIRE;

9. Tendo em consideração que o Processo de Insolvência tem carácter de urgência e que o seu objecto primordial será a tutela de todos os credores, deverão ser disponibilizadas todas as possibilidades legais para que os seus créditos sejam ressarcidos, nomeadamente no que concerne à efectiva tutela jurisdicional dos direitos que lhes assistem;

10. No caso em apreço, a acção proposta pela ora Recorrente, a ser suspensa, só o deverá ser após trânsito em julgado da Decisão a proferir na acção na qual a "B………….." se apresentou à Insolvência;

11. Assim o impõe, mormente, o princípio de Acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, direito este consagrado no artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa;

12. Bem como, os estruturantes, da certeza e da segurança jurídicas.

Pretende que, no provimento do presente agravo, seja revogado o despacho recorrido e seja substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O tribunal recorrido manteve e sustentou o despacho recorrido (fls. 51-54).

3. Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, que delimitam o objecto do recurso (arts. 684.º, n.º 2 e 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), a questão a decidir refere-se à interpretação do preceito contido no n.º 2 do art. 8.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), que determina a suspensão da instância e, em concreto, consiste em apreciar se, no processo suspenso pelo despacho recorrido, estão, ou não, verificados os requisitos de prejudicialidade que aquele preceito exige.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II

4. Relevam para a apreciação do objecto deste agravo, para além do teor do próprio despacho recorrido, os seguintes factos documentados nos autos:

1) O presente processo foi instaurado em 24-10-2007, a requerimento da ora agravante apresentado na Secretaria do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira nessa mesma data, para declaração de insolvência da sociedade B…………….., S.A. (fls. 26).

2) A declaração de insolvência da sociedade requerida já foi decretada por sentença de 24-09-2007, proferida no processo n.º ……../07.7TBVFR que corre termos nos ….º Juízo Cível da mesma comarca de Santa Maria da Feira, e foi publicitada na II Série do Diário da República n.º 202, de 19-10-2007 (fls. 42).

3) O despacho recorrido foi precedido de informação da secção de processos com o seguinte teor: “Em 31-10-2007, com informação a V. Ex.a que conforme se constata na cópia do D.R. junta a fls. 76, a firma aqui devedora já foi declarada insolvente no processo n.º ……./07.7TBVFR do ….º Juízo Cível deste Tribunal” (fls. 17).

4) Em 20-11-2007, imediatamente antes do despacho de sustentação, a secção de processos prestou nova informação dizendo que: “compulsados os autos de Insolv(ência) junto do …..º Juízo Cível deste Tribunal (cfr. despacho de fls. 77), informa-se que a sentença que decreta Insolvente a aqui devedora foi objecto de recurso, sendo que os referidos autos aguardam a junção aos mesmos da procuração passada a favor do subscritor do requerimento de interposição do recurso, para posterior despacho de admissibilidade e seu efeito” (fls. 51).

5. Temos que começar por reconhecer que a argumentação da agravante configura um modelar exercício de retórica hermenêutica, mormente a propósito dos conceitos de “prejudicialidade” e “desnecessidade” no caso de existência de duas acções judiciais em que intervêm as mesmas pessoas, com o mesmo objecto e visando exactamente a mesma finalidade: a liquidação do património do insolvente a favor dos respectivos credores. É, porém, perceptível que na discursiva e eloquente argumentação da agravante transparece, afectando o normal significado das palavras que dão conteúdo e sentido à norma, um certo vírus de formatação subjectiva, que leva a sobrepor às finalidades objectivas do processo e aos interesses colectivos dos credores eventuais razões de conveniência e interesse subjectivo da recorrente, de que o teor dos arts. 14.º e 15.º das suas alegações são, nessa lógica, fracamente expressivos. Não fora essa afectação de subjectividade e, por certo, o despacho recorrido teria sido aceite sem mácula.

O n.º 2 do art. 8.º do CIRE dispõe do seguinte modo: “Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 264.º, o tribunal ordena a suspensão da instância se contra o mesmo devedor correr processo de insolvência instaurado por outro requerente cuja petição inicial tenha primeiramente dado entrada em juízo”.

A situação configurada na al. b) do n.º 3 do art. 264.º refere-se à hipótese de coligação de um dos cônjuges na acção para declaração de insolvência requerida apenas contra o outro cônjuge, estabelecendo-se aí que a apresentação (do segundo cônjuge) à insolvência, uma vez admitida, “suspende qualquer processo de insolvência anteriormente instaurado apenas contra o apresentante e em que a insolvência não haja sido já declarada, se for acompanhada de confissão expressa da situação de insolvência ou caso seja apresentada pelos cônjuges uma proposta de plano de pagamentos”. Constituindo, pois, uma alteração ao critério estabelecido no n.º 2 do art. 8.º, mas que nenhum significado ou interferência tem com o caso em análise neste processo.

Fora essa situação, na exegese do n.º 2 do art. 8.º do CIRE a suspensão da instância depende unicamente de dois pressupostos, de verificação cumulativa: 1) existência de uma outra acção contra o mesmo devedor visando a sua declaração de insolvência; 2) que essa outra acção tenha sido instaurada anteriormente, aferindo-se a sua anterioridade, ou prioridade temporal, pela data da entrada da petição em juízo.

A razão desta suspensão radica em motivos de economia processual, mas também em motivos de (in)utilidade processual: o desenvolvimento normal (e, em princípio, mais avançado) da tramitação do primeiro processo fará com que, a partir de determinado momento, a repetição dos mesmos actos em que se traduz, logicamente, o processado do segundo processo fique inutilizado.

E que é assim decorre, expressivamente, do normativo constante do n.º 4 do mesmo artigo 8.º do CIRE, nos termos do qual “declarada a insolvência no âmbito de certo processo, deve a instância ser suspensa em quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor e considerar-se extinta com o trânsito em julgado da sentença, independentemente da prioridade temporal das entradas em juízo das petições iniciais”. Ou seja, o trânsito em julgado da decisão que declarar a insolvência do devedor faz extinguir todos os demais processos de insolvência que tenham sido instaurados contra o mesmo devedor.

Este “efeito extintivo” previsto no n.º 4 já responde ao argumento invocado pela agravante no sentido de que só o trânsito em julgado da sentença que declarar a insolvência poderia provocar a suspensão dos outros processos. Tal argumento é manifestamente contrário ao regime instituído pelo art. 8.º do CIRE, que obriga:

1.º à suspensão dos processos de insolvência instaurados “posteriormente”, quando já exista a correr contra o mesmo devedor processo de insolvência instaurado “com prioridade temporal” (n.º 2); nesta hipótese, o processo ou processos a suspender determinam-se pela data da entrada em juízo da petição e a suspensão tem que ser decretada nos processos instaurados “posteriormente”;

2.º à suspensão de quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor logo que seja declarada a insolvência no âmbito de certo processo, independentemente da prioridade temporal da sua entradas em juízo (n.º 4); nesta hipótese, o critério que releva para a suspensão já não é o da prioridade temporal do processo, mas a prioridade da declaração de insolvência;

3.º à extinção da instância em quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor logo que transite em julgado a declaração de insolvência.

No caso deste processo, a sua suspensão impõe-se, quer pelo critério previsto no n.º 2 do art. 8.º, já que deu entrada em juízo em segundo lugar, quer pelo critério do n.º 4, porquanto, quando este processo foi instaurado já a insolvência do devedor tinha sido declarada no primeiro processo contra o mesmo instaurado.

O trânsito em julgado dessa declaração é causa de extinção deste segundo processo (n.º 4), e não de suspensão, como pretensamente defende a agravante.

Assim, e concluindo, o despacho agravado é conforme à lei e não merece qualquer censura.


III

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo.

Custas pela agravante (art. 446.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil).

*

Relação do Porto, 19-02-2008
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues